A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Tudo passa, só o amor não passa - Ana Catarina S. Maués

 


Tudo passa, só o amor não passa

Ana Catarina S. Maués

 

   É como viver um “Déjà Vu”, pois retornei à casa que me coube de herança da família. Estou sentado na mesma cadeira desgastada, olhando pelo janelão o jardim sem cuidado e também a calçada, mais adiante, com a antiga falha precisando reparo e assim sendo, não tem como evitar as lembranças. Era assim que eu vivia há cerca de dez anos atrás, antes dos anos de riqueza e fartura que experimentei ao lado de minha amada. Porém, hoje me pego repetindo a mesma rotina, acordando cedo, tomando os panfletos e saindo nas avenidas distribuindo-os. Como nos tempos de outrora, uns dias o dinheiro dá para os gastos com a comida, em outros o pão mofado serve de alimento, mas nem por isso me deixo abater. Vejo o que ainda possuo e tiro energias saudáveis e positivas de tudo isso. Que bom ter um lugar que me abriga da chuva e do sol, que bom ter móveis, mesmo que velhos e, principalmente, meu antigo rádio, em cima da cômoda, a me proporcionar viagens incríveis nas melodias que dele vibram. O otimismo é grande companheiro, sei que esta situação não durará para sempre. Apesar de eu já contar 80 anos, não me deixo entristecer. Assim como no passado, dos meus 70 aos 80, conquistei fama, dinheiro e poder, isso tudo se repetirá e eu novamente terei fartura e dias dourados.

     Hoje a memória está aguçada. Os sentidos não fazem eu chegar às lágrimas por que sou duro de roer. Lembranças são sempre bem-vindas, carregadas de tristezas, jamais. Neste torpor, deixo-me conduzir ao dia que a conheci, mulher que mudaria tudo em minha vida.

      Minha rotina é cansativa. Acordar cedo e até quando o sol está a pino ficar nas esquinas distribuindo panfletos, é bem difícil. Camarão é o que pretendo vender. Não sou dono nem sócio de nada, faço um bico que ofereceram para eu não passar fome. Mas nem por isso sou triste e acabrunhado. Sou uma festa viva, meu dia a dia a Deus pertence, minha única preocupação é passar mais e mais folhetos, porém se não conseguir, não altero meu humor. Não brigo com a vida, levo ela assim com entusiasmo do alto das minhas setenta primaveras. E assim eu ia, até que um dia aconteceu algo inusitado.

       Estava eu, como de costume, esperando o semáforo fechar para os veículos, quando um BMW parou e, lentamente, o vidro da janela desceu e, aquele olhar dela tomou conta de mim, de pronto me envolveu, sei que o brilho do meu, também não passou despercebido, pois ela pegou da minha mão o papel amassado, meio cerimoniosa, e sem palavra alguma deu a partida no carro, me deixando entre nuvens de coraçõezinhos.

     No outro dia eu lá estava, rezando para que ela aparecesse e novamente nossos olhares se encontrassem. Precisamente, às onze horas e quarenta minutos ela encostou o carro e esperou que eu me achegasse. Pediu uma grande encomenda dizendo que fazia questão que eu fosse entregar. Passou-me o endereço, já anotado num papel, se foi. Meu coração batia acelerado e eu constatei que ainda podia me apaixonar.

     Dizem que um anjo chamado Cupido, flecha os corações deixando-os enamorados, porém no nosso caso foram os camarões. De encomenda em encomenda nossas conversas se estreitaram. Ela sozinha, rica, bem-sucedida, morava bem, vivia bem, só precisava de um companheiro, um amor, conversas, sorrisos, um baile e outro pra dançar, beijar e outras coisinhas mais, e disso eu entendia muito. Tiramos a sorte grande, ela suprindo suas carências interiores e eu me refastelando no dinheiro que não mais faltava. Meu jeito simples, aventureiro, que fugia ao padrão empaletozado do dia a dia dela, nos aproximou. Em dois meses eu já estava instalado entre lençóis alvos e travesseiros com cheiro de alfazema.

     Ela era fiscal de tributos, tinha renda privilegiada, trabalhava no interior, mas residia na capital. Nossos finais de semana e feriados eram viajando. Tomávamos o avião e embarcávamos para passeios rápidos em ilhas, resorts, clube de pesca, carnaval fora de época e tantos passeios quantos nossos sonhos pudessem ser realizados. Foi numa dessas viagens que eu conheci os Cassinos. Uau! Percebi que combinavam comigo. Sentia a sorte entre os dedos quando os dados os tocavam. Enriqueci. Numa única noite consegui o que trabalhando a vida toda distribuindo panfletos jamais conseguiria. Não precisava mais do dinheiro dela para as viagens ou roupas caras ou joias e relógios com que me presenteava. Eu estava com ela de coração limpo, a amava verdadeiramente.

     O tempo passava e eu cada vez gastava mais e mais. Cheguei a ser famoso Chamavam-me de o Rei dos dados. Pude sentir o poder bater à porta e eu deixei entrar. Usufrui de tudo o que o dinheiro vindo do jogo ofereceu, mas sempre com ela. Virei um “bon-vivant”. Eu e minha amada estamos cada vez mais apaixonados.

