A HISTÓRIA DE JOSÉ
MALAGHETTA
Dizer o quê? A vida é assim... As
coisas vão, mesmo, acontecendo...
ORIGENS
Os italianos Vittorio Malaghetta e Francesca Bianchi eram naturais da Comuna de Lucca, na região Toscana. Conheceram-se por acaso numa missa na Basílica de San Frediano, e várias trocas de olhares muito interessados entre os dois perturbou a concentração de ambos na cerimônia religiosa. Ao final da missa, Vittorio apresentou-se para ela e, a partir desse momento, floresceu uma paixão que percorreu rapidamente as etapas de namoro e noivado e logo evoluiu para o enlace matrimonial, conforme preconizavam os costumes no final dos anos sessenta.
Infelizmente, desde os primeiros meses após o
casamento, a vida em comum do casal Vittorio e Francesca Malaghetta não estava
sendo facilitada pelas famílias. Ao contrário, muitas críticas e intrigas de
lado a lado, motivadas principalmente pelo ciúme das “mammas”, envenenavam o
relacionamento do casal, tornando insuportável seu relacionamento e impossível
um convívio harmonioso. Coisa de italianos.
Porém, a cumplicidade entre Vittorio e
Francesca foi mais forte e resolveram ir embora, para bem longe das famílias. Escolheram
de comum acordo emigrar para o Brasil. Iriam para São Paulo, onde fixariam
residência, e estariam livres daquelas interferências. Para tanto, contaram com
a ajuda do pai de Vittorio que, mesmo a contragosto, reconheceu os motivos, respeitou
a decisão do filho e contribuiu com os recursos necessários para que eles
pudessem concretizar aquela difícil decisão, recomeçando seu casamento em outro
país.
Ao fazerem escala no Rio de Janeiro, porém,
encantaram-se com a cidade e mudaram de ideia. Não iriam mais para São Paulo, ficariam
por lá mesmo. Vittorio procurou se informar sobre onde se concentrava a colônia
italiana, e o casal sediou-se no bairro de Santa Teresa, numa casa modesta que
o generoso dote recebido de seu pai proporcionou. Com o que sobrou, ainda montou
uma loja de frios e laticínios para ganhar o sustento da família.
O MENINO
Dois anos depois que se estabeleceram no Rio
de Janeiro, foram abençoados com o nascimento de um “bambino”, que foi batizado
na Igreja com o nome de Giuseppe, mas registrado em cartório na versão
brasileira de José Malaghetta. Em casa, porém, era o Beppe, e com esse nome
ficou conhecido pela vizinhança durante toda a infância e juventude.
Sempre protegido pela atenção afetuosa dos
pais, Beppe foi um garoto feliz, com amigos imaginários e outros de verdade,
com quem brincava. Na escola era um bom aluno, sob o rigor carinhoso de sua
mãe. O que tinha de diferente e causava admiração a seus pais, era o notório
talento para encontrar coisas extraviadas em casa. Ele gostava disso. Nessas
horas fazia perguntas, avaliava os passos de quem havia perdido o objeto, e
quase sempre conseguia encontrá-lo por meio de deduções lógicas. Sempre que
isso acontecia, sua mãe, admirada e divertida, exclamava:
— “Beppe, mio piccolo San Longuinho!” — e dava
três pulinhos, olhando para ele, rindo.
Mal sabia ela...
Vittorio, o pai de Beppe, era um homem
grandalhão, de rosto muito vermelho, que sempre valorizava com entusiasmo
exagerado tudo o que se referia à Itália. Coisa de italianos.
Era apaixonado por automobilismo, e quando recebia
a visita de Lorenzo, seu conterrâneo e vizinho de bairro, o assunto não era
outro, e corria tão animado que impressionava os ouvidos de Beppe, ainda menino,
que a tudo escutava com muita atenção. O final das animadas conversas era
sempre o mesmo: os dois amigos concordavam que os carros Alfa-Romeu eram os
melhores do mundo. Coisa de italianos.
— “Come vorrei avere quella macchina!” — exclamava Vittorio para o amigo em sua língua pátria, com voz emocionada, abrindo os braços em gestos exagerados e com olhos arregalados de euforia. Coisa de italianos.
