A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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segunda-feira, 22 de maio de 2023

SURPRESA NO CASAMENTO - Helio Fernando Salema

 


SURPRESA NO CASAMENTO

Helio Fernando Salema

 

Numa pequena cidade, um grupo de jovens estava numa festa de igreja, em plena década de trinta do século XX.  Um deles ficou admirando uma menina que ao perceber o interesse do rapaz também ficou estimulada.  Um dos colegas conhecia a família da menina e começou a debochar do rapaz:

— E aí medroso… Só porque ela é a filha do Coronel Pedro, você ficará só olhando de longe?

Augusto pensou seriamente em aproximar-se dela, que no olhar demonstrava interesse recíproco. Respirou fundo, como se recebesse um vento de coragem e foi até Lourdes.


Ela abaixou a cabeça logo ao perceber que ele vinha em sua direção, assim que ele parou, ela ergueu os olhou e seus lábios, com um largo e lindo sorriso, deu-lhe as boas-vindas. Imediatamente começaram a conversar. Pouco depois Lourdes disse que ele precisava ir falar com o pai dela:

— Agora?

— Melhor lá em casa, agora ele está com amigos. Durante a semana falo com ele que você irá procurá-lo.

 

ENCONTRO COM O CORONEL

 

Após trabalhar a semana inteira na fazenda de seus pais, Augusto no sábado à tarde foi até a fazenda do temível coronel. Ao ser recebido, disse que conheceu sua filha Lourdes e que ficou encantado por ela. O coronel após olhá-lo de cima para baixo:

— Conheço sua família…. Aqui em casa não tem namoro. Você quer casar com minha filha?

— Sim! Respondeu o jovem demonstrando convicção.

— Então vou falar com o Padre Francisco para marcar o casamento.

 

Foram semanas de expectativas para ambos os jovens. No dia marcado, pelo Padre, Augusto e familiares foram até a fazenda do coronel.  Assim que o Padre chegou, todos se reuniram aguardando a chegada da noiva.

Augusto leva o maior susto de toda sua vida ao ver que a noiva não era a Lourdes. Olha para o coronel e baixinho:

— Não é esta!

— Aqui! Primeiro casam as mais velhas.

O Padre ao ouvir fica parado e assustado. O coronel com a mão direita sinaliza para dar prosseguimento a cerimônia. Tudo transcorreu na mais absoluta normalidade.

Augusto não viu Lourdes e nem ela presenciou o casamento dele com sua irmã mais velha, Mariana.

Após a cerimônia a noiva trocou de roupa, pegou suas coisas, conforme seu pai ordenou, e seguiu com os familiares, do agora seu marido, para a fazenda do sogro.

Como D. Mariquinha era uma senhora muito frágil e doente, sua filha Mariana era a que mais se preocupava com a situação dela. Poucas semanas após o casamento, Mariana convenceu Augusto da vontade dela de visitar e ver como estava sua mãe. Augusto gostou da ideia e resolveram passar alguns dias na fazenda do Coronel.

Foram dias de aparente tranquilidade. Augusto e o coronel conversaram bastante sobre gado, lavoura e a situação das fazendas da região. O coronel ficou impressionado pelo conhecimento do jovem a respeito daqueles assuntos. Porém, quando o sogro falou de política, o genro ficou em silêncio. Não era assunto que lhe agradava, pois em sua casa não se discutia política nem religião. Seu pai e irmãos gostavam do que produziam e tinham ambições de adquirir outras propriedades.

A partir daí era comum todo mês o casal passar alguns dias na propriedade do coronel. Até que D. Mariquinha faleceu. Poucos meses depois Mariana ficou grávida e assim não ia à fazenda do pai. Com a ausência da esposa e da filha mais velha começou a sentir-se só, já que Lourdes e Lúcia pouco conversavam com o ele. Elas preferiam os assuntos das empregadas.

Então o pai teve uma brilhante ideia. Como a mulher de um dos seus colonos era uma parteira muito experiente e respeitada por todos das fazendas próximas, resolveu sugerir a Mariana e ao Augusto que viessem morar com ele, para ficarem perto da parteira e assim teriam mais tranquilidade quando do nascimento e cuidados da criança. Coisas que na fazenda da família do genro, sua filha não teria.  

