A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A galope - Hirtis Lazarin

 

 


A galope

Hirtis Lazarin



Ela nasceu numa família pobre e desestruturada.  Pai alcoólatra e mãe que aceitou a cruz como se não houvesse nada mais além.

Helena cansou-se de ouvir: "É o destino, filha".

Os domingos eram torturantes.  O pai não saía de casa, bebia e comia sem parar.  A mãe dividia o tempo entre o fogão e a pia.

Na chegada da noite, já bêbado, inundava a casa de palavrões e louças espatifadas pelo chão.  Desmaiava no sofá da sala para acordar, mal-humorado, só na segunda-feira, já gritando pelo café fresco.

Incontáveis vezes, Helena e a mãe, trancadas no quarto, imploravam proteção à Virgem Maria.  Quantas velas foram acesas e queimadas.

Helena nunca teve a chance de trazer amigos para casa, ouvir música sossegada ou escolher seu programa de t.v.

E, à medida que crescia, falava menos e revoltava-se mais.  Sentia-se muito só e com vergonha da família.

Não suportava a ignorância do pai, nem a passividade da mãe.  Abandonou os estudos a contragosto da dona Esmeralda que sabia muito bem a falta que  faz.  Sem estudo, tornamo-nos escravos de nós mesmos.  E a mocinha fingia não entender...

Nem tinha dezoito anos quando abandonou a todos e fugiu com o namorado.   A mãe quase morreu de tristeza.  Que experiência poderia Helena ter?  Qualquer coisa seria melhor que viver insegura e amargurada naquela casa dos horrores.

Mas, Helena teve sorte.  Samuel era um rapaz bom e trabalhador.  Fazia de tudo para ajudá-la na superação dos traumas, pagou psiquiatra, psicólogo e até se perdeu com tantos boletos de prestação na compra de um cavalo, quando ficou sabendo que a equitação ajudava na recuperação traumática.

Mas nada adiantava.   Helena continuava amarga e de palavras frias.

Tentou engravidar.  Quem sabe o riso e o choro de uma criança pudessem ajudá-la?   O trabalho ininterrupto preencheria o vazio existencial?

Após idas e vindas às clínicas e muitas tentativas, a gravidez não vingou.

Na casa escura, não havia mais música, nem sol.  As janelas sempre fechadas impregnavam às paredes de um cheiro embolorado, úmido e cinzento.

Até os muros que rodeavam a construção, gritavam melancolia.  Cuspiam cal e cimento.  E os buracos só aumentavam.

Samuel chegava cada dia mais tarde.  Passava sempre no boteco da esquina para um trago com os amigos e lá esquecia-se do tempo.    E, quando encontrou, em casa, garrafas vazias de bebida alcoólica escondidas debaixo de um móvel, não teve dúvidas.  Chegara a hora de deixar tudo pra trás.   Não houve discussão nem briga.  Helena sabia que acabara de cavar um buraco profundo pra enterrar de vez sua vida.

Era a primeira noite que ela dormia sozinha.  Sentiu falta do corpo masculino roçando o seu.  Sentiu falta do cheiro e até do ronco de Samuel.

Chorou tanto que ela e o travesseiro dormiram molhados.

Era de madrugada quando acordou sobressaltada.  No escuro e sem energia, aproximou o relógio dos olhos e os ponteiros marcavam quatro horas.

Espiou pela fresta da janela e o vento uivante derrubava coisas e arrastava-as numa cantoria infernal.

Apavorada e só, Helena desceu as escadas.  As janelas e a porta escancaradas.  As cortinas de tecido fino mais pareciam velas desgarradas em alto mar, entrelaçadas em nós.  O chão brilhava encharcado de chuva.  A louça do último jantar eram cacos espalhados sobre a mesa e pelo chão.

O cavalo que vivia solto no quintal relinchou como nunca antes e só se aquietou quando a moça apareceu à porta.

Num ímpeto, Helena soltou os cabelos que viviam escondidos, despiu-se e correu para a chuva.   Montou no cavalo branco e, galopando freneticamente, desapareceu em meio à escuridão da tempestade.



