A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Um olhar ao redor - Adelaide Dittmers

 


Um olhar ao redor

Adelaide Dittmers

 

Olho em volta e estremeço.  Uma sala branca, cujas paredes estão forradas de coroas de flores. Estou em um velório.  De quem será? Não me lembro de ter recebido a notícia da morte de alguém conhecido.

Tento me mexer, mas não posso. Minhas pernas e braços estão imóveis.  Meu Deus! Estou preso a um caixão.  Quero levantar e não consigo.  Percebo que meus olhos estão fechados, mas estou vendo tudo ao meu redor.  Estou morto?  Meu corpo se arrepia todo, mas morto não pode se arrepiar.

Meus olhos, ou sei lá o que estou usando para enxergar, divisam muitas pessoas no lugar.

Minha mulher está abraçada ao meu filho e os dois soluçam.  A tristeza me invade e sinto-me impotente diante dessa cena.

Um grupo de amigos conversa a um canto.  Parecem discutir sobre algo, política ou negócios. Não ouço o que dizem.  Falam em voz baixa.

Não acredito! Dona Maricota também está aqui.  Como sempre não pára de tagarelar. Ah não! Está se aproximando de mim com uma vizinha.  O olhar compungido tem uma sobra de sarcasmo. ¨Era um homem forte.  Como foi morrer assim de repente! Sabe, aqui entre nós, dizem por aí que era um mulherengo e traía dona Clara, descaradamente¨.

Miserável! Veio ao meu velório só para fofocar e falar mal de mim.  Se eu pudesse a expulsava daqui. Se estivesse vivo, estaria vermelho de raiva.

O Rafael acabou de entrar.  Cara de pau! Me deve um dinheirão e não atendeu mais aos meus telefonemas.  O rosto coberto de uma dor, que com certeza não sente.

O que o Leo está fazendo?  Abraçando Clara de um jeito suspeito e parece comê-la com os olhos.  Nem esfriei ainda...Meu melhor amigo! É difícil acreditar em tanta falsidade!

Ouço sons de risadas, que vêm de fora.  O grupo das piadas!  Não respeita o sofrimento alheio. Porém, tenho que admitir, participei disso muitas vezes.

Que surpresa! É a Gracinha chegando perto de mim! Linda, elegante e discreta.  Vivi grandes momentos com ela.  Seu rosto espelha uma grande tristeza e lentamente deposita uma rosa vermelha em meu peito.  Coloca a mão em cima das minhas, fecha os olhos e deve estar fazendo uma oração.  Discretamente afasta-se e sai, mas o rastro de seu perfume permanece como um bálsamo.

Fito Clara, que está recebendo vários abraços de condolências.  Graças a Deus não viu Gracinha.

Um padre aparece a começam as orações.  Todos baixam a cabeça para acompanhá-las.  Será que estão rezando por mim? Duvido.  Muitos devem estar pensando no que vão fazer depois.

Neste momento, resolvo me entregar a Deus e ao que vier. Estou só, como nunca estive.  Saímos deste mundo completamente sozinhos.  Não importa quantas pessoas estejam a nossa volta. Felizmente vivi plenamente. Não me arrependo de nada.  Aceito meu desenlace como aceitei a vida.

 

 

O homem da gaita - Adelaide Dittmers

 



O homem da gaita

Adelaide Dittmers

 

 

Passou por mim um homem,

Gaita na boca,

Tocando indiferente,

Imerso na melodia.

 

Gorro colorido, cabelos compridos,

Passou por mim,

Sua música e ele,

No seu mundo.

 

Nada via ao seu redor,

O homem e sua gaita,

Ele e sua música 

Passaram por mim.

 

A tarde de céu azul,

A calçada florida,

Mesclavam-se ao homem,

Eram parte dele e sua gaita,

 

Passou por mim um homem,

Tocando indiferente,

Passou rápido pela minha vida,

Não passei pela dele.

A PILHA - Leon A. Vagliengo

 

 


A PILHA

Incluindo a esperança de Liberdade, ainda que tardia.