Mariana, que sempre concordava com o pai, ficou impressionada com a ideia. Seu marido, a princípio, ficou pensativo tentando entender aonde seu sogro queria chegar com essa sugestão. Além, é claro, da sua própria reação ao rever Lourdes, como também de como ela se comportaria, mas concordava com os argumentos do coronel. Poucos dias depois o casal mudou-se.

 

CORONEL E A POLÍTICA

 

Alguns meses antes da eleição, o Coronel Pedro ficava alguns dias viajando pelas cidades da região em busca de apoio para o seu partido, que havia perdido na última. Contava ele que seu genro conduziria os negócios na fazenda tão bem quanto ele próprio, assim aconteceu.

Sempre que retornava, recebia com surpresa e alegria tudo que Augusto lhe comunicava. Ao contrário do sogro, que era muito severo com as pessoas da casa e funcionários da fazenda, o genro tratava todos com muita educação. Antes de tomar qualquer decisão, gostava de ouvir a opinião daqueles que estavam acostumados a fazer o serviço. Assim foi conquistando a simpatia e confiança de todos.

Quando Mariana começou com as dores do parto, a parteira já estava residindo na casa, por sugestão de Augusto. O parto foi tranquilo, como a própria parteira havia dito, logo nos primeiros dias em que chegou. Assim nasceu um menino robusto, chorão e faminto.

Por sugestão da mãe foi registrado como Pedro Antônio para homenagear os avôs. O pai não se manifestou.

O coronel, que chegou hora depois, viu o neto e ficou encantado. Chegando a dizer que:

— Até que enfim teremos um homem aqui!

Mariana ficou contente por ver seu pai tão feliz… As irmãs nem tanto.

 

SEMANA DA ELEIÇÃO

 

Como era de se esperar, foi uma semana conturbada. O coronel não conseguia dormir e reclamava de dores no peito. Na véspera da eleição, ele e dois correligionários foram alvos de uma emboscada ao retornarem de um comício muito agitado. O coronel levou três tiros no peito e os outros amigos foram atingidos nas pernas. O coronel faleceu no local.  

Dias depois veio a notícia de que o partido do coronel, mais uma vez, perdeu.

Na fazenda foi uma semana de muita tristeza. Mariana, a que mais sentiu a morte do pai, distrai-se com o filho que lhe tomava muito tempo. A medida que o menino ia crescendo diminuía sua aflição.

Augusto, concentrado na administração da fazenda e do pessoal, principalmente com os residentes da casa, pouco se abalou. Depois da missa de trinta dias tomou algumas decisões importantes. Preocupado pelo fato dele, como genro, possuir um terço da propriedade, enquanto as cunhadas, o maior quinhão.

Sugeriu e foi acatado por todas, que o jantar seria servido com a presença dele e das três irmãs. Com isso ele podia, após o jantar, relatar a situação da fazenda, que melhorava a cada dia. O que lhe rendeu, ainda mais, a confiança das cunhadas.

Em poucos meses a fazenda parecia outra. Mais bonita e melhor cuidada em todos os sentidos. Com o resultado financeiro crescendo a cada mês, Augusto comunicou que uma pequena propriedade vizinha estava a venda e que no dia seguinte iria saber dos detalhes.  O que causou uma alegria geral numa noite de muita expectativa das mulheres.

Pouco dias antes de Pedro Antônio completar um ano, Lourdes deu à luz a um menino, cujo nome ela mesma escolheu — AUGUSTO DOS SANTOS FILHO.

 

  

quarta-feira, 17 de maio de 2023

O INCÊNDIO - Adelaide Dittmers

 


O INCÊNDIO

Adelaide Dittmers

 

O dia amanheceu ensolarado. O jornaleiro abriu a banca de jornais, observando a rua, que àquela hora já começava a ter movimento de pessoas, indo para o trabalho.  Algumas entravam na padaria do outro lado da rua para comprar o pão matinal ou tomar café.

Ele gostava de ver a cidade acordar. Há anos tinha a banca ali e conhecia a maioria dos moradores do lugar.

De repente, ouviu um vozerio e se surpreendeu ao ver Tony, um velho conhecido, correr desesperadamente pela rua abaixo.  Rosto sério, distorcido por uma careta, pelo esforço da corrida desenfreada.  Em uma das mãos, uma pasta preta balançava movida pela ação dos movimentos.