De tanto ouvir as empolgadas conversas do pai
sobre automóveis, nasceu no menino Beppe o sonho infantil de profissão: seria
mecânico de automóveis. Ainda era adolescente quando começou a frequentar aulas
de mecânica e a trabalhar como ajudante numa pequena oficina, com a aprovação
de sua “mamma”, que já antevia um bom futuro para seu filho; quem sabe, ainda
seria um engenheiro, e dizia para as amigas, orgulhosa, em sua língua:
— “Almeno, Beppe non sarà um venditore de
mozzarelle come suo padre”.
Coisa de italianas.
UM SONHO REALIZADO
Aos quinze anos, Beppe ainda gostava de acompanhar
os pais, aos domingos pela manhã, quando Vittorio costumava levar Francesca em
passeios de carro, para conhecer os pontos mais bonitos da cidade. Num desses
dias percorriam o bairro do Jardim Botânico, encantados com suas ruas
densamente arborizadas, e Vittorio conduzia seu velho Fusca bem devagar, para
poderem apreciar as lindas residências que as margeavam.
Quando passavam por uma antiga e bonita casa
térrea, abriu-se a porta da garagem, chamando a atenção de Vittorio, que parou
o carro imediatamente ao ver que lá dentro havia um belíssimo JK, o Alfa Romeo
brasileiro, modelo que já tinha saído de linha havia alguns anos e não se via
mais nas ruas. Mas estava reluzente, parecia novo.
Ao ver aquele Alfa Romeo, a paixão de Vittorio
bateu forte, ficou agitado, quase maluco. Queria admirá-lo de perto. Encostou o
Fusca e desceu, aproximando-se para conversar com o homem que saíra por aquela
porta, perguntando se poderia ver o automóvel. Era o caseiro do imóvel, que já
não tinha moradores.
Ele lhe contou que o carro quase não fora
usado, porque seu Antero, o antigo proprietário, faleceu pouco tempo depois que
o comprou. Dona Marieta, a viúva, manteve o carro do marido na garagem por
muitos anos, com pena de vendê-lo; mas recentemente ela também havia falecido e
seu único filho, quando aparecia, dizia que queria livrar-se logo daquele
“carro velho”, como se referia a ele, pois pretendia mudar-se para a casa que
herdou e precisaria da garagem.
— O JK está novo, e à venda. Essa garotada não
dá valor para coisas antigas — comentou o caseiro, indiscreto.
A loja de frios e laticínios de Vittorio
estava tendo um bom movimento e ele havia conseguido, mesmo com algum
sacrifício, juntar algum dinheiro, que foi suficiente para comprar o tão
sonhado Alfa-Romeo, o JK brasileiro.
— É só para nossos passeios — justificou-se
para Francesca, que não estava gostando nada daquela gastança — “al lavoro,
vado com la mia Volksvagen”, concluiu, conseguindo convencê-la.
Um carro lindo e raro. Por onde passava com ele, Vittorio chamava a atenção de todos. Só um sujeito
muito rico pode andar com um carro desses, comentavam seus vizinhos, com uma
pontinha de inveja.
NASCE UM DETETIVE
Cerca de seis meses depois da compra do JK,
numa noite quente de dezembro, o relógio bateu dezenove horas e o metódico
Vittorio ainda não havia chegado de sua loja de frios e laticínios, como era de
costume. Dona Francesca estranhou, mas resolveu aguardar mais um pouco. O tempo
foi passando, já eram mais de nove horas, e nada do Vittorio. Não voltou, não
telefonou. Cada vez mais preocupada, chamou o filho e foram à Delegacia, onde
ouviram que, de acordo com o procedimento policial, ainda era cedo para iniciar
uma procura.
— Não se preocupe, senhora — disse o policial sem
conter aquela expressão de carioca, meio sugestiva — a noite está bonita,
talvez ele tenha encontrado algum amigo e foram comemorar alguma coisa...deve
estar se divertindo — concluiu.
Dona Francesca não disse nada, mas ficou muito
zangada, pensando “imagine que o meu marido faria isso, ainda mais sem me
avisar. Mas quando chegar... Ah, vai ter que se explicar...”. Puxou Beppe pelo
braço e voltaram para casa, na esperança de que Vittorio já houvesse chegado.
