A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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FERRAMENTAS LITERÁRIAS

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Essas festas... - Cida Micossi

 


Essas festas...

Cida Micossi

 

— Eu sei de tudo.

— Tudo o quê?

— Mãe, não me engana.

— Mas, filho, não tenho nada que enganar a você ou a quem quer que seja.

— Tá. Pensa que acredito? Descobri tanto... descobri tudo. Tudinho!

—  Ah, não... não me venha com insinuações!

— Seja franca, não se omita! Você nos ensinou a agir sempre francamente.

Os olhos ardiam, o suor fazia com que ela se sentisse encharcada, enquanto uma tremedeira lhe dava a sensação de estar fora de seu corpo físico.

Continua:

— Estão dizendo que no encontro de comemoração do aniversário de sua formatura vocês apelaram, saíram do sério e a bagunça rolou solta. Tantos idosos aprontando, querendo agir como jovens, ah, mãe, que vergonha. Nunca imaginei que justamente você fosse me fazer pagar esse mico. Algumas de suas amigas estão desesperadas com a repercussão do evento e não podem voltar atrás. Elas postaram uma mensagem se desculpando. Você, mãe, deveria se lembrar de que, atualmente, a internet é terra de ninguém. Como pôde? Como puderam? Caiu lá, está perdida. Tantas vezes eu avisei...

Ela teve a sensação de estar afundando no solo, parecia que o chão se abria para engoli-la, ao mesmo tempo em que sentia-se levitar. Nenhuma das sensações havia experimentado antes e isso a aterrorizava.

***

Olhos arregalados, cabelos desgrenhados, sentou-se na cama: o filho e a nora, na porta do quarto, perguntavam se ela estava bem, se precisava de algo, pois eles tinham escutado alguns sons estranhos vindos do quarto dela.

Pegou o relógio: seis horas da manhã.

Enxugou o suor. Recompôs-se.

Virou-se para o outro lado e viu, aliviada, sobre a poltrona do quarto, o vestido novo estendido, esperando para ser usado na festa do aniversário de formatura, na tarde do dia que acabara de raiar.

 

quarta-feira, 27 de abril de 2022

BRINCADEIRA

IMPOTÊNCIA - Henrique Schnaider

 



 IMPOTÊNCIA

Henrique Schnaider

 

O automóvel zuniu no asfalto molhado, a alta velocidade desestabilizou o veículo que derrapou na curva, e acelerado ziguezagueou até bater no muro de arrimo.

Alceu era um rico empresário do ramo de autopeças e muito guerreiro. Começou do nada. Teve uma infância pobre. Era filho único e tanto ele como seus pais, batalharam para ter um mísero prato de arroz e feijão na mesa. Carne ou frango eram raridades.

Na juventude Alceu começou a trabalhar como empilhador de autopeças numa grande Empresa do ramo.

Tinha um sonho. Abrir uma lojinha de autopeças, pois entendia tudo do negócio.

Juntou com muito sacrifício, todo salário que ganhava e depois de cinco anos na batalha, finalmente conseguiu abrir na periferia, uma lojinha de autopeças.

O começo foi difícil, mas Alceu era inteligente e corajoso. Entrou de cabeça numa luta sem tréguas. Cresceu no ramo que gostava e daí subiu a montanha rapidamente. Abriu outra nova loja e desta vez, maior e num ponto bem melhor.

Foi de vento em popa e logo já possuía cinco lojas do ramo. Começou a alimentar o sonho maior que era comprar a grande loja onde começou a vida profissional.

O sonho não demorou muito para se tornar realidade e o menino humilde, se tornou o rei do mercado de autopeças.

Conheceu Mirtes, namoraram e logo se casaram com direito a festa de arromba.

A vida mudou para Alceu, pois na medida em que cresceu financeiramente, os problemas cresceram na mesma proporção. Começou a ser visado por uma quadrilha especializada em sequestrar e extorquir enormes quantias para poupar a vida de seus sequestrados.

Alceu passou a andar de carro blindado. Naquele dia saiu para viajar com Mirtes para o interior do Estado. Alceu cometeu uma falha imperdoável, dispensou os seguranças que sempre o acompanhavam.  

No começo da viagem tudo seguia normalmente. Porém Alceu notou que estava sendo perseguido por um carro preto. Como o carro de Alceu era potente, ele começou a aumentar cada vez mais a velocidade para poder escapar dos seus perseguidores.

E de fato o carro dos bandidos acabou sumindo do retrovisor, que por precaução continuou em alta velocidade por um bom tempo. De repente Alceu deu de cara com uma curva muito fechada. O tempo não ajudava pois caia uma garoa fina, suficiente para deixar o asfalto escorregadio.

Alceu tentou frear, mas o carro derrapou deslizando sem controle e bateu violentamente em um muro de arrimo, destruindo a frente e prensando o casal dentro do carro.

Mirtes estava presa nas ferragens, gemendo de dor e permanecendo por um tempo desnorteada. Finalmente voltando a si, olhou para o marido ao lado, muito machucado. O sangue escorria da boca e da cabeça.

Alceu mal se mexia gemendo baixinho. Mirtes se sentia impotente pois presa nas ferragens, não conseguia nem cuidar dela mesma. As forças se esvaiam lentamente, e o casal ali preso parecia condenado a uma morte lenta e dolorosa.

A noite caiu, o frio chegou e durante a madrugada Mirtes ouviu os últimos suspiros de Alceu, que pelo menos parou de sofrer. O dia clareou e os primeiros raios de sol surgiram.

Mirtes estava muito mal com dores no corpo todo. Mas, às vezes, a sorte sorri para as pessoas no momento certo. A cachorrinha Laika que estava passeando com o dono do Sítio situado do outro do muro de arrimo, começou a latir e se aproximar do carro acidentado, fazendo com que o senhor Antenor viesse atrás dela para ver o que chamava a atenção da Laika.