Chamou-o assustado:

— Tony! O que aconteceu?

O homem, porém, nem olhou para trás.  Algo muito urgente o impelia naquela corrida insana.

Nesse momento, o jornaleiro percebeu uma pequena multidão, que corria em direção contrária, gritando:

— Fogo, fogo.

Ele olhou então para o outro lado e, com horror, viu grandes labaredas, que exalavam uma nuvem de fumaça preta, que consumiam a parte de trás da casa do homem em fuga.

Correu e juntou-se ao grupo, em que todos falavam ao mesmo tempo, no desespero de saber o que fazer.

O fogo logo se espalhou por toda a casa.  Alguém ligou para os bombeiros.

O jornaleiro aproximou-se e, com grande espanto, viu um vulto, que cambaleando saia da casa coberta por uma cortina de fumaça.

Num gesto impulsivo, sem pensar, arriscando-se, colocou um lenço no rosto e puxou o homem para a rua.  O desconhecido tossia, engasgado pela fumaça e tinha queimaduras nos braços e no rosto.  Uma das pessoas, que ali estava, tirou o paletó e o envolveu para abafar uma pequena chama, que o atingia.  Outro o deitou no asfalto e fez com que rolasse. O resgatado urrava de dor. Alguém trouxe água, que jogou sobre ele.

Uma ambulância foi chamada. A gritaria e a consternação subiam pelos ares, atraindo mais gente.

Algum tempo depois, os bombeiros chegaram trombeteados pelas sirenes altas, que pareciam aumentar ainda mais a gravidade e a urgência de resolver aquele desastre.

O carro parou em frente à casa, que parecia soltar gemidos doloridos e com rapidez começaram a lançar grandes jatos de água.

Um dos bombeiros avaliou as queimaduras do ferido e pediu para as pessoas se afastarem dele. Verificou as batidas cardíacas e tentou acalmá-lo, porque logo chegaria o socorro.  Levantou-se e cumprimentou as pessoas, que deram os primeiros socorros ao homem, de maneira correta.

Uma ambulância apontou na rua com sua sirene estridente, alardeando sua chegada.  Socorristas desceram e fizeram novas avaliações das queimaduras e imediatamente o colocaram no carro.  Com a mesma pressa, partiram em direção ao hospital.

Lentamente, o fogo foi vencido pela força da água. O cheiro do incêndio, porém, permaneceu no ar. As pessoas foram se dispersando, mas todos se perguntavam o que acontecera ali, o que provocou o incêndio.

O jornaleiro voltou à banca.  Seus pensamentos pululavam, querendo compreender o acontecido.  Por que Tony correu sem pedir socorro, quando sua casa ardia?  Quem era o homem, que saiu das chamas?  O que havia naquela pasta?  Sua cabeça parecia ter sido incendiada também.

Tony era um homem calmo, agradável e de boa conversa.  Morava sozinho após se tornar viúvo.  Era muito discreto e nunca falava sobre sua vida particular.  Fazia algumas viagens, que dizia ser de negócios.  Comprara o terreno, onde colocou uma casa pré-fabricada de madeira. E lá vivia há muitos anos. O que havia por trás de tudo isso, perguntava-se o jornaleiro.

Na manhã seguinte, os jornais estampavam a foto do homem, que saíra do incêndio.  Para surpresa de todos, era um político conhecido.  Estava em estado grave, mas estável.

O falatório espocou entre todos.  Não se falava de outra coisa.  Uma vizinha disse que ouviu uma discussão acirrada antes da casa pegar fogo, mas não entendeu o que diziam. O mistério era repleto de pontos de interrogação.  

Alguns dias depois, o jornaleiro abriu sua banca e recebeu os periódicos do dia. Uma manchete na primeira página de um grande e conceituado jornal atraiu sua atenção.

— Não é possível!  Falou alto. O rosto era uma máscara de espanto.

Em letras garrafais estava escrito:  O deputado federal José de Albuquerque, retirado de um incêndio, na quarta-feira passada, está sendo alvo de uma investigação, que o liga a diversos crimes.

Avidamente, ele abriu o jornal na página em que estava detalhada a notícia.

