A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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quarta-feira, 1 de setembro de 2021

FEITIÇOS DA LUA - Hirtis Lazarin

 


FEITIÇOS DA LUA

Hirtis Lazarin

 

 Era uma hora da tarde quando Raquel estacionou o carro. Horas seguidas de viagem, muita poeira levantada da estradinha esburacada de terra batida.  Quase ninguém no percurso.

Abriu os vidros embaçados e viu, bem a sua frente, o casarão abandonado.

Desceu tremendo de emoção.  Um sonho concretizado.

Sentou-se num bloco de pedras, despiu-se do casaquinho de lã e desamarrou o tênis que apertava os pés.  O sol de outono preguiçoso e macio observava-a em silêncio.

Respirou fundo várias vezes antes de caminhar ao redor do prédio histórico construído no século XVIII.  Ali funcionou por cento e três anos a Câmara dos Deputados de São Paulo.

Total abandono... Nunca houve um projeto de preservação e restauração. Representa a morte de um pedacinho da nossa cultura, um pedacinho da nossa história.

Uma dor sem fim ver uma estrutura construída com todos os requintes que a arquitetura da época oferecia, abalada por infiltração de raízes grossas e furiosas comprometendo o alicerce.  O reboco caído expondo feridas nas paredes encardidas e maltratadas.  As janelas que sobraram mergulhadas num choro abafado e triste, ao menor balanço do vento.

Na lateral esquerda, restou uma escada de pedras coberta de musgo, ambiente propício às pererecas e grilos, quando a noite cai.  Ela conduz a um alpendre coberto de folhas secas que, provavelmente, se renovam com a mudança de temperatura.  Duas poltronas, que já foram aveludadas, abrigam uma gata que pariu e ali fez seu ninho.

Raquel é jornalista e se alimenta de histórias não contadas da história real.  Ainda criança, ouviu de seu avô-historiador um caso intrigante que envolvia o deputado Dr. Alfonso Lima de Albuquerque, um dos mais atuantes e cultos que atuou ali, nos idos de mil e oitocentos.

Um jovem de ideias nada convencionais e que extrapolava os padrões estabelecidos na época.  Sua criatividade não tinha limites. Era apaixonado pela “LUA” e previa que, num futuro não tão distante, o homem chegaria lá.  Numa época em que o transporte era feito por animais...

A moça empurrou, cuidadosamente, a porta da entrada principal.  Moldada em ferro fundido, nem se mexeu.  Usando as duas mãos, imprimiu mais força e o ranger da ferrugem soou como um lamento impertinente.

Abriu-se diante dela uma sala imensa.  O piso, nem se via, coberto que estava de lixo.  Entrou arrastando os pés, temendo que o assoalho rompesse.  

Fechou os olhos e se pôs a imaginar como seria ali num dia normal de expediente:  quantas vidas, quantas vozes ao mesmo tempo, quantas discussões acaloradas, desentendimentos, risadas escancaradas.  Homens elegantes em ternos alinhados, homens munidos de bengalas, homens de todos os tipos... E  poucas mulheres.

Uma cócega no pé acordou-a. Um rato passou correndo e desapareceu em meio à sujeira.  Raquel gritou, deu uma corridinha, mas não desistiu da sua curiosidade.

A sua frente, estendia-se um corredor sem fim, portas intercaladas, de ambos os lados.  Em cada uma, resquícios do que foram plaquinhas de alumínio.  Tentou juntar o que restou das letras gravadas, provavelmente o nome do último deputado que ocupara aquele espaço.  Impossível! O tempo arruinara a caligrafia.

Raquel entrou em quase todas as salas. Procurava algo importante. Encontrou abandono e solidão.  Até que se deparou com o que mais queria: o gabinete do Dr. Alfonso.  Identificou-o pelos relatos que colhera. Nas paredes, restavam desenhos quase que totalmente apagados de vários modelos de naves espaciais, traçados do percurso à lua e muitos rabiscos de cálculos matemáticos ininteligíveis. Feitos à base de tinta a óleo, o que permitiu a resistência de alguns detalhes.

