
MISTÉRIO
Hirtis
Lazarin
     Jerônimo é o nome do delegado de Matinhos,
cidadezinha sergipana.
     Dois metros de altura e músculos
avantajados, impõem respeito.  Os traços
faciais mal delineados e grosseiros é confundido com a braveza de um touro
nervoso aprisionado.
     A cidade conta com poucos habitantes e
muita tranquilidade.  Exige pouca ação
dos representantes da lei.
     É a briga no boteco, garrafas quebradas e
gente ferida.  É o marido que chega
bêbado, chuta tudo que vê pela frente: móveis, mulher e até filhos.  É a cachorrinha fujona que foi parar numa
cratera aberta pelas águas de março.  É o
galo poderoso que faz um escândalo na intimidade da noite, acorda vizinhos e o
dono das galinhas avisando-o que larápios invadiram o galinheiro.
     No momento, Jerônimo está com um caso
complicado pra investigar: é o Seu Jonatas, pai de dois meninos, que saiu pra
trabalhar e há oito dias não volta pra casa.
     O delegado, sentado displicentemente em
sua poltrona pesada e macia, pernas esticadas sobre a mesa, botas de couro com
brilho de espelho, perdido em pensamento, arquiteta um roteiro de investigação.
     Era o meio da tarde.  Ele sente um cheiro ruim, mal-estar e
náuseas.  Um frio gelado arrepiou todos
os pelos que tinha no corpo.  Levantou os
olhos e ficou assustado.  À sua frente
estava um homem estranho.  Entrou sem
ruído.  O rosto pálido, num
amarelo-esverdeado, os olhos tristes e chorosos causavam dó.  Entregou-lhe um envelope cinza-chumbo bem
amassado.  Saiu calado, apressado.  
      Jerônimo tem nome comprido, mas curto é o
seu pavio.  Deu um pulo e com poucas
passadas chegou à porta da delegacia.  O
homem já havia desaparecido.  Lá fora,
nem sinal...  A recepcionista, que
controla entrada e saída das pessoas, jurou que esse homem não passou por ali.
     Lá fora de tão azul o céu ardia os olhos e
o sol espirrava tantas cores e tanto calor que até derretia o piche do asfalto.
     Cabreiro o delegado voltou à sua sala,
juntou o envelope, sem remetente nem destinatário, a outros papéis empilhados
na mesa.  Tinha trabalho urgente a sua
frente.
     Inesperadamente uma rajada de vento forte
escancarou a janela maior da sua sala, sacudiu as cortinas e caminhou em
direção à mesa.  Remexeu os papéis todos
e apenas um deles voou.  Voou e parou no
colo de Jerônimo que acompanhava tudo sem reação.  A ventania cumpriu sua missão e saiu por onde
entrou.  "Como, se lá fora o céu
continuava sem uma nuvem sequer?
     O homem apavorado e supersticioso tirou o
terço da gaveta e se pôs a orar.  Fechou
a porta da sala.  Não queria que ninguém
o visse naquela situação.  Depois que
recitou todas as orações que aprendeu no catecismo e ainda sabia de cor,
sentiu-se aliviado e com coragem pra abrir o envelope.  Um bilhete:
Praia
Pirambu
Casa
amarela
Quadro
na parede/ revólver
"SOCORRO!"
     Leu e releu as anotações, nem sei quantas
vezes.  Decifrar não conseguiu, mas
naquela mesma tarde, acompanhado de outros policiais, partiram pra Pirambu, a
oitenta quilômetros de Matinhos.
     Já era noitinha quando chegaram.  Andando de lá pra cá, encontraram duas casas
amarelas: uma iluminada e habitada.  A
outra, abandonada.  Pintura desgastada,
paredes com rachaduras de onde brotavam ervas daninhas.  Um empurrão mais forte abriu a porta.  A dobradiça enferrujada gemeu.  Lanternas nas mãos clarearam o interior da
casa.  Muitas tralhas espalhadas pelo
chão.  Na parede lateral o quadro.  Uma pintura surreal, assustadora, figuras
enigmáticas e indecifráveis, domínio do absurdo, da imaginação
fantasmagórica.  Era de arrepiar.
     Num puxão o quadro despencou
desmontado.  No verso, outro envelope e
outro bilhete.
Rua 7,
número 177
Aracaju
Comunidade
das Pedras
     Faltava o revólver.  Vasculharam cada canto e encontraram-no
dentro de um saco de pão.
     Uma brincadeira de gato e rato?  Não importava.  Obstinado Jerônimo desvendaria aquele
mistério.
     Na manhã seguinte, bem cedinho,
deslocaram-se pra Aracaju.  Achar a
comunidade foi fácil, difícil foi achar a rua 7.  Eram vielas e mais vielas, compridas e
sinuosas.  Um labirinto.  Um rapaz sentado na soleira da porta, fumando
maconha, orientou a equipe.  Era um
barraco, quase não parava em pé.  A porta
apenas encostada.  Tudo vazio, apenas um
gato magricelo abriu os olhos com o barulho e voltou a dormir.  Num pedacinho de terra, uma imitação de quintal,
uma bananeira morria às mínguas e um cheiro insuportável vinha de um poço
fechado com tábuas pregadas.  Uma nuvem
de moscas rodeava-o.
     Ali dentro apodrecia o corpo de um
homem.  Junto dele uma caixa.  Dentro da caixa a foto embaçada de um casal e
outro bilhete
Jonatas
Meu
amor era grande demais
Minha
sede de vingança maior
Você
mentiu, você me iludiu
Envenenou-me
de amor
Como
outro, jamais
Uma
arma, um tiro, uma dor
Um
choro sufocado, consolador.
Soninha
     Jonatas era o homem desaparecido há oito
dias.  Morto pela amante Soninha.  A prisão da assassina foi questão de dias.
     Jerônimo, na paz do dever cumprido, estica
as pernas sobre a mesa, acende um cigarro e pega o jornal semanal.  Primeira página, manchete:  "A morte de Jonatas e a prisão da
amante"
     O delegado olha bem a foto do morto.  Não pode ser... Esfrega os olhos.  Põe e tira os óculos.  Troca de óculos.  Não havia dúvidas.   Jonatas era o homem que lhe entregou o
envelope cinza-chumbo.  O envelope com as
dicas pra que não só o seu corpo fosse encontrado, como também denunciar a
assassina. 
     Hoje Jerônimo tem dois grandes medos:
ratos e fantasmas.  Tem certeza que
existem.