— Meu Deus! Gritou ele, chamando o dono da padaria, com largos acenos.

— Venha aqui ler isto!

O padeiro e várias pessoas, que estavam conversando por ali, correram para a banca, pois o jornaleiro parecia transtornado.

Como esfomeados, engoliram a notícia em poucos minutos.

A investigação sobre o político descobriu vários crimes: desvio de dinheiro público, lavagem de grandes somas, assédio sexual e prevaricação.

O incêndio foi provocado pelo político, que, furioso, queria apagar as provas contra ele ao descobrir que estava sendo investigado por um jornalista.  Desvairado, ligou o gás do fogão, acendeu um fósforo, enquanto agarrava o jornalista, que conseguiu se desvencilhar, sair correndo, pegar a pasta com as provas e fugir dali.

Enquanto isso, a velha casa de madeira se rendeu ao avanço do fogo.

Quem assinava a reportagem era Antonio Silveira, jornalista investigativo.

O grupo se entreolhou abismado. 

Tony, um jornalista investigativo, quem diria.  Por essa razão era tão discreto em seus assuntos de trabalho.  Comentaram, orgulhosos de terem-no como amigo.

ZEZINHO E AS MARGARIDAS. - Helio Fernando Salema

 



ZEZINHO E AS MARGARIDAS.

Helio Fernando Salema

 

 

Zezinho ficava eufórico quando via aproximar-se da fazenda uma carroça.

Imaginava que estava repleta de livros, como o paiol cheio de milho.

Felicidade maior era ao reconhecer o condutor, seu Nacib. Corria em direção ao viajante para ser o primeiro a saber do que ele trazia, embora tivesse certeza de que eram livros e algumas encomendas recebidas quando da última visita.

 

Depois ia correndo para dentro da casa e aos berros, avisava a todos da novidade. Até o cachorro Rex vinha latindo e balançando o rabo para saudar o esperado senhor, pois este sempre lhe fazia afagos.

 

Quando todos estavam próximos da carroça, Zezinho ficava com olhos e ouvidos atentos, pois sabia que era a hora do seu Nacib falar. A medida que o colportor narrava as histórias de cada livro, ele concentrado memorizava tudo e prestava bastante atenção na capa do livro. Sempre havia uma que era a sua história preferida, depois solicitava que comprassem aquele livro para ele.

 

As pessoas compravam alguns livros, mas nem sempre era aquele que o menino queria, apesar da sua insistência.  Após realizar algumas vendas, seu Nacib, experiente vendedor, escolhia um bem baratinho. Narrava com bastante entusiasmo, deixando o garoto perplexo com a história, em seguida dava-lhe de presente. Era a recompensa que aquele pequenino esperava e se encantava com ela.

 

Seu Nacib algumas vezes pernoitava na fazenda, pois sabia que moradores próximos sempre apareciam no início da noite. Até o Zezinho costumava sair e avisar em algumas casas.

No momento em que ele ia embora, o menino o acompanhava com um olhar de tristeza, embora ficasse em seu coração a esperança da nova visita.

 

Quando a fazenda recebia visitas, ele fazia questão de mostrar os novos livros e contava as histórias que ele ouviu e decorou.

 

 

O ENCONTRO

 

 

Sempre que anunciavam festa em alguma fazenda próxima, o menino todo dia, bem cedinho, perguntava se era hoje. Com tristeza, ouvia como resposta… Ainda não. Logo depois vinha novamente a esperança de que falta pouco… Só um pouquinho. E foi numa festa que ele conheceu Rosinha, uma menina do seu tamanho que também se encantou pelo olhar do interessado.

 

Ficou sabendo que Rosinha morava perto do ribeirão, mostrou-se interessado em pescaria. Sua mãe muito preocupada não deixou. Poucos dias depois ele descobriu que o seu Calixto, que trabalhava na fazenda, nos fins de semana pescava depois que terminava o serviço. Insistiu tanto até que sua mãe concordou e permitiu que ele acompanhasse o seu Calixto, mas com muitas recomendações aos dois.

 

Um dia, ao voltar da pescaria, o jovem pescador percebeu que Rosinha o olhava do quintal de sua casa. Viu na beira do caminho uma pequena e bonita florzinha, toda branca. Pegou-a e avisou ao seu companheiro:

— Vou falar com minha amiga e volto já.