Nem sempre o que parece é - Ana Catarina Sant’Anna Maués

 

 




Nem sempre o que parece é

Ana Catarina Sant’Anna Maués

 

   O tempo avançava sem dar trégua e Aurora naquela situação delicada. Não podia deixar vir a público a situação financeira que vinha atravessando, pois sempre ocupou lugar de destaque nos palcos e no cinema com papeis de sucesso. Em jornais e revistas seu status era visto por décadas como vip. Era figura conceituada sem dúvida, mas não conseguia um bom papel há meses, estava caindo, caindo, como estrela cadente e ultimamente nem comerciais fazia, nem recebia acenos para participar de programas de entrevistas. O fato de estar sendo esquecida no meio artístico a deixava sem chão. Foi então que teve a ideia de pegar os últimos tostões e aventurar-se numa viagem que divulgou, sendo para produzir um filme de própria autoria. Esta atitude desembaçaria sua imagem, dando a impressão de que ela agora queria ocupar outro posto, o de produtora de filmes. O tiro foi certeiro, a notícia rendeu-lhe algumas notas na mídia e lustrou provisoriamente o ego dela, mas nenhum convite aconteceu. Iniciou então o plano, chamando um velho e conhecido amigo para atuar como cinegrafista e, portanto, registrar as cenas da aventura onde ela havia apostado todas as fichas.  

   Aurora alugou um automóvel e providenciou um motorista, bem vistoso, alto, musculoso, sorriso perfeito, bem galante era Otávio, pois mataria dois coelhos com uma cajadada, ele dirigiria o carro e faria par romântico com ela, caso precisasse. Sua equipe tinha que ser reduzida devidos aos custos. Tudo pronto para a viagem, dias antes, na porta do edifício, uma admiradora dela. Vinha procurá-la com a proposta de seguir nesta viagem e no caminho ir registrando os feitos da consagrada atriz nesta nova empreitada, o que renderia no final, um documentário da sua vida. Aurora não teria gastos com a escritora. É claro que ela ficou lisonjeada e não resistindo, permitiu que Paulete a acompanhasse.  

   Tudo pronto lá foram os quatro rumo ao desconhecido. Na verdade Aurora não tinha um plano, não tinha um roteiro. Ela necessitava figurar nas notícias para conseguir um bom papel quem sabe numa novela, e seguiria com isto até alcançar. Pensava já, numa desculpa caso algum convite ocorresse, e ter que adiar seu projeto auspicioso de produzir um filme.

   Pelo caminho dizia ao cinegrafista que registrasse a paisagem, o pôr do sol, a revoada de pássaros, pois tudo seria usado no filme mais tarde. Paulete seguia com a série de perguntas para o documentário, as quais eram respondidas com delicadeza por Aurora, que amava falar dela própria.

   Eles haviam tomado o rumo do interior, querendo alcançar outro estado, mas a noite os surpreendeu e o cansaço bateu forte, resolveram pernoitar na primeira cidadezinha que avistaram, e hospedar-se no único hotel que a cidade possuía.

   Logo na recepção Aurora foi reconhecida e como que tapetes vermelhos lhe foram estendidos. Ela muito esperta e devido o tratamento recebido, pediu o melhor quarto, mesmo querendo economizar, precisava ostentar, pois calculou que com aquela recepção nem lhe fosse cobrado o pernoite. Dito e feito, o proprietário ficou tão embevecido com a presença da atriz que foi logo dizendo da honra de tê-la ali, e que seria cortesia a estada dela. Ponto para Aurora que só pagaria a hospedagem do motorista e do cinegrafista. Paulete registrava tudo em seu livrinho de notas.

   Os primeiros raios do sol banharam o corpo alvo da Aurora, acarinharam os longos cabelos claros dela, e fizeram-na espreguiçar-se já plenamente recuperada da viagem do dia anterior. A cabeça, porém, fumaçava de preocupações. Contava com sua perspicácia para sair de tudo que se metia.