Antenor chegou e viu aquele quadro triste do carro destruído e dentro Alceu morto e Mirtes muito ferida. Imediatamente chamou por ajuda lá do sítio. Retiraram com todo cuidado Mirtes das ferragens, levando-a para o hospital mais próximo e também o corpo morto de Alceu.

Mirtes sobreviveu, mas nunca mais foi a mesma depois da perda de Alceu.


INVESTIGAÇÃO CONCLUÍDA - Hirtis Lazarin

 



INVESTIGAÇÃO CONCLUÍDA

Hirtis Lazarin                  

 

O casamento deles entrou em crise. Por mais que Luíza procurasse, não encontrava motivos para o que estava acontecendo.

Beto estava irreconhecível. O homem gentil e bem-humorado sumiu. Andava pela casa, de um lado pro outro, sempre resmungando: era a conta de luz muito alta, a comida salgada; ora era a música irritante, ora era a televisão que não podia ser ligada.

Ficava até de madrugada no computador e não admitia que a esposa se aproximasse. As perguntas ficavam soltas no ar sem resposta. Começou a sair mais cedo para o trabalho e ela falava sozinha à mesa do café.

Luíza e Beto não formavam um casal perfeito. Brigavam, discutiam quando as opiniões eram muito diferentes, ficavam até um tempinho sem falar, cada um querendo ser o dono da verdade. Mas tudo não passava de um joguinho bobo e, por trás da cara fechada e bicos, não se aguentavam de saudade.

Até então, caminhavam juntos, partilhando os mesmos ideais. Beto era advogado numa empresa conceituada e Luíza se especializava em “designer” de interiores. A casa nova e financiada cabia perfeitamente dentro do orçamento e ainda podiam se dar ao luxo de uma viagem internacional no período de férias.  Problema financeiro não existia.

Luíza precisava descobrir o que estava acontecendo.  Um casamento não se joga assim pela janela.  O mais cruel é suportar a primeira ideia que vem à cabeça de toda mulher: TRAIÇÃO.

Teve muita paciência até descobrir a senha do celular do marido.  O mais dolorido foi acessar as redes sociais; a coragem demorou uma semana pra chegar. Mexeu e remexeu o quanto pode e não encontrou nenhuma pista.  Teria ele outro celular?

Foi no sábado quando voltavam do supermercado que a paciência de Luíza se esgotou e a briga ultrapassou os limites do civilizado. Tudo começou com o gasto nas compras. Ela já tinha reduzido todas as despesas e não tinha mais como cortar.

Já à porta de casa, antes do carro entrar na garagem, Luíza soltou o cinto de segurança; queria fugir pra que o pior não acontecesse. Os braços compridos e fortes de Beto impediram-na de qualquer reação.

Ele pisou forte no acelerador e o carro preto zuniu no asfalto molhado. Arrastou cavaletes de uma construção, ultrapassou farol vermelho, entrou na contramão e quase atropelou pessoas que passavam na faixa de segurança. 

Alcançou a rodovia feito um desvairado, ziguezagueando na pista em velocidades que iam de cem a cento e oitenta quilômetros por hora.   Ouvia-se um “buzinaço” dos outros veículos que cruzavam a pista, em alerta aos motoristas.

Luíza sentia o pavor da morte.  Os gritos não tinham mais força; foram reduzidos a grunhidos de desespero.

E, numa curva fechada, Beto perdeu o controle. O carro se desestabilizou, bateu na mureta de arrimo e girou sobre si mesmo em trezentos e sessenta graus. Capotou várias vezes e despencou morro abaixo.

Tudo virou um emaranhado de lata contorcida e dois corpos. Ele morreu no local e a esposa só voltou pra casa após dois meses de internação.

Ainda em recuperação e fazendo fisioterapia, Luíza esperava o momento pra começar uma investigação. Nada fazia sentido. Nada justificava aquele revés na vida...

E, numa tardinha bem fria de inverno, a campainha toca. Era um oficial de justiça e uma intimação judicial de despejo por falta de pagamento das prestações da casa financiada.

Luíza não precisava investigar mais nada.

 

ACIDENTE DO DESTINO - Hélio Fernando Salema

 



ACIDENTE DO DESTINO

Hélio Fernando Salema

 

Antônio Carlos liga para sua esposa Mirtes e avisa que recebeu um convite para uma reunião numa chácara no interior. São colegas que irão se reunir com as famílias.

Pede para ela arrumar as malas, pois partirão hoje à noite e só voltarão no domingo no fim do dia. Passa informações sobre o lugar em que ficarão hospedados temperatura, programação etc.

Na realidade ele lembrou que no sábado fará vinte anos que eles se conheceram numa festa numa pequena cidade. Conseguiu reservar hotel e pretendia fazer-lhe uma surpresa.

Quando chegou à casa Mirtes já estava pronta. Tomou banho e se arrumou. Colocou as malas no carro e saíram, pois, ele sabia que a estrada era perigosa, principalmente à noite. Só não imaginava que pegaria chuva forte.

A empolgação de Antônio Carlos era semelhante à daquele dia em que ele e mais três amigos foram a uma festa de São João numa pequena cidade. Todos foram entusiasmados pela perspectiva de conhecerem belas moças que diziam haver naquela festa tradicional.

Quando chegaram, a alegria dos quatros jovens era a de crianças ganhando doces de Cosme e Damião. Uma festa típica com barracas enfeitadas, fogueira, dança de quadrilhas, pau de sebo, pessoas vestidas à caráter e muita alegria.

Poucos minutos depois Antônio Carlos viu uma linda jovem acompanhada de outras duas que se dirigiam a uma certa barraca de doces, cujo nome era muito sugestivo “BARRACA DO AMOR”. Aquela que lhe chamou a atenção também lhe dirigiu um olhar significativo. Experiente que era em conquistas, logo se dirigiu àquela barraca.

