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quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Maria e Severino - Hirtis Lazarin


 

Maria e Severino

Hirtis Lazarin

 

O boteco da esquina era onde Severino tomava duas cachacinhas todos os dias, assim que deixava a obra. Seu coração estava preso ali, pois foi ele quem ajudou o amigo a levantar as paredes e a escolher as cores de tinta. A casa ficou bem charmosa.   O moço vivia longe da família, era trabalhador e nem gostava de encrencas, fugia de complicações, não era covarde, só queria viver em paz. Se o outro quer brigar, problema dele, ele não queria. Gostava de ajudar as pessoas.

 

Maria apareceu no boteco pra comprar água. O abastecimento na cidade estava cortado, não era novidade, a falta de chuva esvaziou os reservatórios e todo mundo tinha que contribuir, duas a três horas por dia a água não chegava às torneiras. E quando Maria chegou em casa, depois de um dia de trabalho cansativo, o pote estava quase vazio, não enchia nem um copo. Ninguém é santo e merece ficar com garganta e boca secas. Brigou com a irmã pela displicência, jogou irritada o avental no chão da cozinha, o avental branco que ela cuidava com muito zelo e saiu batendo os pés queria resolver o problema. 

 

O boteco estava vazio, o único cliente no momento era Severino sentado sozinho na menor mesa degustando um pratinho de petiscos junto da cachaça… Ah! Ela não podia faltar, jamais. Não sei se naquele dia, o moço tinha exagerado nas doses ou se a cabeça tinha perdido o juízo porque assim que viu a moça entrar de vestido curto e formas bem arredondadas, deu um pulo macio, aproximou-se e puxou conversa com Maria. Ela levou um susto, nem havia visto o moço e achava que o boteco estava vazio.

 

É difícil acreditar, mas dois meses depois, Severino e Maria se casaram. Bem, ele veio de outro Estado em busca de trabalho; ela perdeu a mãe há meses e andava triste, deprimida. Depois de alguns encontros e algumas conversas em bom-tom resolveram o que fariam juntos. Afinal os dois eram jovens, ele, só dois anos a mais, católicos, frequentavam a igreja de vez em quando, sabiam ler e escrever, não deviam dinheiro a ninguém e queriam ser pais. A única discordância era quanto ao número de filhos.

 

A festa foi feita no salão da “igreja do padre Antonio” e todos pensavam que ele era o dono mesmo. Muita ingenuidade e muita simplicidade, não sabiam a importância do dízimo na vida do pároco. Ele veio da Itália há quase vinte anos e já se considerava um cidadão de Venturosa. Era muito querido, gastava um tempão dando conselhos e sempre deixava o povo usar o salão de festas. E foi por isso que o casal reuniu ali os convidados do casamento, era de graça. E a festa foi boa, não faltou refrigerante, nem doce, nem salgadinho, nem música, tinha muita gente feliz da vida e todos foram abençoados com a graça de Deus.

 

Gente pobre não tem lua de mel, só tiraram uma semaninha por conta própria pra arrumar a nova casa. Nova não, mas era o que podiam ter no momento. E a vida continuou como tinha que ser ou parecia ser.  Maria trabalhava mais que o marido, chegava em casa, tinha comida pra fazer e roupa pra lavar. Não podemos esquecer que Severino trabalhava em obras…  Maria estava apaixonada, Severino não era tão carinhoso quanto ela gostava, mas estava tudo bem, tinha um companheiro e a tristeza pela falta da mãe tinha ido embora.  

 

Todo mundo sabe que a rotina cansa, que fazer todo dia tudo igual, enfastia. Era chegada a hora do casal engravidar. Houve concordância, estavam na flor da idade e uma criança correndo pela casa passou a ser um sonho. E mãos à obra.  Infelizmente não estava dando certo, entra mês, sai mês e nada… Ele acha que o problema era ela e ela acha que o problema era ele. Surgem discussões e brigas, o casal fica dias sem conversar e até dormem em camas separadas. E dormindo brigados e em camas separadas sabiam que não fariam filhos. Engoliam o orgulho e voltavam às pazes, mas a gravidez não acontecia. Passaram por muitos exames médicos, tudo nos trilhos em perfeita saúde. Já estavam desacorçoados.