   No café oferecido, ela foi rodeada pelos outros hospedes, e entre um autógrafo e outro, falava do motivo de estar ali. Seguia procurando um local para produzir seu primeiro filme onde atuaria também como diretora. Nesta hora um garçom gritou lá no fundo:

— Fique aqui grande dama, teremos a honra de tê-la em nosso hotel.

   A cabeça de Aurora acendeu “sabe que não é má ideia eu aqui sou reconhecida as portas abriram-se não tenho mesmo um projeto estou toda enrolada dívidas chegando aqui tenho hospedagem gratuita faço qualquer “misancene”, e viro notícia e logo, logo estarei de volta à capital com um bom papel. E sem ficar com a face rubra respondeu:

— Quanta gentileza, mas será que o jovem proprietário ainda me quer por aqui?

  Ouvindo-a, quase que de boca aberta, embasbacado que estava pela beleza dela, o proprietário derreteu-se e confirmou a súplica do garçom.

   Foi nesta hora que Paulete saiu, a um canto da sala, para atender o celular.

Misteriosa, falando baixo e com monossílabos. A verdade é que Paulete trabalhava para um programa de tv, de fofocas. Ela desconfiava que a atriz estivesse alquebrada e planejou se passar como escritora de um documentário para viver mais de perto com Aurora, e em confirmando sua suspeita, estampar como escândalo a notícia, mas até o momento não tinha descoberto nada.

   Ela já estava há uma semana na cidadezinha, e nada. Passava bastante tempo no quarto e quando saia dizia que esteve escrevendo, repassando algumas cenas que filmaria.

  Numa manhã ela acordou animada e disse ao cinegrafista e ao motorista, que iriam fazer algumas cenas ao ar livre.

    Ela contava com a experiência do cinegrafista que tomaria as cenas do suposto romance, mas isso ainda estava bastante nublado em sua mente, precisava de tempo e contava com a sorte de ser logo contratada e parar de vez com aquele projeto emblemático.

   Era bem cedo, a cidade ainda dormia, quando os quatro saíram, cada um na sua função. Aurora parecia que havia feito um pacto de encantamento com o dia, pois vestia um floral esvoaçante onde a cor rosa saltava aos olhos e a deixava especialmente mais doce. Ela precisava montar uma cena e seguir com seu falso projeto. Sugeriu uma tomada onde caminharia pelo calçamento e vez por outra colheria violetinhas que espalhadas coloriam o verde da grama, e iria colhê-las até que formasse um buquê. Quando isto acontecesse Otávio entraria na filmagem, e enquanto ela caminhasse distraída, ele se aproximaria dando um encontrão nela, fazendo-a desequilibrar, mas a segurando imediatamente, impedindo- a de cair. Tudo isto captado pela lente do experiente cinegrafista. Como espectadora, apenas Paulete, fingindo anotar tudo em seu caderninho.

   Foi dada largada, o cinegrafista disse “ação”. Acontece que o encontrão combinado aconteceu bem em frente ao casarão do único advogado da cidade, e, diga-se de passagem, advogado sem causas, por isto totalmente falido. Que se aproximou muito irritado de ver que a jovem estava colhendo as violetinhas, fruto de grande e árduo trabalho que teve para plantá-las.

   Chegou esbravejando, porém de pronto reconheceu Aurora e logo se desculpou. E após muitas desculpas para cá, desculpas para lá, pois ela também se desculpou por colher, todos entraram na mansão de Douglas.

   Ele gentilmente ofereceu uma xícara de chá, mas ruídos desconcertantes vinham do segundo andar e ele tratou logo de fazer todos irem embora.

   Após saírem, Douglas muito revoltado, chamou as três filhas fantasmas para uma conversinha.   

 — Será possível que não posso trazer ninguém aqui em casa que vocês tratam logo de fazer bagunça?

— Ora, papai, disse uma delas, que teria dez anos se estivesse viva. Não queremos que você namore ninguém, o senhor é viúvo e vai continuar sendo.

   Mas esta moça é uma atriz famosa, não olharia para mim, só quis ser gentil.

