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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O segredo - Adelaide Dittmers

 


O segredo

Adelaide Dittmers

 

Rogério atendeu ao telefone no escritório.  A expressão de seu rosto tornou-se dura e contrariada.  De forma gélida e ríspida, disse à pessoa do outro lado, que não podia conversar naquele momento.  Mentiu que estava em reunião. Uma voz estridente soou no seu ouvido.  Com raiva, desligou o telefone.

Colocou as mãos sobre o rosto.  Isso não podia continuar.  A pressão que estava sofrendo estava ficando cada vez mais insuportável, mas como poderia resolver a situação sem revelar o segredo que guardava há anos e que, se tornado público, iria desestabilizar sua vida e colocar em risco a fama de homem honesto e de caráter ilibado.  Tinha que achar uma solução para que não viesse à tona.

Tentou ler os papéis, que cobriam a escrivaninha, mas não conseguiu se concentrar.  Levantou-se, pegou o paletó e saiu da sala, avisando a secretária, que tinha um compromisso particular.

Chegou à casa com um semblante carregado.  Luísa, sua mulher, olhou-o surpresa.  Ele nunca chegava tão cedo.

— O que você tem?  Aconteceu alguma coisa?

— Estou com uma baita dor de cabeça.  Vou tomar um comprimido e me deitar um pouco.

Preocupada, ela argumentou:

— Você nunca tem dor de cabeça.  Será que não é melhor ligar para o Dr. Osvaldo?

— Imagina!  Tive insônia à noite.  Estou com um problema difícil de resolver no trabalho.  Acho que é estresse.

O olhar penetrante e interrogativo de Luísa acompanhou-o enquanto ele subia as escadas. Ultimamente andava estranho e nervoso.  Irritava-se por qualquer coisa.  A justificativa do problema no trabalho não a convenceu.  Sempre foi um homem seguro e hábil em resolver questões desafiadoras.

Sentou-se na poltrona da sala de estar e pegou um livro e antes de abri-lo olhou em volta.  O ambiente tinha mobília leve e clara.  Tapete, objetos e quadros em perfeita harmonia.  A casa era um retrato dela.  A vida devia ser assim, com tudo no seu devido lugar.  Colocou o livro no colo e começou a divagar.  Tinha uma vida boa, fez várias viagens pelo mundo, partilhava momentos felizes com muitos amigos, nada lhe faltava: roupas caras, joias e tudo o que o dinheiro pode comprar.  O único empecilho para sua paz, no entanto, era o segredo, que guardava há tanto tempo, que amargava seu caminhar e que não podia contar a ninguém para sua vida não desabar como um prédio velho e mal construído.

Nesse momento, Diana entrou na sala, como um furacão, mochila nas costas, as chaves do carro na mão.  Bonita e, cheia de energia, estava sempre correndo, como se a vida fosse lhe fugir.  Estava no último ano da faculdade de jornalismo.  Inteligente, curiosa e ativa iria se dar bem na profissão escolhida, pensou a mãe sorrindo para ela.

— Oi mãe! Tudo bem?  Tive que fazer uma entrevista com um político do alto escalão.  Foi demais! Acho que me saí bem.  Despejou ela, quase sem respirar, sobre a mãe.

— Parabéns, filha!

— Estou fazendo tudo para ser contratada depois do estágio.  Imagina, mãe, eu trabalhar nesse jornal tão importante no país.

Beijou a mãe e continuou:

— Vou subir para tomar um banho! Já volto para contar tudo para você.

A jovem e a mochila foram pela escada acima.  Luísa seguiu com um olhar carinhoso.  Que ela nunca descobrisse o segredo.  Então a mãe gritou:

— Não faça barulho, seu pai voltou do trabalho com dor de cabeça!

Diana parou pensativa em um dos degraus, e depois continuou a subir mais devagar.  No quarto, jogou a mochila na cama.  Despiu as roupas, que foram jogadas em uma cadeira e foi para o chuveiro.  A água tépida caiu como uma bênção no seu corpo. Foi um dia exaustivo e desafiador. Estava feliz com a profissão que escolhera.  Sempre colhia elogios dos professores. A única pedra em seu caminho era o segredo, que descobrira há pouco tempo, deixando-a arrasada.  Às vezes, tinha vontade de atirá-lo aos quatro ventos, mas a coragem lhe faltava.

Mais tarde o jantar foi servido.  O silêncio reinava na sala. Somente o ruído dos talheres era ouvido.   Diana, quis quebrar o gelo, perguntando ao pai como se sentia.

— Estou melhor! - E sem levantar a cabeça, continuou a comer.