      Um dia a sorte virou. Eu não acreditava que pudesse acontecer, mas comprovei na pele.  Perdi a fortuna que consegui com um ano de sorte, foi uma jogada azarada. Combinamos, eu e ela, que aquela seria a noite final, nunca mais entraríamos num cassino.

      Voltei a viver do conforto que ela oferecia. Nos entendíamos bem, o amor entre nós era perceptível, bastava que alguém passasse algumas horas conosco. Ela falava doce quando precisava puxar minha orelha, eu bastava olhar para ela fixo, que já entendia não ter gostado disso ou daquilo. Nossa vida caminhava perfeita.

     Um dia ela se queixou de uma dor no abdômen. Tínhamos uma viagem marcada para Caruaru para curtirmos uma festa junina dentro de um trem. Mas eu fiquei logo preocupado e fiz com que ela faltasse ao trabalho nesta semana e fizesse os exames. Foi diagnosticado pedra na vesícula.

     Ela teve que ficar internada e logo marcaram a cirurgia. Nossas preocupações eram diferentes. Ela com a perda da viagem, e eu com o pós-operatório dela.

        Essa é a hora, nas minhas lembranças, que não consigo conter as lágrimas. Quando lembro que ela não saiu com vida da cirurgia.

        Não preciso dizer que nossa história de amor interrompida estupidamente, trouxe consequências. Hoje eu voltei a distribuir panfletos, mas isso eu tiro de letra, porém viver sem a alegria dela, aquela luz que iluminava meus dias, isso é o mais difícil, que tento a cada segundo superar.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O segredo - Adelaide Dittmers

 


O segredo

Adelaide Dittmers

 

Rogério atendeu ao telefone no escritório.  A expressão de seu rosto tornou-se dura e contrariada.  De forma gélida e ríspida, disse à pessoa do outro lado, que não podia conversar naquele momento.  Mentiu que estava em reunião. Uma voz estridente soou no seu ouvido.  Com raiva, desligou o telefone.

Colocou as mãos sobre o rosto.  Isso não podia continuar.  A pressão que estava sofrendo estava ficando cada vez mais insuportável, mas como poderia resolver a situação sem revelar o segredo que guardava há anos e que, se tornado público, iria desestabilizar sua vida e colocar em risco a fama de homem honesto e de caráter ilibado.  Tinha que achar uma solução para que não viesse à tona.

Tentou ler os papéis, que cobriam a escrivaninha, mas não conseguiu se concentrar.  Levantou-se, pegou o paletó e saiu da sala, avisando a secretária, que tinha um compromisso particular.

Chegou à casa com um semblante carregado.  Luísa, sua mulher, olhou-o surpresa.  Ele nunca chegava tão cedo.

— O que você tem?  Aconteceu alguma coisa?

— Estou com uma baita dor de cabeça.  Vou tomar um comprimido e me deitar um pouco.

Preocupada, ela argumentou:

— Você nunca tem dor de cabeça.  Será que não é melhor ligar para o Dr. Osvaldo?

— Imagina!  Tive insônia à noite.  Estou com um problema difícil de resolver no trabalho.  Acho que é estresse.

O olhar penetrante e interrogativo de Luísa acompanhou-o enquanto ele subia as escadas. Ultimamente andava estranho e nervoso.  Irritava-se por qualquer coisa.  A justificativa do problema no trabalho não a convenceu.  Sempre foi um homem seguro e hábil em resolver questões desafiadoras.

Sentou-se na poltrona da sala de estar e pegou um livro e antes de abri-lo olhou em volta.  O ambiente tinha mobília leve e clara.  Tapete, objetos e quadros em perfeita harmonia.  A casa era um retrato dela.  A vida devia ser assim, com tudo no seu devido lugar.  Colocou o livro no colo e começou a divagar.  Tinha uma vida boa, fez várias viagens pelo mundo, partilhava momentos felizes com muitos amigos, nada lhe faltava: roupas caras, joias e tudo o que o dinheiro pode comprar.  O único empecilho para sua paz, no entanto, era o segredo, que guardava há tanto tempo, que amargava seu caminhar e que não podia contar a ninguém para sua vida não desabar como um prédio velho e mal construído.

Nesse momento, Diana entrou na sala, como um furacão, mochila nas costas, as chaves do carro na mão.  Bonita e, cheia de energia, estava sempre correndo, como se a vida fosse lhe fugir.  Estava no último ano da faculdade de jornalismo.  Inteligente, curiosa e ativa iria se dar bem na profissão escolhida, pensou a mãe sorrindo para ela.

— Oi mãe! Tudo bem?  Tive que fazer uma entrevista com um político do alto escalão.  Foi demais! Acho que me saí bem.  Despejou ela, quase sem respirar, sobre a mãe.

— Parabéns, filha!

— Estou fazendo tudo para ser contratada depois do estágio.  Imagina, mãe, eu trabalhar nesse jornal tão importante no país.

Beijou a mãe e continuou:

— Vou subir para tomar um banho! Já volto para contar tudo para você.