Mas não, ele não estava lá.
Já
fazia dois dias que Vittorio estava desaparecido. Nenhum sinal dele, nenhuma
pista tinha sido encontrada pelos policiais. O velho Fusca que usava para ir ao
trabalho continuava estacionado próximo à loja de frios e laticínios,
encontrada aberta e vazia, sem ninguém em seu interior. Nesses dois dias foi
exaustivamente periciada pelos investigadores, mas não encontraram qualquer
coisa que pudesse oferecer subsídios para a localização de Vittorio. Aparentemente,
nada havia sido roubado.
Os investigadores fizeram muitas perguntas
para a desesperada Francesca e para Beppe, buscando encontrar alguma pista. As
perguntas ouvidas desencadearam o raciocínio do rapaz, que também procurava
respostas lógicas para cada dúvida, como fazia quando era criança e procurava
coisas extraviadas. Resolveu pedir licença na oficina para ajudar a mãe e
tentar encontrar algum rumo que o levasse a entender o que havia acontecido com
o pai.
O
Natal estava próximo e a esperança de encontrar Vittorio não diminuía. Nem
Francesca e nem Beppe aceitavam admitir a pior hipótese. Mas o medo prevalecia
em seus pensamentos quando pensavam nele.
A
perícia liberou o local no terceiro dia, e Francesca, impotente para encontrar seu marido
e sem alternativa que não fosse aguardar os resultados dos trabalhos da
polícia, mesmo enquanto vivia aquele drama, precisou reabrir a loja de frios e laticínios para atender
a freguesia, contando com a ajuda de Beppe. Vittorio havia gastado quase todas
as economias da família para comprar o JK e agora precisavam de dinheiro para
pagar as contas que continuavam a chegar.
Naquele mesmo dia o telefone tocou muitas
vezes, recebendo pedidos de clientes. Mas numa dessas chamadas, quando atendeu,
Francesca teve que sentar-se, as pernas quase não a sustentaram. Foi um
sequestro, meu Deus! E não tinham recursos para pagar nenhum resgate! Vittorio
havia gastado as economias da família na compra do carro. Com mãos trêmulas ela
anotou as exigências dos sequestradores, que lhe deram cinco dias para
conseguir a quantia que queriam para libertar Vittorio; ameaçaram dar um fim
nele se ela falasse com a polícia; e depois dariam as instruções para a entrega
do dinheiro. Logo desligaram para evitar que fossem localizados.
Francesca, então, apavorada, contou tudo que
ouvira para Beppe, concluindo:
— “Dio Mio! Pensano que siamo ricchi! Siamo
perduti!”.
Mesmo assustado com a
notícia, Beppe procurou manter a calma; perguntou para a mãe como era a voz que
ouviu, o jeito de falar do bandido e outros detalhes que imaginou sobre a
conversa; em seguida, começou um
levantamento de clientes e fornecedores, mas tinha apenas nomes. Precisava
conhecê-los. Examinou as notas de compra e de venda, para tentar identificar
quem havia estado na loja no dia em que seu pai não voltou para casa. Depois,
repassou todas as anotações que havia feito; examinou clientes, fornecedores,
amigos, vizinhos e até parentes e imigrantes conhecidos.
Passou a analisar tudo o que se referia aos
hábitos de Vittorio O relacionamento amoroso profundo que seu pai tinha com a
família era coisa de italiano, e derrubava qualquer hipótese de que a houvesse
abandonado. Como seu pai circulava sempre pelas imediações, tirou um dia para
visitar especialmente alguns locais que ele frequentava, por onde passava com
seu carro antigo e luxuoso, que, naquele bairro modesto, sempre chamava muita
atenção.
Aos poucos foi descartando algumas
possibilidades e elegendo outras. Ignorou a ameaça dos sequestradores sobre
falar com a Polícia e foi à Delegacia, onde relatou a conversa telefônica e
explicou suas deduções para os Investigadores, indicando possíveis implicados
no sequestro. O tempo era curto, faltavam apenas dois dias para o pagamento do
resgate e não tinham o dinheiro imaginado pelos sequestradores.