  Mas é assim que começa, tudo começa com um chá, mamãe disse isto para mim um dia, interpelou a outra que contava oito anos de idade.

— Margarida, disse Douglas, você é a mais velha minha filha, controle suas irmãs por favor.

 — Papai, o senhor sabe que eu te amo, mas elas são mais fortes que eu, unem-se contra mim. Eu peço, peço e não me escutam. Eu só estou aqui papai por que tenho algo a contar e quando contar vou embora. É que ...

— Margarida não se atreva, disseram as duas quase a uma só voz.

   E assim sumiram as três.

   Douglas ficou encantado com a beleza suave de Aurora e à noite a lembrança do dia, povoaram seu coração e mente e pela primeira vez, depois de anos, adormeceu com um sorriso nos lábios.

   No outro dia sentiu grande ímpeto de procurar Aurora e abrir seu coração do porquê de praticamente tê-la expulsado da casa.

   Tomou coragem e foi.

   No hotel, Paulete não conseguia avançar em suas investigações. Queria ter uma oportunidade de entrar no quarto da atriz e mexer em armário, bolsa, documentos, precisava apresentar algo que fosse um grande furo de fofoca, o mais cedo possível, pois já estava aborrecida de fingir ser escritora. Resolveu então, aproximar-se do cinegrafista, envolvê-lo, prometendo soma em dinheiro, caso soubesse de algo, ou descobrisse algum passo maldado de Aurora. Por enquanto, o cinegrafista disse, suspeitar de problemas financeiros, mas não podia afirmar nada, pois ela o pagava semanalmente de forma correta, mas prometeu ficar atento. Otávio chegou mansinho e escutou a conversa entre os dois e disse saber sim de algo bombástico, mas queria também uma pontinha no acerto entre eles. Os três então fizeram um pacto. Otávio contou que antes de partirem nesta viagem, trabalhando como motorista dela, levou a atriz até um banco de penhor, certamente para penhorar joias, e perguntou se isto serviria como fofoca para a mídia. Paulete argumentou que ela poderia ter apenas guardado as joias e não penhorado. Daí precisava da cautela do penhor, o documento que provasse a ação. Isto sim seria uma prova boa para mostrar a falência de Aurora em todos os sentidos, pois até desconfiava que o fato dela estar dizendo que reproduzia um filme, era puro blefe.          

     Enquanto isto, Douglas chegou na recepção do hotel procurando por Aurora.

    O recepcionista a chamou e ela desceu para encontrar o recém amigo. Os dois saíram a caminhar até uma praça próxima e ali permaneceram. Douglas abriu o coração e disse ser viúvo, que sozinho vivia, não tinha filhos. Perdeu a família num desastre aéreo e as filhas assombravam a casa, pois não aceitavam que ele se aproximasse de qualquer moça, sentiam ciúmes, e explicou que o barulho no andar de cima, no dia de ontem, foram as meninas querendo assustar a todos. Ele estava muito cansado de toda esta situação.

Aurora apiedou-se dele e dali surgiu algo envolvente.

   No hotel os três tramavam entrar no quarto e revirar as coisas de Aurora.

Dentre eles o mais ousado era o cinegrafista e para ele coube a façanha. Paulete foi até a praça atrasar à volta de Aurora ao hotel. Otávio ficou no corredor observando a circulação dos funcionários, dando cobertura ao cinegrafista. Já dentro do quarto a busca foi frenética, até que numa sacola com zíper, o cinegrafista encontrou a cautela, prova de que as joias de Aurora foram mesmo penhoradas.

   Ele fotografou com o celular e colocou o documento no mesmo lugar.

   Na praça Paulete recebeu recado de Otávio para dar uma chegadinha até a recepção. Ela deixou Aurora e Douglas conversando animadamente.

   Quando a atriz retornou, não encontrou mais nenhum dos três. Apenas o aviso de que tinham ido embora. Aurora ficou surpresa e intrigada. Chegou no quarto achou tudo em ordem, até pensou que a tivessem furtado em algo, mas não percebeu nada de anormal.