 

Severino saía do trabalho, parava no boteco, exagerava nas doses de cachaça e chegava bem tarde em casa trançando as pernas. Maria exagerava na comida e ainda mais nos doces para combater a ansiedade. O homem olhava a comida nas panelas, fazia cara de nojo, caía na cama bêbado, barbudo e sujo. Ela ia engordando e ele ia emagrecendo. 

 

A vida do casal estava insuportável. Ela lembrava do marido assobiando feliz da vida e improvisando letras de músicas que não conseguia decorar. Ele lembrava da esposa cheirosa, cabelos cacheados e formas bem redondinhas. E na certeza da impossibilidade da recuperação do que já foi, ele bebia e ela comia.

 

Maria não aguenta mais essa vida. Lembra-se de uma garrafa de conhaque bem escondida debaixo da pia da cozinha atrás de uma lata vazia. Retira-a do esconderijo e as ideias pululam em sua mente, ideias ruins e ideias péssimas. Mistura um pozinho preto na bebida, chacoalha bem muito bem e ele se enrosca na cor caramelo do líquido. Perfeito! Sem querer, já querendo, esquece a garrafa sobre a mesa. Severino chega em casa bêbado por volta das vinte e duas horas. As luzes estão apagadas e mesmo no escuro vai até a cozinha fazer nada. A vista está turva, mas isso não o impede de ver aquela garrafa bonita e brilhante dando sopa.  Agarra-a de qualquer jeito, as mãos trêmulas nem mais o obedecem e deixam a rolha cair, ele cheira demoradamente porque o cheiro é bom. Vira-a na boca e se delicia naquele líquido adocicado. Num segundo, cai na cama e desmaia feito um tronco jogado no rio.

 

Maria dorme, será que dorme?  

 

No meio da madrugada, Severino acorda cheio de náusea com a boca seca muito seca. Apoia as mãos na cama uma, duas, três vezes e se põe em pé. O quarto gira, gira muito e rápido igual a um pião. O moço cai morto no chão frio. O baque é forte, o barulho é estrondoso e a esposa observa o corpo inerte. Chama a polícia e conta a história do seu jeito.  Uma semana depois é presa.

 

Já faz um ano que tudo isso aconteceu.  Maria até já se acostumou com a prisão, a cela não é das piores e a comida é farta e boa. Já engordou quase dez quilos.

 

 

 

O boteco da esquina era onde Severino tomava duas cachacinhas todos os dias, assim que deixava a obra. Seu coração estava preso ali, pois foi ele quem ajudou o amigo a levantar as paredes e a escolher as cores de tinta. A casa ficou bem charmosa.   O moço vivia longe da família, era trabalhador e nem gostava de encrencas, fugia de complicações, não era covarde, só queria viver em paz. Se o outro quer brigar, problema dele, ele não queria. Gostava de ajudar as pessoas.

 

Maria apareceu no boteco pra comprar água. O abastecimento na cidade estava cortado, não era novidade, a falta de chuva esvaziou os reservatórios e todo mundo tinha que contribuir, duas a três horas por dia a água não chegava às torneiras. E quando Maria chegou em casa, depois de um dia de trabalho cansativo, o pote estava quase vazio, não enchia nem um copo. Ninguém é santo e merece ficar com garganta e boca secas. Brigou com a irmã pela displicência, jogou irritada o avental no chão da cozinha, o avental branco que ela cuidava com muito zelo e saiu batendo os pés queria resolver o problema. 

 

O boteco estava vazio, o único cliente no momento era Severino sentado sozinho na menor mesa degustando um pratinho de petiscos junto da cachaça… Ah! Ela não podia faltar, jamais. Não sei se naquele dia, o moço tinha exagerado nas doses ou se a cabeça tinha perdido o juízo porque assim que viu a moça entrar de vestido curto e formas bem arredondadas, deu um pulo macio, aproximou-se e puxou conversa com Maria. Ela levou um susto, nem havia visto o moço e achava que o boteco estava vazio.

 

É difícil acreditar, mas dois meses depois, Severino e Maria se casaram. Bem, ele veio de outro Estado em busca de trabalho; ela perdeu a mãe há meses e andava triste, deprimida. Depois de alguns encontros e algumas conversas em bom-tom resolveram o que fariam juntos. Afinal os dois eram jovens, ele, só dois anos a mais, católicos, frequentavam a igreja de vez em quando, sabiam ler e escrever, não deviam dinheiro a ninguém e queriam ser pais. A única discordância era quanto ao número de filhos.