Ao se aproximar viu que a sua jovem predileta se deliciava com uma cocada. Ele olhando os demais doces percebeu um dos seus favoritos, doce de leite com chocolate. Solicitou um à vendedora e foi prontamente atendido.

Ao ver que as outras moças se afastaram, aproximou-se e puxou conversa:

— É o seu doce preferido?

Ela olhou nos olhos dele e disse, sorrindo:

— Sim.

Com este SIM iniciava uma relação que no dia seguinte completaria vinte anos. Antônio Carlos e Florinda continuaram conversando ali perto da barraca por muitos minutos. Até que foi anunciado que iria começar a apresentação da Quadrilha. Ela se entusiasmou e perguntou se não iria ver. Ele concordou, logicamente, e olhando para o balcão da barraca viu algo, pegou e entregou a Florinda:

— Dizem que é a MAÇÃ DO AMOR.

Ela sorrindo aceitou e foram para o local da quadrilha. Ela depois de saborear alguns pedaços ofereceu a ele. Assim ambos apreciaram o fruto.

Ficaram admirando a dança até que o locutor informou que naquele momento iniciaria uma quadrilha para todos. Muitas pessoas correram para dentro da quadra posicionando-se. Florinda pegou a mão de Antônio Carlos e o puxou até junto aos demais. Dançaram e se divertiram como nunca.

Saíram da quadra caminhando alegremente, quando ele viu uma pequena praça com um banco vazio, os demais ocupados por casais. Não teve duvidas, foram rapidamente sentar e descansar.

Assim que readquiriram as forças, ele a abraçou e se inclinou para beijá-la. Sutilmente desviou a boca, de modo que os lábios dele tocaram só no rosto dela. Sem se dar por vencido manteve a posição e sussurrou:

— Gostaria de sentir o sabor da cocada.

No fundo do poço dos sentimentos mais profundos da atração natural, ela sentiu florir a força sublime dos desejos. E só no pensamento: “também gostaria de sentir o sabor do doce de leite”. Em seguida os lábios tornaram-se frutos dos sabores e desejos.

Esse beijo foi lembrado e replicado inúmeras vezes com outros sabores, mas com a mesma intensidade.

 

 

Assim, pela primeira vez, o casal usava o carro novo na estrada. Aquele que Antônio Carlos vinha há muito tempo admirando. Que na semana anterior, ao passar por uma concessionária viu chegando, e era justamente da sua cor preferida, preto.

Logo no inicio da viagem, Antônio Carlos teve algumas dificuldades com tudo de moderno que havia. As vezes se embaraçava com tantos botões e informações apresentadas no painel.

Mirtes perguntou pelas outras famílias. Ele respondeu que já estavam na estrada, saíram mais cedo.

No inicio da viagem tudo transcorria muito bem, como o “sonho” de Antônio Carlos havia sido imaginado.

Repentinamente começou a chover. Cada minuto que passava ficava ainda mais forte. Por estarem num carro novo e moderno, nada parecia preocupá-los, tanto é que não perceberam a alteração da chuva, tornando-se um terrível temporal.

Quando Mirtes avistou uma placa que indicava a próxima cidade, lembrou a festa em eles se conheceram. Com um raio de luz lhe veio à memória a data, justamente a do dia seguinte.

Comentou com o marido. Este apenas deu um sorriu malicioso. Mas foi o suficiente para que ela percebesse a intenção dele. 

Invadida por tanta emoção que não lhe cabia, e a medida que olhava para ele, aumentava sua vontade de correr, pular, gritar e saudar a ocasião.

Sem pensar e nem imaginar o que estava fazendo, soltou-se do cinto de segurança, atirou-se sobre ele e deferiu-lhe um forte abraço e muitos beijos.

O carro que estava em alta velocidade não conseguiu fazer a curva, desgovernou-se e bateu fortemente.

Mirtes foi atirada contra o vidro, sentiu a cabeça doer, depois as pernas, e em seguida sentiu que ficaram presas. Olhou para o lado e viu o marido preso no cinto de segurança, porém inerte.

O estrondo da batida dissipou-se. Sentiu um silêncio que veio lentamente penetrando no seu corpo, tomando-o para si. Percebeu que seu corpo assim ficava mais leve à medida que o silêncio ia aumentando até tornar-se um SILÊNCIO ETERNO.

Somos todos iguais - Alberto Landi

 




Somos todos iguais

Alberto Landi

 

Todo ano, no dia 2 de novembro tenho o costume de visitar meus parentes que não estão mais nessa vida e levo flores ao túmulo gelado de mármore de meus avós.

Penso que cada um deve fazer a sua homenagem como pode.

Este ano aconteceu comigo uma coisa muito estranha depois de ter cumprido essa triste missão.

Veja o que aconteceu!

Aproximava-se o horário de fechamento do cemitério, eu vagarosamente estava para sair e me distrai, admirando algumas sepulturas que mais pareciam obras de arte. Mas uma delas me chamou atenção que tinha os seguintes dizeres:

Aqui dorme em paz um nobre industrial, proprietário de vários imóveis, falecido em 31 de dezembro.

Ali havia brasão e coroa, uma cruz feita de lâmpadas, vários buquês de rosas com uma lista de luto, velas e castiçais.

Bem ao lado deste ilustre morador, havia outro pequeno tumulo, abandonado, sem nenhuma flor, somente uma pequena cruz. E sobre a cruz lia-se apenas: gari  Domenico Pazzi.

Olhando o túmulo, dava pena, nem sequer havia uma lamparina.

Esta é a vida, pensei! Este pobre homem não esperava ser um mendigo no outro mundo.

Enquanto refletia sobre isso, já era noite e o cemitério foi fechado.

Fiquei trancado como se fosse um prisioneiro, com muito medo na frente das velas.

De repente, o que vejo de longe?  Duas sombras se aproximando de mim 

Estranho! Estou acordado, durmo ou é fantasia?

Era o industrial, com charuto, chapéu e, sobretudo, o outro atrás dele com uma ferramenta com uma vassoura na mão, era o gari.