   No outro dia quando desceu para o café, encontrou um jornal sensacionalista sobre a mesa, com a manchete “ARTISTA AURORA PENHORA ÚLTIMAS JOIAS E FOGE PARA O OSTRACISMO “.

   Foi como um soco no estômago. Império ruído. Desmascarada no seco, sem dó nem piedade. Fama e glória para debaixo do tapete como poeira. Não houve como não chorar copiosamente. Funcionários e proprietário do hotel ficaram penalizados com a visão.

   Aurora foi para a rua atordoada, caminhava sem rumo, cabisbaixa, envergonhada, humilhada e chorosa. Quem veio encontrá-la foi Douglas, que já tinha lido o jornaleco, e quando a viu a abraçou e a levou para sua casa.

   Chegando, não foi bem recebida pelas fantasminhas, que iniciaram uma série de ruídos, arremessavam utensílios, arrastavam móveis, mas para surpresa delas, Aurora não ligava, não se impressionava, tinha os olhos inchados de tanto chorar.                

   Douglas a consolava e a encorajava. Resolveu contar a ela seu infortúnio.

— Sei bem o que você está sentindo, pois já tive fama, já fui aclamado por muitos quando era advogado famoso, com dinheiro e poder. Recebia inúmeros convites para festas, entrevistas, tive até um programa onde as pessoas buscavam esclarecer dúvidas jurídicas. Fui alvo de uma trama por pura inveja de alguns amigos da mesma profissão. Que não interessa relembrar agora. Cidade pequena, já viu né, fui para o esgoto, sem notoriedade alguma. Até minha esposa inventou uma viagem com minhas filhas e disse que quando retornasse não me queria mais aqui na nossa casa.

   As fantasminhas escutaram esta revelação e ficaram com peso na consciência pelo muito que perseguiram o pai tantos anos, por pensarem que ele era que queria se separar da mãe delas. Resolveram então deixá-lo finalmente, mas não sem antes devolver o cofre com muitas notas de dinheiro e papéis de muito valor.

  — Papai, disse uma delas, queremos pedir seu perdão. Mamãe nos disse que você queria nos deixar e por isso antes de viajarmos, escondemos o cofre para você não ir embora, mas agora escutamos a verdade, o cofre está enterrado no quintal, próximo ao mamoeiro. Vamos deixá-lo papai, queremos que seja feliz e você também Sra. Aurora.

   Um silêncio se fez ouvir na sala onde estavam Douglas e Aurora.

   Dez anos já se passaram. Aurora e Douglas casaram e vivem na casa antes assombrada. Ela conseguiu um papel de destaque num filme, mas a carreira perdeu o encanto, agora não pensa mais em ser famosa, apenas em ser feliz com Douglas.  

 

RUBENS: CULPADO OU INOCENTE? - Henrique Schnaider

 





RUBENS: CULPADO OU INOCENTE?

Henrique Schnaider

 

Rubens era uma pessoa que teve uma infância difícil, lado escuro da vida, nunca comeu a cereja vermelhinha do bolo, quando muito um pão velho duro, verde de tão embolorado. O pai, sujeito bruto, um cavalo, só faltava relinchar, alcoólatra inveterado, vivia alterado, trabalhava em serviço duro.

Quando chegava em casa, o cenário se transformava no inferno de chamas azuis de Dante, a esposa já aguardava pelas agressões, depois, várias salmouras, para curar os vergões roxos por motivos não faltavam para o marido, a comida que não estava do seu gosto, o fato dela ter engravidado, que não a perdoaria, se o nenê chorasse, total falta de paciência. E, as agressões aconteciam.

A mãe, um doce de pessoa, aguentava tudo calada, não reagia, apanhava e chorava, era dependente do marido, que nunca admitiu que ela trabalhasse. Ela não queria relatar à família, o drama de cores trágicas, desesperado que vivia. A alegria que aquecia sua alma gélida de tanto sofrimento, era o pequenino Rubens.