Seu Calixto, ao perceber que ele tinha uma margarida na mão, não teve dúvida. Andou alguns metros e ficou parado esperando. Isso foi se repetindo nos sábados, o que deixava seu Calixto completamente emocionado e lembrando da época em que ele, ainda muito jovem, conheceu sua futura esposa.

 

Um belo dia, ao receber a margarida que Zezinho trazia​,​ Rosinha retribuiu-lhe com um cartão. O menino foi para a casa saltitando de alegria. Era um cartão com o desenho de um coração e alguma coisa escrita.

 

A sós, em sua casa olhava emocionado para o cartão, até que uma tristeza o fez ficar abatido. O que estaria escrito? Será que foi ela quem escreveu?

 

Na próxima pescaria ele levou o cartão. Quando seu Calixto falou em ir embora, o menino rapidamente arrumou suas coisas e disse que i​ri​​antes​, espera​ria​ pelo companheiro perto da casa da Rosinha. Com o sorriso do velho pescador, o menino percebeu que assim poderia ser.

 

Ao chegar perto da casa viu que ela o esperava. Ao entregar a flor, mostrou o cartão e perguntou se foi ela que escreveu.

Assustada com a pergunta:

 

— Sim... Você leu?

 

Ele, sem saber o que responder, abaixou a cabeça e ficou triste, como uma margarida murcha… Sem vida.

Olhou para a estrada e viu seu companheiro que estava próximo, disse ter que ir e assim o fez.

 

 

 

 

A ESCOLA

 

 

 

Assim que chegou em casa foi logo falando para a mãe que queria estudar. A mãe surpresa, mas muito contente, respondeu que na segunda-feira iria até a escola falar com a professora. Preocupada em atender a vontade do filho, antes que ele mudasse de ideia, avisou à patroa e, segunda-feira, bem cedo, ambos foram ao caminhão do leite até a escola.

 

Lá chegando, sua mãe perguntou se o seu filho poderia frequentar as aulas. A resposta não foi a que esperava, embora a Diretora fosse muito atenciosa:

— Traz a Certidão de Nascimento dele, que efetuaremos a matrícula.

— Ele não tem documento nenhum. É muito pequeno.

— Sim. Porém, sem a certidão não pode.

— E se ele começar e, depois, consigo o documento?

— Infelizmente… Não.

 

Assim, com um fardo de decepção nas costas e um vazio de caverna abandonada no coração, retornaram a fazenda. Ao chegar foram recebidos por Dona Cândida, madrinha do Zezinho. Ao tomar conhecimento do problema e diante da tristeza do afilhado, disse que no dia seguinte iria ao Cartório providenciar o documento.

 

 

Dona Cândida tinha muito carinho pelo seu afilhado e filho de sua especial e única empregada, sua companheira há muitos anos. Desde que ficou viúva, os dois a faziam companhia. Seu único filho, ainda adolescente,  foi morar na capital e raramente retornava à fazenda.

 

Quando Dona Cândida subiu na charrete e olhou para a porta da casa, seu corpo todo se arrepiou.  Seus olhos se encontraram com os do menino, que olhava com um brilho que só mesmo as crianças têm​,​ uma esperança divina, conseguem emitir um raio tão cintilante.

 

Aquele olhar fixou a senhora ainda por alguns minutos, mesmo estando fora do seu alcance, era o pensamento dele em algo necessário para sua vida agora e futura.

 

No final da tarde, Dona Cândida retorna e encontra seu afilhado a espera na varanda. Ao vê-la, fica de pé junto a mureta com o coração aflito, mas como educado que era, aguardou até que ela entrasse. Ela olha para o menino e diz que semana que vem ficará pronta a certidão. O dono do Cartório​, ​ esta semana​,​ está viajando. O menino não entendeu e uma expressão de tristeza demonstrava o seu rosto. Sua madrinha então lhe explicou detalhadamente e, garantiu que na próxima semana ele irá com ela ao Cartório e assim que pegarem o documento irão até a escola.