Vendo a coerência das conclusões do rapaz, os
investigadores concordaram com aquelas análises e resolveram agir conforme as
conclusões indicavam. Monitorando os suspeitos, os policiais perceberam que um
deles, o dono de um boteco das imediações da casa de Vittorio, demonstrava
comportamento incomum, parecia muito ansioso; no dia seguinte, ao afastar-se do
boteco foi seguido sem que percebesse, e conduziu os policiais até o local onde
Vittorio estava preso, vigiado por outros dois marginais. Mediante cuidadosa
ação policial foi libertado sem resistência pelos sequestradores, que foram
presos.
Depois de seis dias em cativeiro, na antevéspera
do Natal, Vittorio voltou para casa, são e salvo. Assim que os viu, abraçou
Francesca e Beppe, e os três ficaram assim por um longo tempo, enlaçados e
chorando muito, enquanto pronunciavam frases melosas, candentes, emocionadas e
dramáticas sobre o que sentiram naqueles momentos terríveis. Depois de muito
choro e emoção, Dona Francesca finalmente se pronunciou, com profunda
inspiração de suas origens:
— “Quanto sei magro, Vittorio! Ti preparerò
una bellíssima pasta com la brachola”!
A ajuda inteligente de Beppe, fundamental para
a solução do caso, foi reconhecida e muito elogiada pelos dois policiais mais
antigos do Departamento de Investigações, mas não pelo detetive mais novo da
equipe, o Romualdo, que nada disse e se roeu de ciúmes.
Os cumprimentos que recebeu calaram fundo em
sua cabeça de adolescente, e um novo sonho profissional foi se fortalecendo com
o passar do tempo, até predominar, e ele
reformulou os seus planos.
Pouco tempo depois, concluiu o curso de
mecânica, mas desistiu dessa profissão e pediu demissão da oficina para poder
completar os estudos no ensino médio e preparar-se para o concurso para
investigador de polícia.
Dona Francesca, em sua simplicidade, não
concordava com isso:
— Vai trocar o certo pelo duvidoso. Você é
maluco, não regula bem.
— Pois é, mãe. Um mecânico tem que fazer
muitas regulagens, e eu não regulo bem. Prefiro ser investigador de polícia —
respondeu Beppe, bem-humorado.
— Deixa o menino, Francesca. Ele sabe o que
faz — completou Vittorio.
E assim, resoluto, Beppe
prestou, com sucesso, o concurso logo que completou o ensino médio, aos dezoito
anos, e finalmente tornou-se José Malaghetta, o mais jovem investigador de toda
a polícia do Rio de Janeiro, designado para a Delegacia Policial de Copacabana
– 12º DP. Mas não pretendia parar por aí. Em seus planos, ainda havia o Curso
de Direito.
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UM DIA DE GRANDES EMOÇÕES
Ou, quando até os olhos sorriem...
—
CARAMBA! CHEGUEI! UFA!
Com
essas exclamações de alívio, Romeu terminou seu longo treino de corrida naquela
quente manhã carioca; estava cansado, ofegante, mas satisfeito. Enquanto
caminhava com a camiseta molhada de suor, agora em passos lentos para recuperar
o fôlego, tinha no rosto uma expressão de felicidade, sorrindo sozinho à toa,
como um bobo, sem perceber, aquele sorriso feliz e suave de quem conseguira
cumprir a dura meta diária de correr os dez quilômetros. Agora chegara o
momento de relaxar.
Como
fazia todos os dias ao terminar o treino, no caminho de casa entrou no pequeno
supermercado e dirigiu-se à geladeira das bebidas, onde procurou um gatorade.
Com aquela sede toda, arregalou os olhos, que até brilharam ao ver que tinha o
seu preferido, pois muitas vezes estava em falta.
—
Oba! Hoje tem de uva! — Exclamou, pegando a garrafinha.
Ao
encaminhar-se para o pagamento, notou entrarem na loja outros três rapazes com
roupas de atleta, mas não prestou muita atenção neles, porque agora o seu foco
era outro.
