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sexta-feira, 4 de março de 2016

A CASA - Dinah Ribeiro de Amorim (Amora)


A CASA  
Dinah Ribeiro de Amorim (Amora)

“Sinto-me velha e feia. Solitária e triste em rua barulhenta, cheia de carros zunindo o tempo todo, gente passando, entrando e comprando. A rua virou um centro comercial.

Outrora, alegre, cheia de vida, recém-construída por um jovem casal, eu vivia cercada de festas animadas, brincadeiras de crianças, admirada por pessoas que me achavam linda, em lugar especial, totalmente residencial, com famílias semelhantes à minha: Sr. Arnaldo, Dª Kiqui e filhos.”

“Ah! Bons tempos aqueles! Até um gracioso gatinho de porcelana enfeitava o telhado colonial, atraindo os olhares dos passantes. Minha senhora era mesmo genial, um encanto de patroa.

As janelas, pequenas, de cortinas coloridas, semelhantes às das bonecas, eram enfeitadas com vasinhos de flores, nos parapeitos, decorados por ela. Talvez eu fosse  considerada a mais bonita do bairro. A mais feliz, sim!

Aos poucos, foi tão rápido, os donos, envelheceram, filhos cresceram,  viajaram ou mudaram, não mais os vi. O entusiasmo diminuiu. Começou a decrescer o cuidado com paredes, jardins, telhados, culminando com chuva forte derrubando o gatinho de porcelana, minha atração.

A rua também se transformou, casas sendo demolidas, prédios altos surgindo, lotados de pessoas novas; lojas de bugigangas, tecidos, restaurantes modificaram antigos lares amigos, o sossego que existia, a natureza dominante que enfeitava a paisagem.

A melancolia que desconhecia, foi aparecendo. Aumentou muito com a morte dos meus donos, primeiramente, Sr. Arnaldo e, mais tarde, Dª Kiqui. Tentava animá-la, fazendo brotar uma rosa no jardim, ou abrir repentinamente uma janela, para entrar um pouco de ar. Que nada! Passava horas sentada, olhando para mim, pensando talvez no que  fui e no que me transformei. Tristezas da velhice! Chegou ao seu fim, quase levando-me junto!

Fui colocada à venda, para reforma, aluguel ou compra. Apavorei-me! Cada batida que sentia machucar meu coração já deprimido e só.

Muitos visitantes interessados, mas, desconheço o motivo, até agora, ninguém me comprou.

Esperançosa, outra família nova se interessando, aguço meus ouvidos e tento atraí-los, mostrando melhor os raios de sol que entram por algumas frestas existentes. Mas, nada. Não retornam.

Para meu desespero, escuto uma noite, vozes estranhas tentando invadir. Arrebentam as janelas de baixo, abrem as portas e entram. 

Pessoas esquisitas, falando alto, vasculham-me toda como se ainda houvesse algo de valor. Depois, procuram comida! Não encontram nenhuma sobra deixada pelos ratos da cozinha. Com palavrões, arrumam cobertas velhas e se instalam no meu chão, tomando antes uns goles de uma bebida forte porque dormem e roncam logo em seguida.

Pensei em fazer algum barulho, atrair algum guarda passante. Nem telefone, mais, possuíamos! Sabia fazer ligações, de tanto observar meus donos. Quem sabe, algum vizinho estranha o movimento e aparece. Ninguém escuta! Somente ruídos de carros buzinando, com pressa. À noite, ninguém passa, ninguém  dá atenção.

Fui invadida por malandros e vagabundos, que aumentam, cada dia mais. De vez em quando, um carro de polícia estaciona, dá uma espiada, faz perguntas, afugenta todos. Sinto-me aliviada e menos triste, mas assim que a poeira assenta, poeira do assunto, porque sujeira, há muita, eles retornam e inicia-se tudo.

De repente, uma briga séria, drogados e bêbados: Um crime! Um rapaz enraivecido ataca um velho com uma faca. Que susto, meu Deus! Acontecer tudo aquilo, dentro da sala, não aguentei...

Atordoada, sentindo também meu fim, percebo vagamente policiais chegando, pessoas entrando e saindo, corpo arrastado e levado. O outro, algemado. Um policial é colocado à porta. Seria guardada, afinal.

Tarde demais, fui sumindo antes de mim, dos meus tijolos que seriam finalmente destruídos. Perdi a vontade de viver. Que nova construção reviva, traga outras vidas, outras famílias, outras histórias!

Não consigo ver mais nada, parece que escorrego. Uma ventania, uma chuva forte, raios e trovões, atingem, de repente, a casa que eu fui. Janelas se abrem com força, portas arrombadas, telhas caem, paredes racham, pedaços tombam. Até os guardas, assustados, refugiam-se do temporal que ameaça aquela rua. Eu, ainda percebo, mas não me incomoda mais. Sinto o final de uma época, de um tempo.


A chuva passa tão rápida como veio. Silêncio total! No dia seguinte, alguns homens aparecem para examinar os estragos. Não entendem como, na cadeira de balanço do quarto, ainda vive uma senhora, desfalecida, semelhante ao quadro da sala, segurando nas mãos uma rosa vermelha, recém colhida do jardim.

O caracol e a borboleta. - Hirtis Lazarin

  O caracol e a borboleta. Hirtis Lazarin   O jardim estava festivo e cheirava a flor. Afinal de contas, já era primavera. O carac...