 

A festa foi feita no salão da “igreja do padre Antonio” e todos pensavam que ele era o dono mesmo. Muita ingenuidade e muita simplicidade, não sabiam a importância do dízimo na vida do pároco. Ele veio da Itália há quase vinte anos e já se considerava um cidadão de Venturosa. Era muito querido, gastava um tempão dando conselhos e sempre deixava o povo usar o salão de festas. E foi por isso que o casal reuniu ali os convidados do casamento, era de graça. E a festa foi boa, não faltou refrigerante, nem doce, nem salgadinho, nem música, tinha muita gente feliz da vida e todos foram abençoados com a graça de Deus.

 

Gente pobre não tem lua de mel, só tiraram uma semaninha por conta própria pra arrumar a nova casa. Nova não, mas era o que podiam ter no momento. E a vida continuou como tinha que ser ou parecia ser. 

Maria trabalhava mais que o marido, chegava em casa, tinha comida pra fazer e roupa pra lavar. Não podemos esquecer que Severino trabalhava em obras…  Maria estava apaixonada, Severino não era tão carinhoso quanto ela gostava, mas estava tudo bem, tinha um companheiro e a tristeza pela falta da mãe tinha ido embora.  

 

Todo mundo sabe que a rotina cansa, que fazer todo dia tudo igual, enfastia. Era chegada a hora do casal engravidar. Houve concordância, estavam na flor da idade e uma criança correndo pela casa passou a ser um sonho. E mãos à obra.  Infelizmente não estava dando certo, entra mês, sai mês e nada… Ele acha que o problema era ela e ela acha que o problema era ele. Surgem discussões e brigas, o casal fica dias sem conversar e até dormem em camas separadas. E dormindo brigados e em camas separadas sabiam que não fariam filhos. Engoliam o orgulho e voltavam às pazes, mas a gravidez não acontecia. Passaram por muitos exames médicos, tudo nos trilhos em perfeita saúde. Já estavam desacorçoados.

 

Severino saía do trabalho, parava no boteco, exagerava nas doses de cachaça e chegava bem tarde em casa trançando as pernas. Maria exagerava na comida e ainda mais nos doces para combater a ansiedade. O homem olhava a comida nas panelas, fazia cara de nojo, caía na cama bêbado, barbudo e sujo. Ela ia engordando e ele ia emagrecendo. 

 

A vida do casal estava insuportável. Ela lembrava do marido assobiando feliz da vida e improvisando letras de músicas que não conseguia decorar. Ele lembrava da esposa cheirosa, cabelos cacheados e formas bem redondinhas. E na certeza da impossibilidade da recuperação do que já foi, ele bebia e ela comia.

 

Maria não aguenta mais essa vida. Lembra-se de uma garrafa de conhaque bem escondida debaixo da pia da cozinha atrás de uma lata vazia. Retira-a do esconderijo e as ideias pululam em sua mente, ideias ruins e ideias péssimas. Mistura um pozinho preto na bebida, chacoalha bem muito bem e ele se enrosca na cor caramelo do líquido. Perfeito! Sem querer, já querendo, esquece a garrafa sobre a mesa. Severino chega em casa bêbado por volta das vinte e duas horas. As luzes estão apagadas e mesmo no escuro vai até a cozinha fazer nada. A vista está turva, mas isso não o impede de ver aquela garrafa bonita e brilhante dando sopa.  Agarra-a de qualquer jeito, as mãos trêmulas nem mais o obedecem e deixam a rolha cair, ele cheira demoradamente porque o cheiro é bom. Vira-a na boca e se delicia naquele líquido adocicado. Num segundo, cai na cama e desmaia feito um tronco jogado no rio.

 

Maria dorme, será que dorme?  

 

No meio da madrugada, Severino acorda cheio de náusea com a boca seca muito seca. Apoia as mãos na cama uma, duas, três vezes e se põe em pé. O quarto gira, gira muito e rápido igual a um pião. O moço cai morto no chão frio. O baque é forte, o barulho é estrondoso e a esposa observa o corpo inerte. Chama a polícia e conta a história do seu jeito.  Uma semana depois é presa.

 

Já faz um ano que tudo isso aconteceu.  Maria até já se acostumou com a prisão, a cela não é das piores e a comida é farta e boa. Já engordou quase dez quilos.

 

 


A ÚLTIMA QUARTA - LEON A. VAGLIENGO

  A ÚLTIMA QUARTA Dizer o quê? As coisas vão, mesmo, acontecendo...                                                                     ...