A jovem e a mochila foram pela escada acima.  Luísa seguiu com um olhar carinhoso.  Que ela nunca descobrisse o segredo.  Então a mãe gritou:

— Não faça barulho, seu pai voltou do trabalho com dor de cabeça!

Diana parou pensativa em um dos degraus, e depois continuou a subir mais devagar.  No quarto, jogou a mochila na cama.  Despiu as roupas, que foram jogadas em uma cadeira e foi para o chuveiro.  A água tépida caiu como uma bênção no seu corpo. Foi um dia exaustivo e desafiador. Estava feliz com a profissão que escolhera.  Sempre colhia elogios dos professores. A única pedra em seu caminho era o segredo, que descobrira há pouco tempo, deixando-a arrasada.  Às vezes, tinha vontade de atirá-lo aos quatro ventos, mas a coragem lhe faltava.

Mais tarde o jantar foi servido.  O silêncio reinava na sala. Somente o ruído dos talheres era ouvido.   Diana, quis quebrar o gelo, perguntando ao pai como se sentia.

— Estou melhor! - E sem levantar a cabeça, continuou a comer.

Ela, então, começou a contar como a entrevista transcorreu, mas percebeu que Rogério estava longe. Apenas balançava a cabeça para disfarçar que não estava ouvindo. Diana parou de falar e mãe e filha trocaram olhares preocupados.  Terminado o jantar, Rogério levantou-se e deu boa noite para as duas mulheres.

— O que está acontecendo com ele?

— Não sei.  Disse que era um problema de trabalho.

No dia seguinte, Rogério saiu muito cedo e recusou o café da manhã, no entanto só chegou ao escritório às onze horas.  Entrou apressado, fisionomia fechada.  Um “bom-dia” seco foi jogado à secretária, que notou a palidez no rosto do chefe.  Chamou-a e disse que não queria ser incomodado.

Tirou o paletó, sentou-se e afrouxou o nó da gravata.  Sentia-se sufocado.  O que aconteceria se fosse revelado o que guardara por tanto tempo.  Era refém daquele maldito segredo.

De repente, uma dor aguda apertou o seu peito, o suor escorreu pelas têmporas, tentou aspirar o ar, que lhe fugia.  Com dificuldade chamou a secretária, que se assustou ao ver o estado do chefe.  Com rapidez, ligou para o departamento médico e logo Rogério foi atendido, mas apesar dos esforços do médico, não resistiu.

O velório estava cheio.  Muito estimado, ninguém se conformava com a morte súbita dele.  Luísa e Diana muito abatidas aproximaram-se do caixão.  Abraçadas, consolavam-se mutuamente.  A mãe olhou para o marido, que foi o amor de sua vida.  Quanto sofrimento ela aguentou firme.  A filha pensou que agora o segredo nunca seria revelado.

Nesse momento, uma mulher desconhecida e dois jovens adolescentes entraram e chegaram perto do morto.  Luísa e Diana fixaram o olhar nela.  A mulher sustentou o olhar de mãe e da filha, com os olhos cheios de ódio e depositou uma rosa no peito do morto.  Os jovens tentavam esconder as lágrimas que teimavam em deslizar pelos seus rostos.

Luísa e Diana entreolharam-se, e Diana puxou a mãe para fora da sala.  No jardim, que cercava aquele lugar lúgubre, novamente uma olhou para a outra com compaixão e perceberam que ambas sabiam de tudo e intimamente se perguntaram se aquele segredo iria morrer com Rogério ou seria revelado.

 

O SEGREDO DE REBECA - Henrique Schnaider

 



O SEGREDO DE REBECA

Henrique Schnaider

Rebeca era uma pessoa de gênio bom, cordata e desde menina, a santinha aos olhos da família. Ia muito bem em tudo e desde os primeiros estudos, já se destacava das outras meninas. Era sempre a primeira da classe, exemplo para as coleguinhas. Dessa forma sempre recebia prêmios como melhor aluna da classe.

Sempre se destacando, chegou à Faculdade fez vestibular e entrou com um pé nas costas em primeiro lugar no curso de Psicologia. Durante os estudos conheceu Aníbal, colega de classe, inteligente e culto, se destacando assim como ela dos demais colegas.

Rebeca se interessou pelo rapaz, pois além de bom aluno era um homem atraente. A recíproca foi verdadeira já que Aníbal viu em Rebeca a mulher dos seus sonhos. Começaram a sair e os encontros se tornaram frequentes.

O amor desabrochou na vida dos dois. Na paixão e na admiração pelas pessoas que eram. Depois do namoro veio o noivado que logo aconteceu com o apoio da família de ambos. A vida dos dois exalava felicidade, amor e encanto.

Na formatura de ambos, Rebeca foi escolhida para a Paraninfa da turma com o apoio entusiasmado de Aníbal. Se casaram logo depois numa festa de arromba inesquecível. Queriam os dois que aquele momento não terminasse nunca.

Depois de dois anos de convivência feliz, nasceu Dora, fruto do amor, uma linda menina.

Tudo ia na mais completa felicidade e harmonia. Dora cresceu num lar perfeito e já estava com doze anos quando os fatos trágicos se sucederam. Sempre tem um “mas”.