Eles estão mortos e aqui presentes?

Quando estavam bem próximos, o industrial parou de repente, se volta lentamente... Calmo , diz a Domenico:

— Meu jovenzinho! Eu gostaria de saber de você, seu bastardo, com que ousadia e como você se atreve, ser enterrado, ao meu lado, eu que venho de uma família nobre. Cheguei há pouco de uma viagem à Terra Santa, contemplei os mares intermináveis do deserto, as curvas e arabescos das mesquitas e o chamado à prece dos fieis sarracenos, experimentei as especiarias aromáticas, as cores vívidas, o gosto apimentado da comida, e o brilho do sol lindo, ao se por sobre Jerusalém, e agora infelizmente estou aqui. E você?

— Sou apenas um gari, uma das profissões mais nobres.

— Linhagem é linhagem, tem que ser respeitada, mas você perdeu o senso e a medida, seu corpo foi enterrado no lixo.

— Não posso suportar a sua proximidade fedorenta, é necessário que você procure uma vala e que seja distante!

— Mas senhor empresário, não é culpa minha eu não fiz nada de errado, minha família me deixou aqui, o que fazer se eu já estava morto? Se estivesse vivo seria diferente, levariam em uma caixa os ossos e iria para outra vala.

— E o que você está esperando? Que minha raiva atinja você? Se eu não fosse um nobre, já teria dado lugar à violência. Essa conversa está me chateando, se perco a paciência, esqueço que estou morto e queimado.

— Mas quem você pensa que é um deus? Responde o gari.

 — Quero que você entenda que aqui dentro somos todos iguais. Você está morto e eu também.

— Porco imundo, como você se atreve, a se comparar comigo? Sou ilustre e de fazer inveja a muitos príncipes reais.

— Você é fantasioso diz o gari. Um rei, um magistrado, um grande homem ao passar por este portão, já perdeu tudo, a vida e o nome também, você não se deu conta ainda?

— Portanto me escute, não se faça de orgulhoso, suporta-me vizinho. Essas diferenças são feitas apenas pelos vivos. Pertencemos a outro mundo!

Estamos no mesmo nível a sete palmos!

Festa de Iemanjá - Do Carmo

 


Festa de Iemanjá

Do Carmo

 

É incrível como nossa mente é um universo inesgotável de lembranças adormecidas, que a um fato informal e inesperado desperta, trazendo recordações guardadas há anos.
Foi o que aconteceu comigo ontem, quando lendo um relato de recordações de um amigo, levou-me ao distante e colorido tempo, de minha adorável adolescência.

Era uma doce e mística tarde de fevereiro, precisamente dia dois, que passeamos pelas areias mágicas da Praia Grande, que na época chamava-se Oceânica Amábile, em homenagem à esposa do proprietário da maior parte desse litoral, fomos surpreendidos, meus pais e minha irmã, com uma festiva comemoração à rainha do mar, Iemanjá, celebrada no Candomblé – religião ativa na Bahia.

A título de informação há duas músicas do inigualável Dorival Caymmi, dois de fevereiro e Rainha do mar.

Lembro, e sinto ao recordar a mesma emoção que senti com a religiosidade do povo. O carinho que demonstravam com as oferendas dos doces e flores, o cuidado com os barquinhos levando os bilhetes com os pedidos de graças, com amor e muito respeito demonstravam fé. Todos esses rituais, estendiam-se ao vestuário dos participantes, que aos raios do sol, brilhavam numa brancura engomada.

O espaço era cercado com flores e atabaques, formando uma praça onde tocavam músicas místicas, as quais a assembleia acompanhava cantando no centro da praça, tendo no centro uma bonita imagem de Iemanjá, enfeitada com flores, formando colar, pulseira e coroa.

Os participantes dançavam ao som dos atabaques, cantavam hino de louvor à sua deusa, era um lindo espetáculo no centro da pracinha.

Hoje, mesmo depois de muitos anos, ainda sinto o perfume do incenso queimando, soltando uma leve e delicada fumaça que envolvia o ambiente. Tudo muito esotérico, sensível, tive a mesma sensação que me tocou fortemente tempos passados.

Ah! Encontrei a letra das músicas que citei, do imortal Dorival Caymmi, homenageando a bela Iemanjá:

Dois de Fevereiro

 

Dia dois de fevereiro
Dia de festa no mar
Eu quero ser o primeiro
A saudar Iemanjá

Escrevi um bilhete pra ela
Pedindo para ela me ajudar
Ela então me respondeu
Que eu tivesse paciência de esperar
O presente que mandei pra ela
De cravos e rosas chegou
chegou, chegou, chegou
Afinal que o dia dela chegou
chegou, chegou, chegou
Afinal que o dia dela chegou

Rainha do Mar

 

Minha sereia é rainha do mar
Minha sereia é rainha do mar
O canto dela faz admirar
O canto dela faz admirar
Minha sereia é a moça bonita
Minha sereia é a moça bonita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Ai, tem dó de ver o meu penar
Ai, tem dó de ver o meu penar

 

 

 

Impotência - Adelaide Dittmers

 


Impotência

Adelaide Dittmers

  

O automóvel preto entrou em uma curva em alta velocidade.  O veículo derrapou no asfalto molhado, o que o desestabilizou e acelerado ziguezagueou até bater no muro de arrimo.

Mirtis voltou a si atordoada.  Estava presa nas ferragens e desnorteada olhou para o marido atrás do airbag.  Não havia a menor chance de sair dali sem ajuda.  Suas forças esvaiam muito depressa. Examinando o celular sem bateria atinou a vaguidão da rodovia. Ninguém sentiria falta deles...

A memória foi voltando devagar.  Pareciam lampejos, que escapavam de sua cabeça. A discussão acirrada com o marido. O intempestivo modo de ele responder a

ela.