A sua obsessão pela “LUA” cresceu de um jeito que extrapolou todos os limites de uma mente sã.  Falava sozinho, perambulava pelo vilarejo durante a noite e quase não dormia, desenhava nas paredes do quarto e do gabinete, fazia cartazes e rasgava todos em ímpetos furiosos.  O que começou como façanhas de um homem inteligente, terminou como atos de loucura.

Dr. Alfonso não completou trinta anos e morreu num manicômio.

Raquel tinha, então, todo material necessário para seu furo de reportagem.

ANÍSIO, O SURFISTA - Leon Vagliengo

 


ANÍSIO, O SURFISTA

Leon Vagliengo

 

Um continho curtinho, minúsculo, figurado.

 

        O verde profundo e salgado do mar era um convidativo aceno de paz, mesmo com as vagas enormes, que corriam até explodir em grandes ondas, que corriam com doce rugido até ficarem pequenas, que corriam, ainda, até se reduzirem à espuma. O céu de um doce azul, as nuvens bem esparsas, branquinhas e macias, o sol quente e amarelado. Componentes de um lindo dia de calor, cujo excesso era atenuado pela brisa fresca e perfumada.

        Quanta beleza, cenário perfeito!

        Anísio pegou a prancha, prendeu o slash no tornozelo e quando entrou na água fria caminhou devagar, apressou, correu enquanto ainda estava no raso e depois seguiu remando até onde ficam os surfistas na espera das boas ondas. Nem se diga que ele sentia uma grande alegria. Pura imaginação! Aquilo iria dar um trabalho...!

        Mais do que um esporte, a prática do surfe, para ele, é um ritual de harmonia, momento de estar consigo mesmo, esquecido de tudo, dos problemas corriqueiros da rotina diária. Delicia-se com o embalo da vaga ao equilibrar-se na prancha, em que sobe com seus próprios braços; sente-se único, poderoso, dominador, ao andar sobre as águas como Jesus; empolga-se com o forte estalar daquela massa de água quando se transforma em onda e o transporta numa curta viagem que o leva à plena sensação de felicidade. O salgado do mar é doce.

        E tudo se repete milhões de vezes, novamente, novamente e novamente, o doce rugir do mar em seus ouvidos, os passeios sobre a prancha até o mergulho, e tudo outra vez e outra vez e outra vez.  Momentos de encantamento, nada mais existe para Anísio.

        Aqui não existem conflitos.

        Apenas o prazer de sentir-se integrado à natureza, participar de sua beleza, acompanhar os movimentos do mar. A vida, os dias precisam ser bem aproveitados.

        Aqui não existe desfecho.

Tudo se repete indefinidamente. Vai embora feliz Anísio, mas volta sempre. É apenas um coadjuvante, o personagem principal é mesmo a Natureza.


A escalada - Adelaide Dittmers

 




A escalada

Adelaide Dittmers

 

A mulher andava de um lado par o outro da sala, esmagando com passos impiedosos o assoalho, que rugia ao seu pisar.

Pensamentos latejavam, sacudiam, explodiam e ecoavam em seu coração.  O nervosismo azedava-lhe os sentidos. Sentia que estava morrendo dezenas de vezes.  O mundo estava desabando sobre ela.  O papel que há pouco recebera provocou um terremoto em seu corpo inteiro. Ondas de desespero a invadiam e a faziam ofegar pelo ar que lhe faltava.

Como iria enfrentar isso?  Sempre fora muito corajosa e enfrentara vários desafios, mas este, que estava se apresentando agora era muito diferente e não dependia só dela.