Tinham como vizinhos Armando e Nilda, casal sem filhos. Com o tempo a amizade foi crescendo e se tornaram muito próximos. Rebeca começa a sentir uma atração crescente por Armando. Ele por sua vez demonstrou o mesmo interesse por ela e assim começaram os encontros furtivos.

Certo dia Rebeca e Armando estavam na casa dele se beijando loucamente certos de Nilda não estivesse em casa, quando de repente ela entra na sala e pega os dois numa situação inexplicável. O clima se tornou pesado e começou uma discussão violenta entre Armando e Nilda. Em seguida Armando agrediu violentamente a esposa que caiu batendo a cabeça na quina da escada, causando um traumatismo craneano.

Armando e Rebeca ficaram ali se olhando por um tempo sem saber o que fazer. O rapaz despertou daquele choque, pois não teve intenção de matar a esposa. Imediatamente colocou a mulher no carro e partiu em desabalada carreira rumo ao Hospital.

Para infortúnio do Armando, Nilda já chegou morta sem chances de ser socorrida. O marido declarou que a mulher quando se dirigia à escada, tropeçou e bateu com a cabeça na quina.

O álibi foi perfeito e a polícia encerrou o caso sem maiores problemas, acreditando na versão de Armando que disse que Rebeca tinha vindo visitar Nilda e viu quando a tragédia aconteceu. Ele não teve mais coragem de olhar e conversar sequer com Rebeca. Armando tratou de mudar-se dali para bem longe e nunca mais se viram.

Rebeca nunca mais teve paz na vida e possuía um sentimento múltiplo arrasando com ela, um misto de arrependimento pela traição ao marido. Por ser testemunha participante de um crime culposo que nunca mais deixaria seus pensamentos e a torturava o tempo todo. Também pelo fato de ter se omitido de revelar a verdade ao Delegado.

O marido Aníbal e a filha Dora desconfiavam que Rebeca guardava um segredo sobre os acontecimentos trágicos na casa vizinha e por mais que a pressionassem, não conseguiam arrancar dela uma única palavra,  e pensava ela:

“Como poderei contar o verdadeiro acontecido? Traição, omissão, incapacidade de superar tudo pelo que passou.”

Rebeca estava desesperada ao ponto de pensar em suicídio ou revelar toda a verdade. Até que um dia, já à beira da loucura, pediu ao marido e a filha que fossem junto com ela à delegacia pois queria prestar um testemunho sobre a verdade de tudo o que havia acontecido naquele fatídico dia.

Será que a polícia iria atrás de Armando por não ter contado a verdade no seu depoimento? Aníbal e Dora depois de tomarem conhecimento de toda a verdade, vão perdoar Rebeca e a vida poderá voltar como era antes? Aguardem os próximos capítulos. 

 

FÉ E DESCONFIANÇA - Helio Salema

 


FÉ E DESCONFIANÇA

FÉ em DEUS, desconfiança das pessoas

Helio F. Salema                   

 

   CAPÍTULO UM

 

No início do outono, às tardes, a temperatura era mais agradável. Senhoras colocavam cadeiras nas estreitas calçadas, para “pegar uma fresca”. As pessoas eram forçadas a passar bem devagar e assim não deixavam de cumprimentar as moradoras. Algumas até paravam e entrosavam uma prosa. Aquelas que não queriam conversa passavam pelo meio da rua, apressadas. Era assim a vida naquela pequena cidade.

Como um trovão que chega sem o menor sinal de chuva, carros da polícia passavam pelas ruas da tranquila cidade de Santa Felicidade assustando os moradores. Ninguém conseguia imaginar a razão de tantas viaturas.

Nem as mais afinadas fofoqueiras suspeitavam do motivo. Alguns mais afoitos seguiram na mesma direção para serem os primeiros a saberem das últimas.

O comboio parou em frente à igreja. Os policiais desceram e se posicionaram junto à porta, como se esperassem alguém lá de dentro sair. Minutos passaram e mais pessoas foram se concentrando na praça em frente à igreja.

Vários policiais se dirigiram apressadamente para o lado da igreja, onde o padre, por uma porta, saía vestido com roupas de cidadão comum. Ao ver os policiais correu em direção à mata. Foi capturado minutos depois. Sem demonstrar qualquer sinal de reação, caminhou lentamente de cabeça baixa e entrou na viatura.

Nesse momento chegou ao local o Sr. Prefeito. O oficial de justiça comunicou-lhe que o falso padre era um prisioneiro. Também lhe foi dito que uma pessoa, na capital, havia pedido investigação sobre o padre. Ao apresentar a foto de um batizado, imediatamente, foi reconhecido o fugitivo. Condenado como golpista e por tentativa frustrada de estupro.

 

                      CAPÍTULO DOIS

 

O falso padre chegou à cidade poucos dias após o falecimento do padre Hilário. Foi direto à igreja e se apresentou como o substituto. Por ter estudado em colégio religioso, não teve dificuldades de adaptação. Bom de conversa foi logo conquistando a confiança das pessoas mais ligadas à igreja.