Por que mesmo brigaram?  Perguntou-se e com muito esforço lembrou-se de que fora por algo que a estava irritando.  Ela quis sair mais cedo de uma festa na casa de amigos, que moravam em uma pequena cidade do interior e ele insistiu em ficar mais tempo, esvaziando um copo de cerveja atrás do outro.  Nos últimos tempos estava bebendo muito, mas sempre que lhe perguntava o motivo, recebia respostas evasivas. Além disso, trovões e raios ao longe anunciavam a chegada de um temporal.

Quando por fim saíram e entraram na estrada, pingos grossos arrastados por um forte vento começaram a cair de um céu escuro.  A chuva foi aumentando em intensidade e a visibilidade ficou quase nula.

O medo e a raiva acenderam nela uma revolta incontida, que a fez recriminar João.  Ele, tomado pela bebida, respondia de maneira violenta, e irado, acelerou o carro. A curva fechada apareceu diante deles e tudo aconteceu em um segundo.

Agora iam morrer ali.  Tentou se mexer.  A dor em todo o corpo era insuportável.  Sentiu que ira apagar outra vez, quando ouviu que tentavam abria a porta.  O vidro da janela foi quebrado e a chuva molhou-lhe o rosto.  Diante de si, um homem pedia para terem calma.  Por um celular, pediu socorro.

Olhou para o lado, o marido estava inerte e ela desfaleceu novamente.   

Quando acordou, estava em uma cama.  Atordoada, tentava focar as pessoas e o lugar a sua volta.  Aos poucos as imagens distorcidas foram ficando mais nítidas.  Olhos atentos fixavam-se nela.

— Ela está voltando.  Disse um homem de azul.

— Onde estou?  Perguntou com um fio de voz.

— Em uma UTI.  Você apagou por sete dias, mas está se recuperando.  Respondeu o homem de azul.

— O que aconteceu? Não me lembro de nada! Perguntou assustada.

O médico colocou a mão sobre a dela e disse:

— Aos poucos, sua memória vai voltar.  Você e seu marido sofreram um acidente.

— E onde ele está? Disse com uma voz quase inaudível.

— Depois falamos sobre ele.  Agora descanse.

Ela fechou os olhos, exausta.

Dias se seguiram e ela foi se recuperando lentamente.  Sofreu várias fraturas e foi avisada de que teria de usar uma cadeira de rodas por uns tempos. A memória foi voltando e uma manhã ela tornou a perguntar do marido.  Soube então que não tinha resistido aos ferimentos e morrera.

Mirtis ficou sem reação ao ouvir a notícia pela irmã que a acompanhava. Era como se o trauma e as dores por que estava passando, tivessem sugado quaisquer emoções de sua alma.

Fechou os olhos como se quisesse fugir da realidade que a rodeava.

Semanas depois, foi para a casa da irmã, que iria cuidar dela.  Certa tarde soube que João estava enfrentando uma grave crise financeira, quando se deu o acidente e ela compreendeu o motivo do seu abusivo uso do álcool.

Agora dependia dos outros tanto física como financeiramente e sentindo-se impotente diante dessa situação, desejou ter morrido naquela fatídica curva da estrada.

 

IMPOTÊNCIA - Leon Vagliengo

 


IMPOTÊNCIA

Leon Vagliengo

 

Ou, como pequenas ofensas podem provocar uma grande tragédia.

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Casado com Mirtes havia quarenta anos, até os sessenta e oito de idade Oswaldo nunca teve problemas de saúde. No máximo um resfriado ou uma gripezinha, poucas vezes, nada mais. Sempre se cuidou muito bem mediante uma alimentação saudável, a prática de esportes e a realização dos exames médicos preventivos de praxe.

Tudo corria com normalidade até que, à noite, começou a ter que interromper o sono para ir ao banheiro urinar. De início não deu muita importância, porque acontecia esporadicamente, uma noite ou outra, apenas uma vez. Mas ao longo de dois anos isso começou a ocorrer com maior frequência, até que todas as noites passou a levantar-se duas, três e até quatro vezes, para atender aos reclamos de sua bexiga.

Na consulta periódica seguinte, o médico urologista avaliou os exames laboratoriais de Oswaldo, fez o toque, considerou os seus setenta anos de idade e sentenciou: sua próstata está normal, mas a hiperplasia benigna avançou bastante e o senhor deverá tomar este remédio de uso contínuo que está na receita, para urinar melhor e evitar o risco de uma infecção urinária. Na sua idade começa a ser perigoso.

Oswaldo voltou da consulta profundamente encucado. Ouvira já, de seus amigos, que esse tipo de remédio causa queda da libido e dificuldades também físicas para o relacionamento amoroso. Chegou a comentar isso com o médico, mas ouviu dele que isso é folclore, conversa mole, o remédio não tem esse efeito.

Nos dias seguintes passou a tomar o remédio, seguindo a recomendação médica, mas o receio não o abandonava. Pensava em Mirtes, sua linda esposa, oito anos mais jovem, sempre muito disposta para ele, provocante e carinhosa, sua musa sensual. Não poderia deixá-la frustrada em seus desejos. E, também, não queria passar pela humilhação de dizer a ela de seus temores e explicar as dificuldades por que passava. Não achava apropriado para um homem admiti-las. 

Se o médico estava certo e não foi o remédio, porém, a preocupação ou a idade começaram a ter o efeito temido. No início, sempre que as intimidades com Mirtes começavam a esquentar, o pensamento “será que eu consigo” aparecia, incomodava, mas era logo dominado pela forte emoção erótica obtida com as preliminares e tudo funcionava bem. Com o tempo, porém, a preocupação de Oswaldo foi aumentando e um dia venceu ao erotismo, apagando o encanto que sustentava o ato, e ele falhou.  Uma vez, alguns dias mais adiante outra, depois novamente, e a autoconfiança acabou desaparecendo.