Assim o menino cresceu, apanhando calado por qualquer motivo, recebendo do pai, desprezo e violência, o único prêmio, era a fada mãe, que tinha a varinha de condão, que lhe dava amor profundo e carinho.

O tempo passou, Rubens se tornou um adulto, com uma mistura de sentimentos, de amor e de ódio, se encheu de revolta, com o coração aos pedaços, pelos recalques que dominaram o rapaz. Era difícil para ele trabalhar com seus sentimentos.

Nos estudos, era bom aluno, não teve dificuldade de chegar à Faculdade, resolveu que seguiria a carreira de Advogado, assim, formou-se numa instituição famosa, onde todos almejavam estudar. Começou como estagiário, numa banca de Advogados.

Na época da Faculdade conheceu Aurea, por quem se apaixonou, finalmente conheceu a felicidade. O sofrido coração se aqueceu com o fogo da paixão, e foi correspondido. Formaram-se juntos, faziam planos para casar-se, juntaram forças, Aurea não notava nada de errado, na conduta de Rubens, conseguiram dar entrada, na compra de um pequeno apto.

Mobiliaram o lar com muita cor, combinando com as paredes em tom bege claro, um ninho do amor. No começo eram tudo flores, mas os espinhos não demoraram a chegar.

Depois de dois anos de completa harmonia e felicidade, Aurea começou a notar uma mudança de atitude da parte de Rubens, já não era mais aquele homem amoroso, do qual recebia tanto carinho e mimo, sua casa vivia, cheia de rosas, vermelhas, amarelas etc. um caleidoscópio de cores.

Começou a chegar bem depois dela, já que ambos trabalhavam, não dava nem um mísero oi, entrava mudo, mal a tocava, o amor se esvaeceu, escorreu como a chuva, no fim da primavera. Ela começou a notar, que Rubens chegava com hálito de bebida, se tornando cada vez mais agressivo.

Parecia que o espírito brutal do pai tomou conta do pobre rapaz. Aurea tentou dialogar com ele, chamá-lo à razão, tudo em vão. Daí para as agressões foi um pulo. Só que a esposa, não era como a mãe de Rubens, deu queixa na delegacia da mulher, a Delegada determinou que ele não poderia chegar a cem metros dela.

Rubens entrou em desespero, mil promessas de mudança e pedidos de reconciliação, Aurea irredutível, não aceitava a volta do marido, vivia com medo, de que, em algum momento, Rubens pudesse invadir o apto e praticar uma desgraça. O lar já não tinha mais alegria, as cores perderam a graça, se desmancharam.

Um dia quando Aurea menos esperava, sem dar chance a ela de avisar a polícia, Rubens invadiu o apto. Tinha o rosto desfigurado, a pele seca e amarelada, um tremor visível nos membros inferiores, e um revólver empunhado na mão: “se você não quer mais ser minha, não será de mais ninguém! ”. Os disparos puderam ser ouvidos de longe, mas ele não se incomodou com o que viria.  Foram cinco tiros no peito da indigitada mulher. Uma tragédia anunciada e cumprida à sangue frio. Rubens entregou-se a polícia, sem ter mais nenhum motivo para viver, condenado de forma justa a vinte anos de reclusão.

A pergunta que fica no ar é esta: Rubens foi vítima de seu pai? Inocente que era, de tantos maus-tratos, se tornou um assassino, e culpado por tirar a vida da pessoa que mais amava.

SONHO COLORIDO... - Dinah Ribeiro de Amorim

 



SONHO COLORIDO...

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Impressionante a influência das cores em nosso estado de espírito ou o contrário: não as sentimos conforme estamos.  Alegrias, tristezas, otimismo, desânimo, as cores refletem os sentimentos. Recebem denominação especial, variam entre os povos conforme os costumes, a educação, mas, geralmente, apresentam semelhanças entre os seres humanos.

Assim aconteceu com Denise, uma jovem em flor, vinte anos. Entusiasmou-se por um colega de escola, Pedro, que se desinteressou dela e apaixonou-se pela amiga. Denise, frustrada, voltou aborrecida para casa, escolheu seu pijama escuro, o mais usado e feio, enfiou-se na cama, cobriu-se com a manta marrom desbotada e tentou adormecer.