 

Foi uma semana de expectativa que o deixou na dúvida se no sábado iria ou não pescar; resolvida quando o seu Calixto o chamou. No caminho, sentia ainda um pouco de vergonha para encontrar Rosinha e não sabendo o que dizer se ela insistisse em perguntar se ele leu. Durante a pescaria uma ideia lhe surgiu. Tirou do bolso o cartão e mostrou ao seu amigo, que elogiou a beleza do cartão e perguntou se foi ele quem escreveu.  Resolveu dizer que não. Então, surpreso, seu Calixto falou:

— Mas está escrito no coração Zezinho e Rosinha.

O menino, segurando a vara, levanta-se como se sentisse o fisgar de um peixe. Espera alguns segundos e recoloca a vara onde estava. Olha para o lado:

— Pensei que fosse um peixe.

Seu Calixto entendeu:

— Também pensei.

Na volta adquiriu coragem, pegou uma bela margarida, correu até o portão, entregou à menina, que o esperava, e disse que seu amigo estava com pressa. Assim, retornou antes que ela pudesse falar alguma coisa.

 

 

 

 

 

 

O DOCUMENTO

 

 

Finalmente chega o dia tão esperado. Antes de clarear, Zezinho já estava de pé ansioso para ir ao Cartório conseguir o necessário documento. Após o café, saiu com sua madrinha todo contente, principalmente por estar indo de charrete e não no caminhão do leite.

Chegando à cidade foram diretamente ao Cartório e sem nenhuma dificuldade pegaram a Certidão de Nascimento.

 

Emoção enorme ao entrar na escola; falar com a Diretora… Mais emoção. Ver as salas de aula, ser recebido pela futura professora, tudo isso o deixou entusiasmado, mas nada comparado ao ver Rosinha sentada com amigas e sorrindo para ele.

 

Ao sair da escola, a sua maior vontade agora era chegar e contar tudo para sua mãe. Porém, era necessário comprar cadernos, lápis e um livro. Dona Cândida aproveitou e o levou a uma loja para ele escolher roupas novas. Pela primeira vez ele lanchou numa padaria. Compraram outras coisas e assim chegaram à fazenda só a tarde.

 

Assim que sua mãe terminou o serviço, sentou-se junto ao filho e ouviu seu relato com todos os pormenores. A madrinha explicou que no dia seguinte o levaria até a escola e que nos outros dias ele iria com as filhas do Sebastião numa charrete grande.

 

Acordou cedo e após se arrumar, ouviu de sua mãe as recomendações de como se comportar na charrete e na escola.  Mas seus pensamentos estavam longe dali. Assim que sua madrinha o chamou, foi logo em direção a ela.

 

Durante a viagem pouco falou, nada perguntou. O silêncio era a demonstração da imensa emoção interna. Na escola ficou fascinado com tudo; outro menino perguntou se ele gostava de jogar bola. Sorrindo, respondeu que sim. Daí começou uma grande amizade, que permaneceu enquanto estiveram na escola.

 

Nas viagens de charrete ele conversava um pouco com as filhas do Sebastião que estudavam em outra sala, eram menores que ele. Rosinha ia com a pai numa outra charrete.

 

Durante o recreio, além de jogar bola com os amigos, algumas vezes conversava com a Rosinha. E nos fins de semana a pescaria com o amigo e, na volta, levava uma margarida para ela.

 

Devido a sua idade foi colocado numa turma que já estava adiantada. Em casa tinha dificuldades de fazer os deveres, mas sua madrinha sempre o ajudava. Num outro caderno ela passava deveres que ela julgava serem necessários para ele acompanhar a turma. Ele não reclamava, pelo contrário, fazia tudo com muito capricho e fica alegre ao receber elogios da madrinha.

 

Gradualmente as dificuldades foram diminuindo. No final do ano, conseguiu ótimas notas e passou de ano. Recebeu presentes da mãe e de Dona Cândida.

 

Como gostava de desenhar, fazia alguns caprichados para a Rosinha, sempre acompanhados de belas frases que a deixavam rindo à toa. Além das margaridas nos finais de semana.

 

 

 

 

 

A FORMATURA

 

 

 

Após anos de estudo, finalmente estava chegando ao fim do curso secundário. Como nos anos anteriores, a escola marcou o dia em que numa solenidade os alunos, com a presença dos familiares, receberiam o certificado de conclusão. Alguns iriam estudar em outras cidades que ofereciam o curso de segundo grau. Não era o caso do Zezinho.