Leon Alfonsin Vagliengo

       

Olho em volta de mim, tentando descobrir algo que me inspire para escrever uma boa história. Estou em meu pequeno escritório, onde se encontram muitos objetos apropriados para o local, como canetas, lápis, réguas, computador, livros, impressora etc., mas nada disso me parece sugestivo para a elaboração de algum texto interessante. Minha imaginação é uma noite escura, nenhuma ideia a ilumina.

        Finalmente, uma porta se abriu deixando entrar a luz do pensamento, quando meu olhar pousou sobre uma enorme pilha de papéis. Nela, documentos bem recentes, amontoados sobre outros, antigos, alguns até muito antigos, concorrem para produzir em mim um desalento crônico, uma impressão desagradável de que nunca me libertarei de seu jugo cruel. Encontrei a minha estrada, passo a percorrê-la.

        Alguns desses documentos representam pagamentos inadiáveis, exigindo total prioridade; são processados assim que chegam e imediatamente mudam de categoria, juntando-se a outros porque trazem informações para registros contábeis e elaboração de relatórios. Os piores, porém, são aqueles que representam problemas que precisam ser solucionados, mas parecem não ter solução. Estes ficam, ficam... e ficam.

Entre esses papéis, existe até uma folha com vinte selos postais, que deverão ser utilizados para o envio de cartas pessoais que não consegui tempo para escrever. Seriam várias, não escrevi nenhuma até agora. Um dia ainda as escreverei, e farão parte de um interessante e simpático treino de redação idealizado pela professora de escrita literária, com a utilização de um recurso que hoje já se tornou arcaico, mas assume, neste contexto, uma conotação saudosista quase poética.

Ah! A escrita literária!

Que vontade de retomar e completar cada um dos rascunhos de histórias que tenho acumulados em arquivos de meu computador! Ou, de escrever todos os textos semanais recomendados nas aulas! Mas não tem sido possível, o tempo é escasso, as preocupações rotineiras desviam os meus pensamentos, muitas vezes escravizam o meu cérebro.

Apesar de tudo, ainda tenho encontrado algum tempo para o prazer de escrever alguns textos. Não consigo fazer muitos, mas não desisto. Sempre sai algum, e assim vou levando.

        Porém, a grande pilha, simbolizando tantos afazeres de que não consigo dar conta, continua sempre lá, impiedosa e ostensivamente, para que eu a veja todos os dias.

No início, constatar o seu contínuo crescimento me desesperava. Com o passar do tempo, porém, a habitualidade em vê-la foi criando em mim uma espécie de calo mental, fui desenvolvendo naturalmente defesas psicológicas que me permitem, hoje, conviver tranquilamente com as suas pendências, sem mais pesar em minha consciência o fato de não conseguir extingui-la.

        Muitas vezes penso nisso e fico com a sensação de que me tornei um sem-vergonha.

OBJETO COMPANHIA - Hélio Fernando Salema

 


OBJETO COMPANHIA

Helio Fernando Salema

 

Minha garrafa d’água tem sido minha companheira há muitos anos, desde que a recebi de presente do meu filho. Inicialmente era usada nas viagens de carro, principalmente no verão. O conteúdo permanecia gelado durante todo o trajeto, o que facilitava a minha hidratação sem necessidade de parar o veículo e, melhor ainda, não ingerir água sem saber a procedência. Embora eu já não costumava adquirir em qualquer comércio, pois sempre ficava em dúvida não só a respeito da origem como também da qualidade.

 

Em casa, ela é figura permanente na minha mesa, faz parte do meu dia a dia, sempre olhando para mim e lembrando-me de que ela tem um presente necessário e agradável para me satisfazer.

 

Nos dias quentes, abastece-me de água gelada ou água de coco enquanto assisto ao futebol pela TV. Também quando estou na varanda apreciando a bela paisagem e o céu que muito me encanta. Às vezes, chegou a acreditar que ela também se encanta como eu.

 

Nas noites frias é ela que ajuda no aquecimento do meu corpo com chá quente preservado durante toda a madrugada, mostrando sua resistência a oscilação da temperatura, o que me da uma tremenda força para encarar os rigores do inverno.

 

Quando saboreio o seu conteúdo o som que ouço parece me dizer:

—“Guardei com carinho só para você “

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

    O cãozinho aventureiro Alberto Landi                                       Era uma vez um cãozinho da raça Shih Tzu, quando ele chegou p...