A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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sexta-feira, 14 de julho de 2023

O CIRCO Leon Alfonsin Valiengo

 



O CIRCO

A mente acumula memórias e sentimentos. Por vezes eles afloram de alguma maneira.

 

                                                                                                                               Leon Alfonsin Vagliengo

 

        O dia a dia de Bernardo e Valentina era sempre o mesmo: muito trabalho, cuidando do seu pequeno sitio no interior de Minas Gerais, onde moravam e garantiam o sustento com a criação de galinhas, uma pequena e variada horta, algumas árvores frutíferas, além da cabrita Mimosa, e da vaquinha Margarida, que lhes davam o leite diário, e do bode Marcriado, que cuidava da recepção de visitantes.  Bernardo havia planejado, ainda, iniciar uma criação de coelhos para corte, mas Valentina não deixou, dizendo ao marido que seria muita maldade com os bichinhos, provocando nele um sentimento de culpa só por ter pensado nisso.

No primeiro sábado de cada mês faziam as compras das provisões para o sítio e, como sempre, viajavam alguns quilômetros em sua velha caminhonete por uma estrada de terra vicinal, na região de Varginha, onde se dizia que, às vezes, apareciam objetos voadores. Durante o percurso pelos trechos desabitados Bernardo tentava disfarçar, mas mantinha-se tenso, calado, e não conseguia esconder a forte inquietação que o dominava, pois era bastante crédulo e acreditava nas histórias que ouvia de seus vizinhos sobre pessoas abduzidas, raptadas por seres extraterrestres. Nesses momentos, invariavelmente tinha que suportar uma carinhosa zombaria de sua mulher, que lhe dizia “Cê é muito encucado, home! Curuis credo” – “Num me atazana, muié! Para di fazê disfeita!” — Ele sempre respondia.

Naquela manhã, bem cedo, trafegando nesse trecho já bem próximos da pequena cidade onde fariam as compras, tiveram a atenção despertada por um terreno recentemente desmatado, em cujo centro estava uma construção metálica, fazendo lembrar a João o Teatro de Alumínio, que um dia havia visto numa fotografia de São Paulo. A estrutura tinha um formato incomum, com janelinhas redondas em toda sua circunferência, e as palavras “Grande Circo do Coelho” sobre a porta de entrada identificavam a sua finalidade.

— Vixe! Esse Circu é dimais da conta, sô! Ispia só! — comentou Valentina.

Chegando à cidade, encontraram vários cartazes que anunciavam o Grande Espetáculo Circense, com uma propaganda muito bem-feita, anunciando para aquela noite uma apresentação nunca vista antes, inesquecível e fantástica, mas sem revelar detalhes da programação. Em cada cartaz, o desenho de um grande coelho, sorridente, parecido com o Pernalonga das histórias em quadrinhos, sorria de maneira muito simpática, numa imagem que fazia alusão a um importante participante de mágicas, o coelho. Uma frase instigante completava o cartaz: “Depois de assistir a este espetáculo você nunca mais duvidará de nada”.

Depois de examinarem um daqueles cartazes com evidente Interesse, Bernardo olhou para Valentina com aqueles olhos sorridentes de convite, que ela entendeu e imediatamente exclamou “nóis vamu?!”, já empolgada com a ideia.

Apressaram-se com as compras, voltaram ao sítio e adiantaram todas as tarefas, entusiasmados com as perspectivas de uma noite diferente e divertida. Já se haviam passado quase duas horas do meio-dia quando puderam almoçar. Bernardo disse que estava “varado di fome”, fome de leão, e comeu muito. Depois deitou-se um pouco para a merecida sesta, como fazia todos os dias, e pediu a Valentina para chamá-lo a tempo de se preparar para irem ao circo.

 

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Ao chegarem ao Circo, um bom público vindo das cercanias e da cidade já formava uma grande fila para a compra dos ingressos. Aos poucos todos foram entrando e se acomodaram, e enquanto aguardavam, em meio a um burburinho de animadas conversas, puderam também notar a presença de uma mesa no canto do palco, com uma cartola sobre ela, dessas usadas por mágicos, ligeiramente maior, negra como de praxe, em posição invertida, com as abas para cima.