Como não conseguiu dormir, fechou com força as cortinas claras, escureceu o quarto e apagou a luz do abajur. Demorou a pegar no sono.

Acordou cedo e olhou o céu amanhecer. Escuro, cinzento, de nuvens carregadas que anunciam pesada chuva. Alguns relâmpagos luminosos precedem barulhentas trovoadas. Um vento rápido e sonoro bate no verde das folhas do jardim e estremece o vidro da janela. Denise pensa: "Que dia feio! Sem luz, sem vida, triste como eu, parece saber o que estou sentindo..." Volta para a cama, enrola-se na manta pesada e fecha os olhos. Nem responde quando sua mãe a chama. Finge dormir.

Resolve, nesse dia, não levantar. O desânimo a abate, sente-se feia e triste. Adormece e sonha.

Caminha por uma estrada estreita e curta, cheia de luz brilhante de azul. Sente paz e silêncio!  Caminha com segurança, embora tudo seja estranho. Onde estaria? Alguma chácara ou fazenda de amigos? Tenta olhar ao redor. Pássaros coloridos voam e cantam em várias direções. Amarelos, azuis, vermelhos, verdes, formam uma revoada de cores. Plantas brotam pelo caminho, numa variação de verde, conforme o banho da luz. Flores enfeitam aquela estrada tão colorida. São ardósias, bromélias, alguns antúrios e orquídeas que se enrolam nos troncos das árvores. As cores mais variadas possíveis e lindas. Chamam sua atenção o roxo e o lilás das mais brilhantes. Os girassóis alaranjados a atraem e apontam o caminho a seguir. Para onde a levam? Que lugar é esse? Tão estranho e bonito. Será que o conhecia e não reparou?  Estranha felicidade a invade.

Olha a roupa que veste, um pijama azul marinho, amassado e velho, sente-se mal. No mesmo instante, olha-se novamente e está vestida de renda rosa, bordada, semelhante a que preparou para o baile da escola. Linda e feliz. Caminha mais adiante e pensa: "Aonde irei?"

Sentado, à beira da estrada, encontra um velho, de cabeça baixa, barba comprida e branca, olhar escuro e penetrante, quando se dirige a ele e pergunta: "Que lugar é este? Onde estamos?"

"No meio do caminho," responde ele. "Eu, logo chegarei à cidade, mas você deverá voltar! "

"Por que voltar, se estou tão bem aqui?" Responde Denise. "Também gostarei de conhecer essa cidade."

"É uma cidade velha, para os que participaram de muitas coisas e precisam descansar! Você é jovem, tem obrigações a cumprir e muitas cores ainda enfeitarão sua vida! Oferecerá cores também! Algumas alegres, outras tristes, mas em geral, todas fazem parte da vida. Volte!"

Denise acorda e assusta com batidas fortes no quarto. É a mãe. Levanta-se e, entontecida, abre a porta. Espanta-se com a elegância da mãe, vestida para o trabalho. Elogia-a e pergunta as horas.

"É tarde filha, você perdeu o colégio, já são dez horas!" "Tem alguém no portão que pergunta por você."

"Por mim, o que será?" Responde Denise. Repara que parou de chover, abre as cortinas amarelas e vislumbra um belo dia de sol.

Veste rápido uma camiseta vermelha, uma calça branca e um tênis azul, o seu preferido. Passa um pente no cabelo comprido e desce ao jardim. Estremece um pouco quando avista Pedro à sua espera.

Este, pede-lhe desculpas, afirma que cometeu um erro e convida-a para o baile da escola.

Denise, contente, usará o vestido de renda rosa, lindamente bordado, em companhia de Pedro, seu par constante, com quem dançará a primeira valsa. Sorri e descobre tudo colorido ao seu redor!

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

    O cãozinho aventureiro Alberto Landi                                       Era uma vez um cãozinho da raça Shih Tzu, quando ele chegou p...