Falava de sua infância de menino pobre, sem presentes, sem roupas novas, só as usadas quando alguém de bom coração doava. Não passou fome, mas muitas vezes um pequeno pão era dividido para quatro.

Tinha imensa e inabalável fé em Deus, e até confessou ser devoto de São Sebastião, padroeiro da cidade. O que o teria deixado muito feliz ao saber que viria, justamente para esta paróquia. Preocupado com o futuro da humanidade defendia a família e os bons costumes.

Sendo um bom ouvinte e atento a todos que o procuravam, não teve dificuldades em obter a confiança dos fiéis. Além de padre, também era um amigo para todas as horas e situações. Várias vezes foi chamado para resolver briga de vizinhos ou até mesmo de família.

Sua calma, voz suave e paciência para ouvir, muito contribuíram para resolver os conflitos. Assim foi conseguindo a confiança total das pessoas que o procuravam, em momentos difíceis ou de desespero.

Aquela situação de salvador de todos o fez, aos poucos, mudar sutilmente seu comportamento.

Ao perceber que era respeitado e admirado, passou a se interessar em saber tudo sobre todos. Mas percebeu que eram poucos os que se confessavam com frequência. Então passou a exigir de cada frequentador a confissão pelo menos uma vez por semana.

Conseguiu aumentar bastante a participação dos fiéis na confissão semanal. Algumas pessoas não tiveram dificuldades em relatar coisas que até aquele momento, jamais haviam pensado em revelar. Outras com muito custo, e graças à insistência do padre, se expuseram a tal ponto de mencionar fatos que antes não tinham sequer coragem de pensar. E assim com bastante habilidade conseguiu estimular até confissões íntimas.

Para aquelas que não aceitavam tal exigência, por não terem facilidade em se expressar ou por não verem necessidade, ele alegava ser necessário, sim, para o desenvolvimento espiritual de cada um ou ficaria esse sofrendo junto aos maus espíritos.

 

                CAPÍTULO TRÊS


No entanto, havia um grupo que resistia a cumprir esta exigência.

Entre eles estava Severino, que sempre participou das atividades desde sua adolescência. Depois de casado, junto com a esposa, que também era católica fervorosa. Após o falecimento da esposa, ele encontrou na igreja e nos fiéis, um apoio que lhe valeu muito.

Desde a chegada do novo padre ele sempre manteve certa distância, pois o mesmo não lhe parecia confiável.

Mais preocupado ficou quando numa noite ao passar próximo à igreja viu uma senhora saindo apressada da porta lateral da igreja, justamente a que dava acesso aos aposentos do padre. Assim que ela virou a esquina, Severino correu para tentar alcançá-la. Mas ao chegar à esquina viu a rua totalmente deserta. Caminhou até o final e constatou que todas as casas estavam às escuras reinando absoluto silêncio. Ficou por alguns segundos pensando se era uma pessoa, apenas um vulto, assombração ou alma de outro mundo.

Desesperançoso e ofegante voltou para casa. Assim que entrou, ajoelhou-se e rezou por um longo tempo. Aquela cena não saía da sua cabeça, cada dia que passava, mais intrigado ficava. Por vários dias ficou tentando lembrar-se de detalhes. Altura, tipo de roupa, mas nada de especial que pudesse ajudar na identificação. Até mesmo a sombrinha era semelhante às outras que ele via na rua.

Resolveu então caminhar à noite passando várias vezes pelo mesmo local e em horários diferentes. Os dias foram passando e o desânimo aumentando.


           CAPÍTULO QUATRO

 

Com a chegada da Semana Santa várias famílias vieram à Santa Felicidade aproveitando o feriado para rever os familiares e amigos. Foram dias de muita alegria para os moradores daquela pequena e sossegada cidade.

Severino pôde rever amigos, saber das novidades da capital e também sentir a falta de outros que desta vez não vieram.

Foi grande a satisfação em rever Agostinho, sobrinho de sua falecida esposa, há muito tempo residindo na capital. Lembranças do tempo que este era seu companheiro nas pescarias, época que pescar era a principal distração de ambos.

Também Agostinho disse que sentia saudades de quando Severino lhe ensinava técnicas importantes para o jogo de damas, geralmente após o jantar. A cada momento que eles se recordavam de algum momento especial, riram como duas crianças no dia de Natal.

Agostinho, porém, interrompeu a euforia quando perguntou sobre o padre:

— Tio quem é esse padre novato que está querendo “bagunçar” com a fé e a cabeça das pessoas?

— Ehh!  Também a minha cabeça anda “sacolejando”. Não sei onde isso vai parar.

— Ainda bem que eu não frequento igreja, mas acho que as pessoas precisam ser respeitadas.

Subitamente, chegam até eles outros amigos do Agostinho.

Após um pouco de prosa, eles se despediram de Severino e seguiram para se reunirem com outros amigos de infância.

 

    CAPÍTULO CINCO

 

Passadas algumas semanas, Severino resolveu voltar a frequentar a igreja. Mesmo a contragosto decidiu fazer a comunhão semanal. Aproveitava também para numa longa conversa com o padre, talvez ganhar a confiança dele, e quem sabe, em algum momento, ter uma revelação. Eram assuntos dos mais diversos. Assim eles foram trocando informações pessoais.