 

Após o término do ano letivo, a Direção da Escola marcou uma reunião no salão do Clube, na qual todos os alunos receberiam instruções a respeito da solenidade que aconteceria no fim de semana. Assim eles ensaiaram durante horas.

 

Zezinho notou que Rosinha, de repente, desapareceu. Saiu pelo clube a procura dela. Atrás de uma árvore a encontrou de beijos e abraços com um funcionário do clube, conhecido dele. Tudo estava perdido. Saiu e foi para a rua caminhando sem destino, não considerava voltar para a casa, muito menos para o clube. Não percebia onde estava, mas também não se importava. Até que ao esbarrar numa senhora, que quase caiu, ele como se acordasse de um pesadelo, segurou a mão da senhora, impedindo que ela caísse, pediu desculpas repetidas vezes. Ela disse estar bem.

 

 Então ele se lembrou do funcionário da fazenda que estaria na charrete esperando por ele na praça. Foi correndo e assim que viu a charrete, subiu e ficou aguardando o condutor.  Seu semblante era tão diferente que até o rapaz perguntou se ele estava se sentido bem. Respondeu estar bastante cansado.

 

Ao chegar em casa já era tarde da noite. Sua mãe o esperava para lhe dar a janta e estranhou seu rosto triste. Perguntou o que aconteceu e ele respondeu estar cansado.

 

Após jantar resolveu falar para sua mãe, aquilo que durante a volta para casa muito meditou e que o levou a tomar uma atitude. Foi calmamente, dizendo que iria para outra cidade a procura de emprego, para poder continuar os estudos. Pediu para que ela arrumasse suas roupas, pois pretendia, no dia seguinte, ir ao caminhão do leite até a cidade e de lá pegar o trem:

— Mas… E a festa no fim de semana?

— Mãe… Meu futuro não está na festa. Vou em busca de algo muito maior. Certamente, está numa outra cidade onde eu possa continuar meus estudos.

 

 

 

 

AO ENCONTRO DO DESTINO

 

 

Após arrumar a mala, deu a ele o dinheiro que ela guardara há muitos meses. Perguntou se ele não queria que ela pedisse ao rapaz para levá-lo de charrete, já que sua madrinha não estava na fazenda e, só regressaria na outra semana:

 

— Não é preciso. Assim que eu estiver estabelecido, venho lhe dar notícias. Por favor, não fala para todo mundo o que eu farei.

 

No dia seguinte pegou o caminhão do leite. Chegou à estação, faltando ainda uma hora para a chegada do trem. Durante a viagem foi admirando a paisagem e percebendo como tantas coisas diferentes existiam e de que ele nunca tomara consciência.

 

Poucas horas depois o trem vai chegando àquela cidade de que ele tanto ouvir falar. Cidade grande, bonita e cheia de gente. Assim que desceu do trem, foi em direção ao funcionário da estação e perguntou onde ele poderia encontrar uma pensão.  O funcionário lhe indicou a rua e deu detalhes da casa.

 

Ao chegar, entrou pelo portão e logo viu uma senhora que perguntou o que ele queria. Respondeu desejar um quarto por alguns dias. Quando a senhora lhe perguntou o nome. Por alguns segundos lembrou que já era outro homem:

— José Antônio.

A partir daquele momento deixou de ser o Zezinho.

 

Após se acomodar no quarto que lhe fora apresentado, foi até a sala, onde a dona se encontrava e perguntou se ela sabia de algum lugar onde ele poderia conseguir um emprego. Após uma longa conversa em que ela indagou sobre o seu passado, deixou-o com uma certa esperança ao afirmar que no dia seguinte poderia ter uma resposta.

 

Conforme prometido, aquela senhora que conhecia todo mundo, assim que José Antônio apareceu para tomar café,  foi logo lhe dizendo que na farmácia, em frente à estação, estavam precisando de uma pessoa para controlar o estoque. No restaurante, mais adiante, havia vaga para auxiliar de cozinha. Agradeceu, tomou café e imediatamente saiu e foi até a farmácia.