Do
mesmo jeitinho de sempre, abriu o seu melhor sorriso para a Adriana, a bela
moreninha do caixa que ele estava paquerando, e vice-versa. Já ia lhe dizer
algum galanteio quando seu rosto se crispou e seus olhos se apertaram numa
careta de dor intensa, em reação à forte coronhada que levara na cabeça.
De
repente, tudo escureceu. Romeu caiu ao chão e ficou desmaiado no meio do
corredor, em frente ao balcão do caixa, mas fora da vista dos demais clientes,
que correram para trás das prateleiras ao ver a agressão. Nem presenciou o
assalto que ocorria a sua volta, realizado pelo eu agressor e dois comparsas, todos
vestidos como ele, com camisetas de mesma cor e marca esportiva. Também não
ouviu os tiros disparados em direção ao gerente, que saiu do escritório para
ver o que estava acontecendo, e, por muita sorte, não foi atingido.
Os
assaltantes levaram apenas o dinheiro do caixa e saíram rapidamente, andando
com fingida naturalidade, cada um em uma direção diferente para dificultar uma
possível caçada.
Aos
poucos, Romeu foi recobrando a consciência, mas seu rosto mantinha aquela
expressão de dor. Ainda tonto, teve que se apoiar no balcão para se levantar do
chão, e foi imediatamente cercado por três clientes que haviam se abrigado dos
tiros no fundo da loja.
Quando
o viram em trajes de corredor iguais aos dos criminosos, não tiveram dúvidas em
apontá-lo para os dois agentes da polícia militar que chegavam à loja naquele
momento, e estes imobilizaram Romeu, completamente atordoado e com a cabeça
ferida, vertendo sangue. Os ladrões já haviam desaparecido.
A
pequena sacola de pano que Romeu levava a tiracolo mostrava um volume suspeito
que chamou a atenção dos policiais. Logo a examinaram, nela encontrando o
revólver que o bandido havia escondido ao ouvir a sirene da radiopatrulha, para
se desfazer dela e sair andando pela rua com seus comparsas sem nada que os
incriminasse, assim não despertando suspeitas no caso de serem alcançados por
uma revista policial.
Mesmo
atordoado, Romeu já se sentia em grande complicação. Como explicaria para a
polícia a presença da arma em sua sacola?
Nesse
momento, sentindo-se mais segura, mas com a voz ainda trêmula pelo susto que
passara, apareceu Adriana, a moreninha do caixa, que se abrigara debaixo do
balcão e a tudo assistira de seu esconderijo.
Ela
relatou com clareza toda a ação que havia presenciado, e defendeu Romeu,
esclarecendo que o assaltante o havia nocauteado com uma coronhada na cabeça e
depois plantado a arma em sua sacola, acrescentando que o moço era um cliente
habitual, muito “boa gente”.
Como
esse depoimento era coerente com o aspecto físico precário que viam no rapaz, e
ainda com a confirmação do gerente, que também conhecia Romeu havia bastante
tempo, os outros clientes e os guardas se convenceram de sua inocência no caso
e ele foi liberado, ainda fazendo muitas caretas pela dor de cabeça.
Na
saída dos guardas, ouviu-se um dizer para o outro, em tom meio zombeteiro:
—
Ocorrência encerrada. Nem foi caso para chamar a Civil. Ainda bem, o detetive
Malaghetta estica muito qualquer assunto.
Encerrada,
mas não para Romeu e Adriana.
Mesmo
com a cabeça doendo, mas um pouco menos atordoado, ele sentiu que o clima era
propício e perguntou se poderia buscá-la na saída do serviço para… trocar umas
ideias… tomar um lanche…
—
Sim — ela respondeu apenas, tímida, olhando para Romeu com um sorriso, sorrindo
também com os olhos, seus lindos olhos de mel.
<<<
0 >>>
MARIA APARECIDA
Em pleno frescor de seus vinte e três anos, Maria
Aparecida é uma morena linda, sonhadora e determinada, que leva a vida a sério
e não mede esforços para emergir da situação modesta que seus pais puderam lhe
oferecer. Apesar de pessoas simples, souberam educá-la para a vida com
sabedoria e muito amor, ensinando-lhe sobre o respeito e as normas do bom
comportamento, a importância dos estudos e a vestir-se com graça e sobriedade
para valorizar a sua imagem, alertando-a contra os modismos da juventude. A
tudo isso Maria Aparecida correspondeu sem perder a alegria da mocidade, mas
tornando-se bem amadurecida desde jovem.