Ela, então, começou a contar como a entrevista transcorreu, mas percebeu que Rogério estava longe. Apenas balançava a cabeça para disfarçar que não estava ouvindo. Diana parou de falar e mãe e filha trocaram olhares preocupados.  Terminado o jantar, Rogério levantou-se e deu boa noite para as duas mulheres.

— O que está acontecendo com ele?

— Não sei.  Disse que era um problema de trabalho.

No dia seguinte, Rogério saiu muito cedo e recusou o café da manhã, no entanto só chegou ao escritório às onze horas.  Entrou apressado, fisionomia fechada.  Um “bom-dia” seco foi jogado à secretária, que notou a palidez no rosto do chefe.  Chamou-a e disse que não queria ser incomodado.

Tirou o paletó, sentou-se e afrouxou o nó da gravata.  Sentia-se sufocado.  O que aconteceria se fosse revelado o que guardara por tanto tempo.  Era refém daquele maldito segredo.

De repente, uma dor aguda apertou o seu peito, o suor escorreu pelas têmporas, tentou aspirar o ar, que lhe fugia.  Com dificuldade chamou a secretária, que se assustou ao ver o estado do chefe.  Com rapidez, ligou para o departamento médico e logo Rogério foi atendido, mas apesar dos esforços do médico, não resistiu.

O velório estava cheio.  Muito estimado, ninguém se conformava com a morte súbita dele.  Luísa e Diana muito abatidas aproximaram-se do caixão.  Abraçadas, consolavam-se mutuamente.  A mãe olhou para o marido, que foi o amor de sua vida.  Quanto sofrimento ela aguentou firme.  A filha pensou que agora o segredo nunca seria revelado.

Nesse momento, uma mulher desconhecida e dois jovens adolescentes entraram e chegaram perto do morto.  Luísa e Diana fixaram o olhar nela.  A mulher sustentou o olhar de mãe e da filha, com os olhos cheios de ódio e depositou uma rosa no peito do morto.  Os jovens tentavam esconder as lágrimas que teimavam em deslizar pelos seus rostos.

Luísa e Diana entreolharam-se, e Diana puxou a mãe para fora da sala.  No jardim, que cercava aquele lugar lúgubre, novamente uma olhou para a outra com compaixão e perceberam que ambas sabiam de tudo e intimamente se perguntaram se aquele segredo iria morrer com Rogério ou seria revelado.

 

7 comentários:

  1. Muito bom. Repleto de figuras de linguagem. Despertou curiosidade. Parabéns. ( Ana Catarina)

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  2. Parabéns Adelaide. Li sem parar, pois cada parágrafo estimulava a continuar. Para mim o segredo foi revelado, mas não com palavras, e sim com sentimentos demonstrados.
    Helio

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  3. Muito bom o texto Adelaide.
    Como já foi dito, muitas figuras de linguagem bem empregadas.
    Pra mim, o segredo está claro: Luiza e a filha sabiam que ele tinha outra família. E a outra família (mulher e dois adolescentes) também sabiam. Ficou claro quando eles chegaram ao velório: a "OUTRA" encarou Luíza.

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  4. O texto está bem redigido com figuras de linguagem bem empregadas. Pra mim, ficou claro que não havia segredo para Luiza e Edna.Nem para a outra com, mãe de dois adolescentes.
    Será que Rogério não sabia que elas sa iam?

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  5. Muito bom mesmo! realmente instigante! não queremos parar de ler! parabéns!

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  6. Excelente texto, Adelaide. Sem revelar o segredo conhecido destes personagens, você conseguiu, mediante a utilização de figuras de linguagem e palavras muito bem escolhidas e colocadas, caracterizar perfeitamente todo o desespero, a aflição e a agonia do Rogério, e até mesmo o cenário da sua morte; também a tolerante resignação de sua esposa e o inconformado silêncio de sua filha. E, ao final, conseguiu revelar, sem revelar, o segredo que incomodava aos três.
    Este texto é coisa de Mestra! Parabéns!

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  7. Apesar de ter lido e não ter feito comentário quando da publicação, reli novamente e, parabenizo a Adelaide pela excelente construção do enredo intrigante que mantém a atenção do leitor até o final imaginando o que seria esse segredo que angustiava os personagens. Bem escrito com encadeamento das situações que mantém o suspense.Cada personagem sabendo do segredo mas, não sabiam que os outros também tinham conhecimento.Tudo isto, leva ao ápice com os tres novos que surgem no final no velório que também sabiam. Que segredo que a Adelaide nos conduziu. Muito bom!

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