Mirtes, de início compreensiva, tentou reanimá-lo, dizendo que “isso é normal, acontece de vez em quando até com gente mais jovem”. Evidentemente, esse comentário de nada serviu. A cada insucesso, a frustração e os temores de Oswaldo só aumentaram. Parou de tomar o remédio, mas não adiantou; seu psicológico não reagiu. Mesmo querendo, o receio de novo fiasco fazia com que evitasse ensejos de intimidade com a esposa, e minava a sua vontade de possuí-la, antes tão frequente.

Temeroso, Oswaldo se esquivava desses momentos; com as esquivas, deixou de receber os estímulos sensuais que encontrava em Mirtes, e assim a libido também o estava abandonando. Mirtes percebeu que já não o atraía mais e foi mudando de atitude. De início fora compreensiva e confortadora, depois passou a sentir ciúmes, reclamando que ele não gostava mais dela. Então, sem perceber como isso era torturante para o marido, tornava-se exigente:

— Você tem que conseguir! — Dizia. — Como não consegue? Está tudo igual, concentre-se! Faça um esforço! A não ser que você não queira mesmo — completava irônica, piorando a situação. Uma noite, chegou a perguntar ao marido se ele estava tendo um caso, se tinha uma amante.

Foi-se a sedução.

Os momentos íntimos outrora partilhados por tantos anos entre os dois, com tantas carícias e palavras carinhosas, o clima romântico e a magia que se instalavam nessas oportunidades, desapareceram. Foram substituídos por atitudes quase mecânicas, meros exercícios físicos muitas vezes frustrados, que pouco ou nada tinham a ver com amor.

        Essa situação foi perdurando, sem indícios de ser superada. Oswaldo já estava muito estressado. Sentia-se incapaz de fazer aquilo que sempre fizera tão bem e com tanto prazer, que era deixar sua esposa sexualmente satisfeita e feliz. Até que um dia os pensamentos lhe fluíram na mente de forma precipitada, maldosa, apavorante: Mirtes está muito enciumada, desconfiada, pode até procurar um outro homem; será que pode? Claro que ela nunca faria isso, sempre foi uma mulher fiel, ela me ama; mas eu não a satisfaço mais, ela pode, sim; não, ela não pode; não faria isso, não teria coragem; eu não aguentaria, isso não pode acontecer...

        Pensamentos assim atabalhoados se repetiam de forma doentia, quase diariamente, aumentando a tensão de Oswaldo, e ele, sem perceber, mudou muito as suas atitudes. Antes sempre alegre, sempre com um sorriso nos lábios, sempre carinhoso e atencioso com todos, tornou-se bipolar: às vezes triste e desanimado, parecia completamente derrotado; outras vezes ficava muito nervoso, dava respostas ríspidas e tornava-se bastante desagradável.

Mirtes não sabia mais como agir. Não conseguia entender o que estava acontecendo com o seu marido, antes tão calmo, tão educado, tão amoroso, tão carinhoso, tão fogoso, tão ardente; agora nervoso, grosseiro, briguento, nem ligando mais para ela.

Precisava fazer alguma coisa, tomar alguma atitude. Teve, então, a ideia de passarem uns dias em algum hotel, num ambiente romântico, para tentar um recomeço. Procurou um belo roteiro, esperou um momento tranquilo e propôs a viagem para Oswaldo. Ele entendeu, gostou da ideia e logo concordou, também com a esperança fantasiosa de que novos ares poderiam ajudá-lo a recuperar-se.

As curtas férias de cinco dias tiveram mesmo bom efeito. O hotel era agradável e acolhedor, a praia era tranquila, a pequena enseada oferecia um mar calmo, ótimo para mergulhos refrescantes seguidos de quentes banhos de sol. Alguns passeios a pé, de mãos dadas, conversas amenas nas boas refeições; especialmente no jantar, que coroava o clima romântico de cada dia. Numa daquelas noites, completamente esquecidos das dificuldades que haviam passado, até o amor teve cenário: total, completo, tórrido, mas sublime, em sua expressão maior para o casal. No sábado, na despedida com um jantar especial, dançaram e celebraram felizes o sucesso daqueles dias maravilhosos de descanso.

O domingo, porém, começou mal, anunciando que seria um dia difícil.

Muito vinho à noite, Mirtes acordou com dor de cabeça, uma forte enxaqueca. Na refeição da manhã, no hotel, derramou café na bermuda branca, a sua preferida, formando-se nela uma grande mancha escura. Estragou a peça, sem dúvida.

Sim, apenas um pequeno e desagradável acidente comum, pode acontecer de vez em quando com qualquer pessoa. Ficou chateada e esperava ouvir palavras carinhosas de consolo de seu marido, mas as férias foram curtas, e Oswaldo, novamente muito nervoso já pensando no retorno, foi inesperadamente grosseiro:

― Você é uma desastrada, mesmo! Sempre fazendo alguma besteira!

Foi aí que tudo recomeçou.

Mirtes sentiu-se magoada, ofendida, indignada, e respondeu à altura:

­— Estúpido!

O clima entre eles ficou tenso, nem terminaram o café da manhã. Voltaram para o apartamento do hotel, arrumaram as malas de cara feia e desceram para encerrar a conta. Colocaram a bagagem no porta-malas do carro e partiram pela estrada em retorno para casa. Mirtes estava mesmo enfurecida. Não se conteve e repetiu:

— Você é mesmo um estúpido!

Para quê foi dizer isso? A discussão se instalou novamente e não parou mais.  Envenenado pelas ofensas mútuas, proferidas com as vozes cada vez mais alteradas, Oswaldo foi acelerando, acelerando, a velocidade aumentou muito, superou os limites de segurança, até que ele perdeu o controle do veículo.

Foi de repente. O carro preto derrapou no asfalto molhado, a alta velocidade o desestabilizou, passou direto pela curva e seguiu descontrolado, em ziguezagues, até que desceu um barranco e bateu numa árvore, lá embaixo, rodas para cima, longe das vistas de quem passasse pela rodovia.

Então...