Foi numa dessas confabulações, que Severino distraidamente relatou um fato guardado em segredo por muitos anos. Uma tentativa de estupro não concretizado. Impedido por familiares da vítima. Para evitar ser agredido teve que sair, imediatamente, daquela localidade, às pressas, e nunca mais voltar.

Na primeira missa, após a confissão de Severino, com a igreja lotada de fieis, durante o sermão, o padre falou do terrível pecado do estupro. Mesmo sendo impedido. O fato de haver a insana intenção já era objeto de condenação sumária. Prosseguiu dizendo que alguém ali presente havia sido autor, em outros tempos, o que não o eximia da culpa.

Severino sentiu a punhalada, forte e certeira, no seu coração. Minutos depois saía arrasado e se arrastando, moralmente.

 

             CAPÍTULO SEIS

 

Após a saída dos policiais, os curiosos se aproximaram do Sr. Prefeito para ouvir o que ele relatava aos seus amigos mais chegados. Severino que a tudo observava de longe, também se aproximou.

Ouviu atentamente as perguntas dos mais afoitos e toda a explicação do Sr. Prefeito, principalmente quando disse que o falso padre fugiu da cadeia e que havia sido condenado por práticas de golpes e tentativa de estupro.

Severino ergue a cabeça, fixa os olhos na torre da igreja e quase sussurrando:

— A JUSTIÇA DIVINA tarda, mas não falha.

 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

TENTAÇÃO - Hirtis Lazarin

 


TENTAÇÃO

Hirtis Lazarin


Duas viaturas, sirenes ligadas, estacionaram em frente à pequena igreja “Nossa Senhora das Dores”, no centro de Curió.  Quatro policiais desceram armados.  O sacristão aguardava-os na calçada, gesticulando feito doido.  Andava de um lado pro outro.  As palavras saiam enroladas, difícil entender o que estava acontecendo.

Honório trabalhava meio período num posto de combustível.  Depois do almoço, dedicava seu tempo a cuidar da igreja.  Trocava as flores murchas dos vasos, brilhava o chão de ladrilhos azul e bege, espanava o pó onde se acumulava.  Deixava tudo em ordem até às dezesseis horas.  Pontualmente, abria a porta de madeira bem pesada. O rangido das dobradiças enferrujadas era tão forte que se tornou referência de hora pra quem não tinha relógio.

O som alto e prolongado das sirenes atraiu gente de todo canto.  Crianças pararam de brincar, donas de casa abandonaram a panela de feijão no fogo, o pintor de parede caiu da escada...  Em minutos o quarteirão estava apinhado de gente.

A vida no vilarejo de Curió parecia presa a sua espantosa monotonia.  Os dias e a vida eram desenhados para seguirem sempre um roteiro definido e sem surpresas.  A quebra da rotina naquele dia e a curiosidade maior que o medo, careciam da presença de público.

Os cinco homens entraram na igreja e fecharam a porta. Tudo revirado...  Imagens de santos em pedaços atirados ao chão, flores pisoteadas, o cofre na sacristia com o dinheiro do dízimo saqueado, o altar revirado, hóstias espalhadas.  O cálice de ouro maciço usado na distribuição da comunhão jamais foi encontrado.

A porta que dava acesso aos aposentos do padre estava arrombada. Cobertas e lençóis no chão, gavetas abertas e vazias. Na parede, apenas o contorno empoeirado do espaço ocupado pelo crucifixo de bronze.   No guarda-roupa, cabides solitários.

A todas as perguntas que se fazia, a resposta era uma só:  “A igreja foi saqueada e o padre sequestrado”.

 

Faziam apenas oito meses que o padre Walter assumira a paróquia.

Homem enérgico e assertivo nos sermões, cobrava, excessivamente, as obrigações dos cristãos e todo dia repetia: “Os tementes e fiéis a Deus devem se confessar semanalmente.   Não estamos livres de cometer pecados entre uma semana e outra.  Ai daquele que morre em pecado”.

Os fiéis, gente humilde e carente de opinião, obedeciam-no religiosamente.  O medo de ir pro inferno atormentava-os desde que aprendiam a ler e estudar o catecismo.

Zezinha era a mais fervorosa de todos.  Sempre de vestido azul, nos mais diferentes tons, véu branco de renda na cabeça, caminhava todos os dias, a passos largos, em direção à igreja. Eram momentos sagrados e dedicados à reza do terço e comunhão.  Nunca esquecia uma flor pra Nossa Senhora.

Todos se conheciam na cidade e logo perceberam que a moça não era mais a mesma.  Antes, de sorriso gratuito e sempre graciosa com os cabelos cacheados e amarrados com fitas de cetim coloridas, encismara-se de vez.  Até se afastou dos poucos amigos que tinha.  A devoção e o tempo que ficava ajoelhada no confessionário contando pecados só aumentavam.

O padre não tinha essa paciência com os demais cristãos.  Cinco minutos bastavam para contar os pecados, rezar o ato de constrição e ouvir a penitência equivalente ao tamanho do pecado.

