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quinta-feira, 9 de março de 2017

Coisas da vida - Hirtis Lazarin


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Coisas da vida
Hirtis Lazarin

          EU só tinha quinze anos...

          Cheguei ao mundo em meio a uma grande festa.  Mamãe já tinha perdido a esperança de ter o segundo filho.  Dez anos me separam do meu irmão Leonardo.

          Confesso.  Fui privilegiada pelos deuses.  Uma família completa, repleta de amor.

          Cresci respirando livros e telas pintadas.

          Meu pai era um pouco dos livros que leu e muito dos textos que escreveu.  Culto e sistemático.  Não dispensava terno, gravata e sapatos de croco.

          Herdou dos meus avôs a mais completa livraria da nossa cidade.  Tornou-se um mecenas literário.  Todo ano realizava dois concursos.  Um júri escolhia o melhor texto, papai editava e lançava no mercado.  Oportunidade de ouro aos novos talentos.

          Mamãe, artista plástica.  Simples e linda numa calça jeans desbotada e camiseta.  Generosa e sensível.  Sentia além dos sentidos, enxergava além do horizonte, voava além de suas asas   Era o equilíbrio entre a sofisticação e a simplicidade.

          Conjugava o verbo pintar tão bem quanto outros, até incompatíveis: limpar, passar roupa, organizar.

          Administrava nossa casa de um jeito só dela.  Sabia onde estava guardada aquela tesourinha que foi da vovó, sabia que o estoque de arroz estava no fim, que na camisa de linho branca do papai faltava um botão, que a torneira da pia pingava sem parar, e assim vai...

          Se percebesse uma nuvem negra e pesada ameaçando a paz da família, colocava na vitrola de estimação o "long play" das valsas vienenses, laçava o seu homem até a sala espaçosa e ali rodopiavam até cansar.

          Mamãe tinha seu ateliê no imenso quintal de casa, projetado entre flores e árvores frutíferas.  O vento cobria o chão com pétalas e frutos maduros.  Um paraíso às borboletas e passarinhos.  Um silêncio perfumado, fresco, transgredido  só pelo canto dos bem-te-vis.

          Com facilidade e muita arte, reproduzia em telas sutilezas da alma feminina.  Não se importava se a modelo era magra ou gorda, alta ou baixa, bonita ou feia.  Você olhava pra tela e aquele rosto, aqueles olhos já lhe contavam se era tristeza ou esperança, frustração ou felicidade, solidão ou sabedoria o que sentiam.

          As coisas lá em casa começaram a mudar...E de uma hora pra outra já não tínhamos mais um lar.

          E eu só tinha quinze anos...

          Já havia dias que o ateliê estava fechado.  Mamãe acordava cada dia mais tarde e papai saía cada dia mais cedo.

          Aos poucos foi rareando o nosso café da manhã cheio de bom dia, de pãezinhos quentes saídos do forno, de sorrisos, de língua queimada com o leite quente além da conta, dos conselhos, da conversa fiada.  Até o dia em que cada um fazia tudo do seu jeito.

          Que saudade daquela mesa cheia de nós.

          Eu e o Leonardo não sabíamos porque estava acontecendo aquilo.  Nunca vi os dois discutindo nem brigando.  Nenhuma ofensa. Nenhuma frase em tom mais alto.  Apenas poucas palavras.  Tentei conversar com a mamãe várias vezes.  Não deu.

          Lembro-me bem como se fosse agora.  Acordei disposta e abri a cortina.  Lá fora o sol já estava bem aceso.  Vi mamãe com o esguicho na mão,  parada junto às rosas príncipe negro, preciosidade do seu jardim.  São rosas com pétalas aveludadas num tom vinho tinto seco.

          Espreitei-a por um bom tempo.  A calça jeans, agora desengonçada, escondia um corpo franzino.  Ela não saía do lugar.  A terra já não mais absorvia tanta água.  Transbordou,  invadiu o corredor de piso frio, ultrapassou a calçada e escorria junto ao meio fio.  As roseiras, hastes frágeis,  curvaram-se lentamente até desfalecer sobre a terra encharcada.

          Ouvi o ranger da porta se abrindo.  Papai apareceu impecável como sempre.  Carregava duas malas.  Passou pelas costas de mamãe, fingiu não vê-la e esquivou-se da água empossada.  Saiu a passos largos e rápidos, sem olhar pra trás.

          Naquele momento entendi a letra da música de John Lennon:  "A vida é fácil de olhos fechados".


          E eu só tinha quinze anos...

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