Mirtes estava sangrando muito, presa nas ferragens. Desnorteada, olhou para o marido sem vida, caído sobre o volante, um grande ferimento na cabeça. Ela não tinha a mínima chance de sair dali sem ajuda. Suas forças se esvaiam muito depressa. Desistiu do celular sem bateria, atinou para o ermo do local. Ninguém sentiria a falta deles a tempo...

Em seus momentos finais, Mirtes sentiu e entendeu como pode ser perversa uma impotência.

 

 

O Olhar - Adelaide Dittmers

 


O Olhar

Adelaide Dittmers


Os veleiros pintavam o mar de diversas cores.  A espuma branca das ondas batia com força nos cascos. As velas cuidadosamente dispostas a favor do vento.  O mar vestia-se de um verde claro e transparente, que deixava vislumbrar no seu interior cardumes diversos.

Osvaldo conduzia a embarcação com maestria.  Forte, pele bronzeada, bonito, era admirado pelas mulheres e invejado pelos amigos.  Destacava-se em tudo o que fazia. Publicitário de sucesso colheu vários prêmios na profissão.  Sempre guiado pela razão, ponderava sobre cada passo dado para alcançar seus objetivos.

Com segurança, Oswaldo navegava em direção ao ponto de chegada.  Mais uma vez ganharia a regata.

No barco, outro rapaz o ajudava nas manobras com eficiência e atenção.  Celso, irmão de Osvaldo, era o companheiro no iatismo, esporte que adorava.  Amava o mar, sentir o vento e o balançar do barco, provocado pela dança das ondas. Sério, introvertido, tímido, o oposto do irmão.  Preferia ficar na sombra, ao contrário do irmão, que adorava ser admirado e bajulado.   A diferença entre os dois era marcante.  Um era o sol, o outro, a lua. Um iluminava tudo à sua volta, o outro refletia essa luz.  Um era a razão, o outro a emoção. Tinham visões de vida muito diferentes e, apesar do respeito que Celso tinha pelo irmão, a única coisa, que os aproximava, era a paixão pelo esporte.

Celso formara-se em filosofia o que o levava a observar e questionar a natureza humana, as fraquezas e contradições dos homens.  Seu objetivo, nas regatas de que participava, não era apenas ganhar, mas desfrutar do desafio, enquanto Osvaldo adorava ganhar os louros da vitória e ser admirado pelas conquistas.

O veleiro foi se aproximando rapidamente da linha de chegada e aplausos estouraram, quando a atingiu.  Mais uma vitória! Foram cercados pelas pessoas e Osvaldo sorrindo apertava com um prazer intenso a mão de seus admiradores.  Celso, ao contrário, conseguiu esgueirar-se e foi se afastando.

Mais adiante, uma bela jovem veio ao seu encontro e o abraçou carinhosamente, cumprimentando-o pela vitória.  Ele retribuiu com um sorriso tímido.  Era a namorada do irmão.  Conversavam animadamente, quando Osvaldo chegou, abraçou e beijou Marta.  No entanto, ela desviou o olhar para Celso, que viu nos olhos da moça algo diferente, que o fez estremecer por inteiro. O que significaria aquele olhar? O irmão estava com ela há dois anos, mas ultimamente notava que ela estava mais distante de Osvaldo.  Muitas vezes desviava-se dos carinhos do namorado com um sorriso forçado.  E agora aquele olhar intenso e angustiado, que lhe lançou.

Ele foi se afastando devagar.  De repente, notou que uma raiva súbita lhe subiu pela garganta. Admirava o irmão, mas ao mesmo tempo não apreciava a necessidade de ele aparecer. No âmago de seu ser sufocava o sentimento de saber que ele era egocêntrico e superficial. Marta era algo a ser exibido e não uma pessoa com alma e emoções.

O que estava acontecendo? Por que estava revoltado com isso? Não era de sua conta.  O que aquele olhar tinha arrancado de dentro dele?  Um pensamento faiscou em sua cabeça e iluminou o que não ousara ver: o sentimento que brotara silenciosamente no seu coração. Estava apaixonado pela namorada do irmão. Sacudiu a cabeça, como se quisesse espantar essa descoberta.

Entrou no carro e saiu em disparada.  Aquele olhar, que lhe mostrou que ela nutria algo por ele o estava desestabilizando. 

Tentava entender racionalmente suas emoções, mas era impossível.   Há algum tempo, tentava sufocar o desprezo pelas atitudes do irmão.  A vaidade desmedida, o egocentrismo, a necessidade de vencer sempre e ser incensado por isso. 

Será que o amor que sentia por Marta e que não quisera tomar consciência, o fez enxergar tudo o que sentia pelo irmão?

Não, ele não iria mais se submeter às vontades de Osvaldo.  Iria lutar por Marta, custasse o que custasse.

Chegou à casa e entrou como um furacão, mal cumprimentou os pais, que se entreolharam preocupados.

— Vou tomar um banho!

— Como foi a regata?  Perguntou o pai.

— Vencemos.

E saiu da sala.  O pai virou a cabeça para a mãe, encolhendo os ombros e virando as mãos para cima, sem entender o que estava acontecendo com o filho, sempre tão calmo e controlado.

Celso entrou no quarto e jogou as roupas com força.  Estava cansado do menosprezo de Osvaldo, que se sentia o melhor em tudo e até no esporte não reconhecia a ajuda dele para conquistar as vitórias.

Depois do banho, resolveu sair e dar uma corrida para espairecer.

— Aonde você vai, filho? Perguntou a mãe?

— Vou dar uma volta.

— Você não vai almoçar?

— Não, não estou com fome. E saiu.

O que estaria acontecendo com ele? Pensou a mãe.

Precisava correr para pôr a cabeça em ordem e decidir como iria agir.  Foi a um parque perto de sua casa e correu até cansar.  Sentou-se em um banco à beira do lago, cujas águas calmas davam às pessoas uma sensação de paz e comunhão com a natureza.  Abaixando-se pegou pequenas pedras, que atirou na água, o que assustou os cisnes, que por ali passavam, mas precisava jogar fora o que lhe agitava a alma e agir com a razão e não com a emoção.