Após a confissão, Zezinha ajoelhava-se aos pés de Nossa Senhora, terço nas mãos e se punha a rezar.  Só ia embora quando o sacristão apagava as luzes e fechava as portas.

As investigações policiais duraram poucos meses.  Bispos vieram e se foram.  A falta de recursos e nenhuma prova concreta fizeram o delegado encerrar o caso. 

A igreja foi fechada e o povo ansioso aguardava a chegada do novo pároco. 

 Zezinha não saía mais de casa, comia feito um passarinho, falava pouquíssimo e quando falava, mal dava pra entender.  Exames médicos não acusavam doença alguma.  Os pais já não sabiam mais o que fazer.  Só restava orar e orar.

E, lá fora, os boatos corriam soltos: “A pobre moça apaixonou-se pelo padre.  Ela sofre de amor e pra isso não tem remédio.  Pobrezinha!  Só pode ser isso”.

Hoje Curió amanheceu com chuva fina e vento fresco.

Um punhado de gente triste carrega um caixão branco.

Zezinha parou de sofrer.

PADRE MIGUEL - ADELAIDE DITTMERS

 


Padre Miguel

Adelaide Dittmers

 

A pequena igreja da cidadezinha estava lotada. As beatas com véus, que lhes cobriam os cabelos, mas não impediam que a maledicência escorresse por suas línguas, tagarelavam em voz baixa, com olhos argutos, que voavam pelas pessoas como águias em busca da presa.

Acompanhado por dois coroinhas, o sacerdote subiu ao altar.  Era um homem de uns quarenta anos, bem-apessoado e com ar humilde.

As luzes acenderam-se iluminando os anjos e santos barrocos distribuídos por pequenos altares e o altar, onde reinava a padroeira da cidade.

O silêncio apagou as conversas.  A expectativa era sentida em cada rosto.  Naquele domingo, um novo padre assumiria a paróquia.

As pessoas levantaram-se para recebê-lo.  As beatas cochichavam agitadas pela beleza do padre.  A curiosidade varria o lugar.  Como seria o novo padre? O anterior era muito severo.  O que esperar deste?

Com um sorriso simpático e um gesto, ele indicou para todos sentarem e apresentou-se, dizendo que estava muito feliz de ser o condutor espiritual da cidade.

As orações, os hinos e os rituais da missa sucederam-se suavemente.  No momento do sermão, ele subiu ao púlpito e encantou os fiéis com uma prédica envolvente, em que palavras de conforto e exortação ao amor e respeito ao próximo foram derramadas pela igreja.

Terminada a missa, os frequentadores saíram para a praça e formaram pequenos grupos, comentando o que acharam do novo pároco. Os elogios daquela boa gente elevaram-se pelo ar fresco da manhã.

As beatas combinaram que precisavam se confessar para assim se tornarem mais próximas dele.  Elas consideravam os sacerdotes seres quase divinos, mas dentro delas algo mais terreno as sacudia.

O tempo foi passando e o padre Miguel foi conquistando o coração e a confiança de todos. Era amável, compreensivo e tolerante.  Nos sermões sempre exaltava a importância de os fiéis confessarem todas as semanas para aliviarem suas almas dos desgostos, problemas e remorsos, que a vida trazia.

O povo simples e crédulo cumpria esse pedido com devoção.  Abriam o coração, confessando os medos, os males feitos, as desavenças e os desafetos, na esperança de serem perdoados por Deus.

Padre Miguel tornou-se muito respeitado e ninguém mais movia um dedo sem consultá-lo. Muito inteligente, ele absorvia todas as informações.  Assim, o manto tênue do homem perfeito cobriu a cidade com seu poder de convicção.  De maneira sutil, levava os mais poderosos a confessar suas desonestidades, convencendo-os de que o perdão divino viria se fossem generosos com a igreja.  Aos mais pobres dizia que se dessem o dízimo, milagres aconteceriam.

Em uma tarde de outono, de ar fresco e vento suave, que levantava as folhas secas, que caiam mansamente das árvores, um trem apitou na curva da via férrea aproximando-se da velha estação, bufando seu cansaço e fazendo as rodas gemerem ao estacarem nos trilhos.

Vários passageiros desceram e, dentre eles, um casal de cabelos grisalhos, puxando pesadas malas. O homem olhou em volta, como que tentando reconhecer o lugar.  Quase nada mudara desde que ele fora embora, aos dezenove anos, para ir morar na metrópole em busca de maiores oportunidades. 

— Não é simpática esta estação? Você vai gostar daqui.  É um lugar calmo e o povo é pacífico.  Disse com a voz embargada pela emoção.

Estava voltando depois de tantos anos para desfrutar da aposentadoria no lugar tranquilo em que nascera. 

Sairam da estação e Luisa observava tudo com curiosidade.  As ruas estreitas de paralelepípedos, onde as casas desfilavam com pequenos jardins. Outras construídas diretamente junto às calçadas, em que mulheres se debruçavam nas janelas para ver a vida passar.

Arrastando a bagagem, chegaram à uma velha casa com um grande jardim, onde reinavam jabuticabeiras, limoeiros, mamoeiros e outras tantas árvores, que dançavam suavemente ao sabor da aragem.