        Exatamente às vinte horas, horário previsto para o início do espetáculo, as portas metálicas do circo foram fechadas e, para espanto do público, surgiu de trás das cortinas um impressionante coelho cinza e branco, de quase dois metros e enormes orelhas, vestido com uma longa casaca negra, ostentando um sorriso dentuço grande e simpático, acenando alegremente enquanto se encaminhava ao centro do palco, andando em pé, como fazem os humanos. Lá chegando, inclinou-se numa longa reverência, cumprimentando o espantado público, que não acreditava no que estava vendo.

— Eita fantasia bunita dimais da conta, sô! — Exclamou Bernardo.

— Cabuloso, né? Inté parece um cueio, mermo! — Ouviu de Valentina, muito admirada.

Continuando, o enorme coelho apresentou-se como o Mágico Orelhinhas e fez um breve e estranho relato de suas experiências “neste planeta”, dentre as quais destacou as viagens que realizou com um sujeito chamado Gulliver no ano de mil e setecentos do calendário dos humanos, numa máquina do tempo, das quais trouxe atrações para montar o seu espetáculo de mágicas fantásticas.

A seguir, fingindo não perceber o assombro que estava provocando no público com sua imagem excêntrica e aquela conversa absurda, o mágico Orelhinhas iniciou a apresentação e passou a realizar truques ilusionistas muito intrigantes, como todos são: sem nada dizer, mudou várias vezes, de repente, a cor da sua casaca; transformou rígidas bengalas em lenços macios e os fez desaparecer num tubo que se desvaneceu no ar, para reaparecerem de repente na cabeça de alguém da plateia; fez surgir um buquê de lindas rosas amarelas passando um lenço sobre as patas vazias e gentilmente o ofereceu a uma senhora da plateia; enfim, realizou dezenas de outros desafios à lógica do entendimento comum, num longo espetáculo de ilusionismo, recebendo muitos aplausos dos incrédulos e extasiados espectadores, que aos poucos foram se acostumando e esquecendo a estranheza daquela situação insólita.

Bernardo estava encantado com o show, mas do fundo de sua memória vinha a impressão de que já tinha visto todas aquelas mágicas. Num certo momento, quando viu as rosas, olhou apaixonado para Valentina, contente em ver a felicidade que ela demonstrava com aquele lindo sorriso que não saía de seu rosto, e pensou em dar-lhe também um buquê de rosas, assim que pudesse. Mas seriam vermelhas, de paixão. E ainda pediria um beijão em troca.

        Após a longa série de mágicas que literalmente encantaram o público, Orelhinhas finalmente dirigiu-se à mesa onde estava a cartola e a tomou nas patas, anunciando:

  E agora, senhoras e senhores, diretamente de Lilliput, o clímax deste espetáculo!

Antes de mais nada exibiu o interior da cartola, para mostrar que estava vazia. Depois colocou-a no chão, no centro do palco, cobrindo-a com um lenço de seda; fechou os olhos e concentrou-se por alguns instantes, remexendo graciosamente o focinho, como fazem ininterruptamente os coelhos, e, finalmente, fez deslizar o lenço, descobrindo a cartola, de onde imediatamente saltaram, primeiro uma mocinha e depois um homenzinho, ambos com uns vinte centímetros de altura. Imediatamente os dois começaram a crescer, parando quando tinham perto de meio metro, um minuto depois. Então, num gesto teatral e com grande mesura, ambos se apresentaram:

— Eu sou a mini anã Aninha! — Disse a mocinha, com voz maviosa.

— Eu sou o mini anão Adão!  — Disse o homenzinho, com uma voz surpreendente, que mais parecia um trovão.

E arremataram em uníssono, com o jargão dos circos:

— Distinto público, MUITOOO... BOAAA... NOITEEEEE!

Na sequência do espetáculo, iniciaram a representação de um rápido drama caricato em que, após um divertido colóquio, Adão declarou seu amor por Aninha e a pediu em casamento. Ela se mostrou muito emocionada, mas, prudente como toda mulher, logo perguntou como ele iria sustentá-la. Adão não se fez de rogado: imediatamente virou-se para Orelhinhas e pediu-lhe um emprego no circo:

— Eu sei imitar passarinhos como ninguém — propôs.