Aprendeu a relacionar-se com simpatia, mas
tornou-se seletiva e arisca aos frequentes galanteios que recebe, e os rapazes
de sua idade que conheceu não a empolgaram porque ela os acha imaturos, sem
propósitos sérios, e de conversas que considera fúteis. Pretende ter uma
família assim como a sua, e passou a acreditar que apenas um homem mais experiente
poderia lhe oferecer um compromisso feliz e coerente com os sonhos que tivessem
em comum. Mas ainda é cedo, há tempo para encontrá-lo.
Após concluir o curso colegial numa escola pública
estadual de Engenho Novo, bairro em que ainda mora com os pais, graças à boa
apresentação e aos modos educados, conseguiu um emprego de vendedora numa loja
de roupas finas de Copacabana, onde conheceu e se deslumbrou com o mundo da
moda requintada.
Uma boa oportunidade surgiu algum tempo depois,
quando soube que uma nova grife, com o nome de Júlio Valentino Modas, estava
selecionando manequins para um desfile inaugural de apresentação de sua primeira
coleção de moda casual de verão. Maria Aparecida já sabia que seria quase um
concurso de beleza, mas consciente e confiante em seu belo rosto e na perfeição
inquestionável de seus outros atributos físicos, candidatou-se e foi
selecionada, juntamente com outras duas moças, também muito bonitas.
As aprovadas foram chamadas para um curso rápido de
passarela patrocinado pela nova empresa, a ser realizado num hotel da Rua
República do Peru, que as habilitaria para as atividades de manequim. Após o
curso, se tivessem um bom desempenho, seriam contratadas.
Terminada essa fase com o sucesso esperado, em
comemoração, as três foram convidadas pelo dono da grife, que se apresentou
como Júlio Valentino, para um jantar de encerramento num restaurante de
Copacabana, e no dia seguinte um passeio de lancha até Angra dos Reis.
Pernoitariam no próprio hotel, para sair cedo e aproveitar bem o passeio. Tudo
muito chique, por conta da empresa. Mas a arisca Maria Aparecida já estava
achando que era “muita banana por um tostão”.
Eram quase oito horas quando as três jovens se
encontraram no saguão do hotel para ir ao restaurante, onde se encontrariam com
Júlio, o futuro patrão, conforme o combinado. Ao sair, cruzaram com um homem vistoso,
de meia-idade, mas bem conservado, em trajes esportivos apesar da hora, com
aparência de notório cansaço. Graças à experiência que tinha como vendedora de
roupas finas, Maria Aparecida reparou na valiosa camiseta que ele trajava, com
o logotipo CRQ que ela bem conhecia, da grife Carmen - Roupas de Qualidade.
Apesar do visual desarrumado que a bela camiseta
não escondeu, e da expressão de ansiedade em seu rosto, o homem lhe pareceu muito
atraente: os cabelos em desalinho, já grisalhos nas têmporas, emolduravam um
rosto másculo bonito, combinando com um bom porte físico.
Por um breve instante, seus olhares se
encontraram.
<<< O >>>
Para o jantar, Júlio veio acompanhado de Rogério, o
responsável pelo curso de seleção, e logo ambos flertavam claramente com as outras
duas moças, deixando a reservada Maria Aparecida um tanto isolada à mesa.
Antes que fossem servidos, Júlio e Rogério pediram
licença para ir ao toalete, e Maria Aparecida, no instante seguinte, resolveu ir
também. Por acaso, o toalete feminino era ao lado do masculino e era possível
ouvir as conversas que aconteciam do outro lado.
A voz de Júlio era inconfundível. Foi assim que
Maria Aparecida estranhou quando Rogério o chamou de Beto e ele respondeu.