Pegou o celular e seu dedo parou sem apertar o botão.  Apertou os lábios. Faria ou não faria aquela ligação.  Sim, tinha que ligar para ela. E pressionou o botão. 

A voz de Marta soou nos seus ouvidos.

— Celso? Tudo bem?

— Não, Marta! Não estou bem e nem sei como começar.

— O que aconteceu?

Ele estremeceu.  Será que estava certo e o que vira no olhar dela realmente significava alguma coisa? Ficou calado, paralisado pelo medo.

— Celso? Você está aí?

— Desculpe Marta! Estou nervoso.

— Por quê?

Como uma enxurrada, as palavras saíram de sua boca como se estivesse vomitando toda a sua emoção.

— Posso estar sendo um idiota, mas quando você olhou para mim hoje de manhã, li nos seus olhos algo que me atingiu como um raio e me tirou do prumo.  Vi tristeza e desconcerto, mas também vi paixão.

Parou para respirar.

— Desculpe se confundi tudo.  Afinal, você é a namorada do meu irmão.

O silêncio da jovem o deixou mais ansioso. “O que eu fiz”, pensou.

De repente, ela disse devagar, pesando cada palavra.

— Seu irmão saiu daqui há pouco.  Tivemos mais uma discussão. Não aguento mais sua indiferença e muitas vezes ser posta de lado. Suspirou fundo e prosseguiu:  O que você viu no meu olhar é sim amor. Me apaixonei pela sua simplicidade, seu modo de ver as coisas, a sua delicadeza em tratar as pessoas.  E não estou sabendo como lidar com isso.

Uma mistura de sentimentos contraditórios o assaltou: alegria e remorso, era amado e traidor. Era como se estivesse sendo arrastado por uma forte correnteza de emoções.

— Também não estou sabendo o que fazer, mas ao mesmo tempo, não temos culpa.  Aconteceu!

E com essas palavras, procurou justificar a si mesmo sua conduta.

— Venha até aqui.  Precisamos conversar pessoalmente e com calma.  Disse ela.

Foi uma longa conversa em que resolveram contar a Osvaldo o que estava acontecendo.

Na manhã seguinte, Celso foi ao apartamento do irmão, que se surpreendeu com a visita dele tão cedo. Com um tom muito sério ele disse que precisavam conversar.

A surpresa estampou-se no rosto de Osvaldo.  Sentaram-se um de frente para o outro.  A tensão pairava no ar.

— Desembucha!

— Me apaixonei!

— E isso é tão grave assim? Osvaldo disse com um ar zombeteiro.

— É.  Pela Marta e sou correspondido.  Aconteceu!

Osvaldo levantou-se.  A expressão transtornada.
— Você tem coragem de vir aqui me dizer isso! Meu próprio irmão me apunhalar pelas costas!

Celso empalideceu:

— Tudo foi muito de repente! Nem sei como explicar.

— Isso não tem explicação. E foi para cima do irmão, desferindo-lhe um bofetão no rosto. 

Celso ergueu os braços para se defender do irmão, que descontrolado, continuava a açoitá-lo. Dona Júlia, a empregada de alguns anos, entrou na sala assustada com os gritos e os sons das pancadas de Osvaldo.

— Parem com isso!  E tentava separá-los.

— Por favor, Dona Júlia, saia daqui.

— Não saio. Não sei o que está acontecendo, mas você tem que se acalmar.

Como se tivesse recebido um balde de água fria, ele abaixou os braços e jogou-se na poltrona. Os olhos destilavam ódio.

— Sempre te apoiei nas tuas inseguranças e o que recebo de volta...

— Soube que vocês não estão se entendendo mais.  Celso respondeu, tentando se recuperar das agressões.

— Verdade! Nosso relacionamento está se esgarçando.  Ando cansado das exigências dela.  Quer atenção o tempo todo.  Não sou homem para isso. Posso ter as mulheres que quiser. Mas terminar a relação pela traição de meu irmão. 

— Nós nos apaixonamos sim, mas só descobrimos isso ontem e vim dizer a você.

— Você não entende nada mesmo! Eu é que tinha que terminar primeiro e não ela vir amanhã e dizer que tudo está acabado, depois de você confessar a sua traição.

Celso sacudiu a cabeça ao compreender a reação do irmão.  Ele não estava sentido pela perda da namorada.  Estava furioso por ter sofrido uma derrota. Um esgar de asco contraiu as feições de Celso. Que tipo de homem era ele?

Controlou-se para não dizer tudo o que estava sentindo e saiu porta afora.

Entrou no carro e tentou se acalmar.  Encarar pela primeira vez a personalidade do irmão o surpreendeu. A admiração e o orgulho que tinha por ele foram por água abaixo. De repente, porém, um pensamento surgiu imperioso.  E ele, o que sentia pelo irmão, será que não era inveja? O fato de se sentir em segundo plano, bem no âmago do seu ser, não o tinha incomodado? Quando decidiu lutar por Marta, não sabia o que ela significava para o irmão e assim mesmo foi em frente, mesmo sabendo que poderia causar sofrimento a ele.  Será que poderia se considerar melhor do que ele?

Subitamente se sentiu apaziguado.  Osvaldo tinha defeitos, mas ele também não era santo.  Não iria mais ser o reflexo do irmão, mas seriam dois homens com defeitos e qualidades, que se respeitariam.  O orgulho de Oswaldo faria com que transformasse a traição a seu favor.  Vítima, mas livre de um relacionamento, que já não funcionava mais.

Deu partida no carro e acelerou em direção do apartamento da amada.

 

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

    O cãozinho aventureiro Alberto Landi                                       Era uma vez um cãozinho da raça Shih Tzu, quando ele chegou p...