Sinto muito, Adão, mas essa atração está muito explorada, não tem mais graça, já não interessa ao público porque muita gente sabe imitar passarinhos — respondeu o Coelhão, com cara de desinteressado.

— Sim, mas não do jeito que eu faço, retrucou Adão. Vou fazer uma demonstração, aposto que o senhor vai gostar. Veja!

E o anão Adão saiu voando, um voo alegre e variado: subiu uns cinco metros, circulou várias vezes em volta do palco, desceu quase até o chão, subiu novamente e, ao final, pousou num trapézio acima do picadeiro emitindo alegres chilreios de rouxinol, para assombro da plateia que o aplaudiu efusivamente entre estrepitosas gargalhadas, agora completamente afeita a toda aquela situação fantástica e insólita de que participava.

— Você me convenceu! Está contratado! — exclamou Orelhinhas, finalizando o teatrinho com aquele riso de quem já conhecia o desfecho.

O enorme coelho então retomou o comando do palco para comunicar o fim do espetáculo e, a seguir, assumindo uma expressão grave e séria em seu olhar, revelou que o circo metálico em que se encontravam era, na verdade, uma nave espacial que havia decolado durante o início do espetáculo e agora dirigia-se ao planeta Cenoura, pertencente à Galáxia dos Coelhos, situada logo após a perigosa Galáxia do Bode. Insensível a alguns desmaios entre o público, continuou, em tom de discurso:

— Nós, coelhos, desde que conseguimos dominar a tecnologia dos voos espaciais há muitos séculos, começamos a migrar do planeta Cenoura para o planeta Terra, procurando um novo lar em missão de alegria, felizes em levar a ternura dos coelhos para aprendizado dos humanos. Muitos pioneiros de nosso planeta criaram suas famílias na Terra, multiplicando-se e aperfeiçoando nossa linhagem através de gerações, sempre embelezando os vossos bosques e jardins e alegrando as suas crianças, mas verificamos que alguns dos nossos são por vocês cruelmente sacrificados. 

Bernardo sentiu que a carapuça lhe servia, pela intenção que tivera de criar coelhos.

E Orelhinhas prosseguiu:

— Por isso, vendo tanta ingratidão, promovemos esta missão, que tem por finalidade iniciar a captura de humanos a fim de empregá-los nas plantações de verduras e legumes de nosso planeta, para a alimentação dos coelhos, seus habitantes originários.  Estamos numa nave muito veloz, suave e silenciosa e, atentos ao espetáculo, vocês nada perceberam, mas já estamos muito distantes da Terra.

E para que ninguém tivesse dúvidas, ainda sugeriu:

 Vejam pelas escotilhas! – exclamou ele, apontando para as janelinhas redondas.

Muitos correram para ver. Bernardo tomou a mão de Valentina e se apressaram para a escotilha mais próxima, olharam e viram, apavorados, a Terra já muito distante, apenas um pontinho azul, parecia uma bolinha de gude.  Mal exclamaram “VIXE!” e Bernardo passou a sentir alguns solavancos; seria, já, a aterrisagem, ou melhor, a acenourisagem?

Não, não! Parecia mesmo que ele estava sendo sacudido por alguém. Olhou de imediato para Valentina, preocupado com ela, e viu, mesmo estranhamente percebendo que estava com os olhos fechados, que ela já não estava lá, mas lhe dizia repetidamente “Acorda, home! Acorda! Cê tá cum sonho ruim! Acorda, véio!”.

 Bernardo abriu os olhos, coração aos pulos, acabou de acordar, e deu de cara com Valentina, que segurava seus ombros e rindo-se da situação, perguntou “Cê tá bão?”. Meio atordoado Bernardo só disse “Tô, uai”, levantou-se e foi para o banheiro lavar o rosto, ainda pensando naquele coelho enorme, nos liliputianos Aninha e Adão e naquela inacreditável imitação de passarinho. Ouviu Valentina gritar, do quarto:

— Toma banho i bota uma ropa bunita, mais vai logo, si não nóis perde a hora du Circu.

Desta vez, Bernardo não teve dúvidas nem vergonha, e assumiu:

—Num vô, não, sô! Adiscurpa, fiquei veiáco. Tô cum medo dus E.T.


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