Entraram, e velhas mobílias os esperavam.  Abriram as janelas para deixar a luz do sol entrar. Cada canto trazia uma lembrança a Tomé.  A casa estava fechada há muito tempo, precisaria de algumas reformas, mas era confortável e ampla. E voltar para ela, era voltar ao antigo ninho.

Aos poucos foram se habituando à nova vida.  Tomé aproximou-se de velhos amigos e Luisa foi fazendo novas amizades.  Católicos fervorosos começaram a frequentar a igreja.  Aos domingos iam à missa, e como todos, foram capturados pela doçura do carismático padre.  Apesar de suas profissões terem exigido muito deles, ele fora um exímio investigador de polícia e ela, professora, sempre gostaram de participar das tarefas paroquiais.  Ensinavam catecismo às crianças, promoviam encontro de casais e ajudavam em outras programações da igreja.

Certo dia, ao entrar na sacristia, encontrou uma mulher de vestes simples, que se dirigiu a ele:

— Sr. Tomé, vim entregar o dízimo, mas o padre não está.  Posso entregar para o senhor?

Dízimo? Ele pensou, não sabia que o dízimo era cobrado.   E, quando viu a quantia, surpreendeu-se ainda mais.  Era muito dinheiro para aquela pobre mulher.

— Não é muito o que a senhora está oferecendo?  Perguntou.

— Preciso de um milagre e o padre disse que se eu desse o dízimo, o Senhor me ajudaria.

Aquilo não lhe saiu da cabeça e seu instinto de investigador acendeu-se como uma labareda dentro de sua cabeça. Começou então a observar com mais atenção o que acontecia na sacristia.  Passava os olhos pela escrivaninha de Miguel e notou também o movimento de beatas, que entravam e saiam, todas arrumadas como se fossem a um encontro.  Uma tarde, viu um cheque meio escondido na escrivaninha e com cautela verificou a quantia e de quem era a assinatura.  Arregalou os olhos: era uma alta soma de dinheiro de um rico fazendeiro da região.

Desses dias em diante, quando o sacerdote estava ausente remexia nos papéis da sacristia e revolvia gavetas à procura de dinheiro.  Descobriu que altas somas eram dadas regularmente à paróquia, que não apareciam na contabilidade e nem eram empregadas para consertos ou obras assistenciais.

Com habilidade começou a investigar os documentos do padre e descobriu que eram falsos.

Como todos tinham sido enganados? Como tudo isso fora possível? Resolveu se comunicar com o bispo da arquidiocese mais próxima e relatar o que estava acontecendo.  A notícia caiu como um raio no bispado, porque informaram a Tomé, que tinham enviado um sacerdote para aquela paróquia.  Padre João tinha partido para o novo ofício há mais de dezoito meses.  A situação era mais grave do que Tomé supusera.  O que poderia ter acontecido com o padre, que não chegara ao seu destino.

Uma detalhada investigação os levou ao trajeto do padre João e descobriram que ele desapareceu durante o caminho.  O delegado de uma das cidades por onde ele passara informou que tempos atrás, foi encontrado o corpo de um homem boiando no rio, com uma facada na barriga.  Estava quase nu e até aquele momento não tinham conseguido identificá-lo.  Fotografias do cadáver foram enviadas para os investigadores, que constataram que era o pobre padre João.  Um arrepio passou pelo corpo de todos.  Seria Miguel o assassino? Ao juntar as peças do acontecido, cada vez mais a suposição os levava para o falso padre.

A polícia invadiu a igreja e prendeu Miguel com a acusação de ter usado falsa identidade, tirado grandes quantias de dinheiro dos fiéis e o por ser o principal suspeito do assassinato do verdadeiro padre.

A notícia da prisão do falso padre tumultuou a cidade. O choque paralisou os habitantes e alastrou-se como pólvora.  A revolta foi tão grande, que quiseram invadir a delegacia em que o homem estava preso provisoriamente.  Com muito custo, os policiais conseguiram dominar a situação, dispersando a pequena multidão desvairada.

As beatas foram para a igreja rezar e pedir perdão a Deus pelos pecados e por terem sido enganadas pelo belo padre.  Choravam envergonhadas e abriram a boca e esbulharam os olhos quando uma delas confessou, tremendo dos pés à cabeça, que estava grávida de Miguel. Um ¨Deus nos acuda¨ percorreu o lugar.

Pelos interrogatórios e investigações descobriram a verdadeira identidade de Miguel.  Era procurado há muito tempo por golpes e roubos em que usava armas. A única coisa que não conseguiram, foi arrancar dele a confissão de assassinato do verdadeiro padre. Era esperto e liso como sabão.

Tomé foi homenageado por ter livrado a população daquele bandido e tornou-se a pessoa mais respeitada da cidade.

Em uma manhã de sol e céu azul, sentou-se no terraço da casa em companhia de Luisa, admirando o jardim, com suas flores e árvores carregadas de frutas e onde o silêncio só era quebrado pelo cantar dos pássaros, disse sorrindo:

— E eu que vim para cá gozar minha aposentadoria e a tranquilidade da minha cidade...

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

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