Começou, então, a relembrar como tudo acontecera naquele dia de escalada na altiva montanha.  As trilhas, que recortavam o verde intenso, vibrante e iluminado.  O rio esverdeado e caudaloso, que se feria nas ásperas e impiedosas pedras, que o pontilhavam e faziam a água explodir em espumas alvas e transparentes.  O dia frio de inverno iluminado por um sol aconchegante e morno e pelo azul profundo de um céu sem nuvens.

O grupo de alpinistas, que tentava submeter a orgulhosa montanha à sua ousada escalada, fincava com dificuldade os ganchos nas rochas expostas da encosta íngreme.

Aquele esporte sempre a atraíra.  Adorava desafios, que a deixassem vulnerável e a vitória da conquista a inebriava.  Era considerada exímia nesse alpinista.

 A gigante, que se erguia a sua frente tinha uma dificuldade maior do que muitas outras.  Suas escarpas eram lisas e traiçoeiras.

Pela sua grande experiência, era a condutora daquele grupo de jovens, ávido de se arriscar na aventura de conquistar a inóspita montanha, que estava lutando para se entregar a eles.

O planejamento da escalada fora feito minuciosamente.  Temperatura, possibilidades de ventos fortes, medição de tempo da subida, eventualidade de chuva, tudo verificado.

 O único risco era um jovem inexperiente, que insistira em ir com eles.  A teimosia e os argumentos dele foram mais fortes do que a cautela e previdência dela, porque no fundo adorava a audácia daqueles que praticavam o esporte, em enfrentar perigos.  Tinha consciência, no entanto, de que a inexperiência era uma ferrenha rival da eficiência.

Tranquilamente as grandes dificuldades estavam sendo vencidas com muito cuidado.  A adrenalina corria desenfreada pelas veias de todos.

A alguns metros do pico, a parede rochosa tornou-se vertical.  O verde da vegetação ficara muitos metros abaixo.  Era o grande desafio.  Todos se prepararam para vencê-lo.  O novato, entretanto, ao se deparar com a dificuldade à sua frente e ao se conscientizar da altura em que estavam, desesperou-se e morrendo de medo, começou a tentar subir mais depressa para alcançar o topo em menos tempo e livrar-se do pavor que sentia. 

Na sua imaginação ela viu o rapaz tentar, desesperadamente, fincar o gancho numa das saliências da rocha com mãos trêmulas e úmidas pelo suor. Com certeza, mal conseguia segurar o gancho, que lhe escapou das mãos, deixando-o pendurado, o que quase arrastou os outros com ele.

Nesse momento da lembrança daquele dia, a mulher jogou-se no sofá.  As mãos crispadas cobriram as faces.  A ordem, que gritou ao rapaz, soou em seus ouvidos.

— Balance a corda e tente se prender novamente.

O jovem, porém, estava fora de si. O medo abocanhara-o todo. As mãos soltaram-se da corda e ele caiu no vazio.  Gritos de horror ecoaram pelo vale.

O grupo apressou-se em chegar ao topo da montanha.  Mais abaixo o alpinista jazia em um platô verde da encosta.  O silêncio cobriu a indiferente paisagem com um manto negro.

Desde aquele dia, o remorso corroía a alma dela.  Sentia-se culpada.  Fora irresponsável.  E agora tinha acabado de receber uma notificação de que os pais do infeliz rapaz a estavam protestando.

Ela tinha conhecimento de que a legislação não cobria esses tipos de acidentes e que houve outro famoso processo, que não dera em nada, mas mesmo assim estava morrendo de medo de ser julgada. Tinha um nome a zelar.  O alpinismo era a sua vida.  Dentro dela, o remorso travava uma luta feroz com a angústia de pagar pelo seu erro.

Sempre quis estimular nos jovens o esporte, que amava, mas devia ter dito um sonoro e resoluto não ao novato.

De repente, imaginou que pegou um forte gancho dentro dela e o fincou na coragem pétrea, que sempre tivera e que a fazia alcançar os perigosos cumes das montanhas.

Levantou-se do sofá.   O rosto sério expressava a decisão tomada.  Pegou o celular e ligou para seu advogado.

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