Desconfiada, prestou atenção e constatou que eles combinavam alguns detalhes do
sequestro das moças no dia seguinte, quando sairiam no passeio de lancha e
depois as embarcariam num navio de cabotagem rumo ao Suriname; dali as levariam
para a Holanda, onde seriam incorporadas a uma rede de prostituição.
Ao ouvir aquilo, Maria Aparecida, em sobressalto,
voltou rapidamente para a mesa, antes que eles percebessem que ela poderia ter
escutado a conversa. Queria alertar as colegas do perigo que corriam, mas
provavelmente não acreditariam numa história tão incrível e seria muito
arriscado dizer qualquer coisa, pois eles já estavam voltando. Ademais, as
moças pareciam estar gostando do flerte, pareceria inveja, nunca as
convenceria. Nada a fazer no momento, a não ser terminar o jantar disfarçando a
tensão que a dominava.
Conseguiu manter-se calma até o final do jantar,
quando todos combinaram que se encontrariam para o café da manhã às sete horas,
e depois sairiam para o passeio de lancha. Quando Maria Aparecida se despediu,
viu que suas amigas já estavam de mãos dadas com Júlio e Rogério, e foi para
seu quarto muito preocupada. Reuniu seus pertences e aguardou um tempo para
sair sem o risco de topar com eles.
<<< O >>>
RAVIOLI IN BRODO
Na aflição de encontrar o hotel em que estava
hospedado, depois de percorrer toda a Avenida Atlântica sem reconhecer a rua do
hotel, Ângelo voltou em zigue-zague: subia uma rua a partir da avenida e descia
a rua paralela de volta à avenida, para depois subir a rua seguinte e assim por
diante, até que viu, quase por acaso, o seu Opala estacionado. Só então
lembrou-se de que o hotel nem tinha garagem e deixara o carro ali. Mas,
finalmente, encontrara o hotel. Era o Astoria, na Rua República do Peru. Meu
Deus, eu não conseguia me lembrar de nada disso! Fui até procurar o carro na
garagem daquele hotel sem lembrar que ele estava na rua! Me deu “branco” total!
Ao entrar no hotel, cruzou com três moças muito
bonitas e bem-vestidas. Uma delas, particularmente, chamou muito sua atenção:
morena clara como a Carmen, seu rosto era lindo, simpático, tinha um corpo
escultural. Apesar do cansaço, não deixou de admirá-la, não seria possível.
Por um breve instante, seus olhares se encontraram.
<<< O >>>
Chegando à portaria, um alívio. Era ali mesmo.
Identificou-se e foi reconhecido pelo recepcionista que lhe entregou a chave do
quarto 28.
Subiu para o apartamento, tomou um banho quente,
revigorante, e deixou-se cair na cama para um rápido descanso. Ainda meio zonzo
pelo cansaço, seu novo espírito aventureiro de um solitário em férias evocou a
imagem da moça que vira, para engendrar situações apimentadas; ao mesmo tempo,
seu instinto profissional reagia, imaginando que linda modelo ela não seria
para seu Ateliê. Tudo meio misturado, enquanto os devaneios iam se esmaecendo e
virando sonho, até que Ângelo entrou num sono profundo.
Acordou apenas meia hora depois, com fome. E que
fome! Não foi à toa que acordou. Tinha que se alimentar. Lavou o rosto para despertar,
vestiu-se e desceu, ainda meio tonto de sono. Conseguiu na portaria a indicação
da cantina La Trattoria, na rua paralela, pensando em jantar algo mais leve,
pois já era tarde. Precisava voltar logo para acabar de dormir. Eventuais
aventuras amorosas ficariam para depois, teria muito tempo.
Enquanto saboreava um delicioso “ravioli in brodo”,
com muito parmesão ralado afogado no caldo, do jeito que ele gostava, Ângelo
revia cada momento de seu dia de aventuras. Não era à toa que estava tão
cansado. Para completar, pediu um “petit gâteau”, cujo bolo com o sorvete de
creme se aliariam ao queijo da sopa para sabotar sua intenção de comer algo
leve, mas o deixariam muito satisfeito. Voltando a pensar nas aventuras, quem
sabe se amanhã ainda veria aquela morena que trocou olhares com ele na entrada
do hotel e embalou seu sono curto.
<<< O >>>
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