 

Lá chegando, procurou pelo Sr. Osmar, que na outra ponta olhou para ele e já foi perguntando se era o rapaz que estava na pensão. Depois de uma conversa, sr. Osmar ficou impressionado com o rapaz e resolveu contratá-lo. Naquele mesmo dia José Antônio começou a trabalhar com muito entusiasmo. Sabia que o seu desempenho era fundamental para o seu futuro.

 

Depois de um mês de trabalho teve um fim de semana de folga. Aproveitou para visitar sua mãe. Chegou no sábado ainda pela manhã.

Ficou na fazenda o tempo todo conversando com ela e sua madrinha, que demonstrou muita alegria em ver o afilhado adulto e demonstrando muita maturidade.

 

No domingo, na hora de ir embora, sua madrinha disse que iria com ele até a estação.  Mandou preparar a charrete e assim que o condutor disse estar pronta eles se foram. Ao passar por uma bela casa próxima à estação D. Cândida apontou em direção àquela propriedade. Seu afilhado olhou e ficou admirado.

 

Quando na estação estavam só os dois, ela lhe disse que provavelmente no mês seguinte, ao voltar, ela e sua mãe já estariam morando naquela casa. Descreveu em detalhes as vantagens dessa nova moradia. Acrescentou que seu filho viria naquela semana para fechar o negócio. E que ela já não estava com disposição e idade para cuidar da fazenda. Logo que tudo estivesse tranquilo na nova residência, colocaria a fazenda a venda.  Seu afilhado pensou ser uma boa ideia já que sua mãe trabalhava muito na fazenda.

 

Assim aconteceu nos meses seguintes  por vários anos. Percebeu que para sua mãe a mudança para a cidade fora ótima. Ela passou a conviver com as vizinhas, frequentar a igreja e se reunir com amigas.

Ele trabalhava durante o dia na farmácia e a noite estudava. Seu desempenho na escola era muito elogiado, os professores diziam que ele seria um ótimo professor.  

 

Deixou o serviço da farmácia após ser procurado por várias mães que queria que ele desse aula particular para os filhos.  Em alguns dias da semana dava aulas o dia inteiro. Depois de alguns anos passou a dar aulas na escola no período noturno.

 

 

Com o falecimento de sua mãe continuou uma vez por mês visitando sua madrinha, pois isso a deixava muito contente, principalmente com as novidades que seu afilhado contava a respeito das mudanças em sua vida.

 

 

 

 

 

 

FINAL

 

Num fim de semana aconteceu que sua madrinha faleceu no início da noite. No dia seguinte, durante o velório, José Antônio teve uma surpresa. No cemitério, ao caminhar em direção a um grupo de pessoas conhecidas, levou um choque ao ver alguém do passado. Tamanho foi o susto que ficou parado, estático e olhando fixamente para ela. Como Rosinha já o vira e percebeu a situação que ele demonstrava, vai em sua direção.

 

Estende a mão e lhe dá os pêsames. José Antônio agradece e continua a contemplar aqueles olhos, que durante muito tempo tocou o seu coração, emoção esta que não sentia há pelos menos oito anos. Uma menina chega e demonstrando certa su​r​presa, fica ao lado de Rosinha e olha, atentamente, para ele. Alguns segundos de silêncio… Então Rosinha quebra o silêncio:

— Esta é minha.

A menina mais assustada ficou… E em seguida:

— Mãe!… Este é o meu pai?

Silêncio geral… Até que um casal chega para cumprimentar José Antônio. Rosinha sai com a menina em direção aos seus familiares. Ao ficar só, ele, sem saber o que fazer, fica desnorteado. Relembrando o passado sem entender o que aconteceu naquele dia no clube em que ela o trocou por outro mau-​c​aráter e analfabeto.

 

Quando poucas pessoas restavam no cemitério, ele consegue pensar mais claramente na situação e se dirige até onde se encontrava Rosinha:

— Você está casada?

— Não! Num momento de fraqueza, fiquei grávida, e assim que ele soube, sumiu, e espero que seja para sempre.

— Moro sozinho numa cidade boa e tranquila. Sou professor na mesma escola em que me formei… Você quer morar comigo?

Antes que ela pudesse responder, a filha chega, ainda mais assustada, pega a mão da mãe e olha para ele, com um olhar cheio de ternura. Ele se curva em direção à menina, olha no fundo dos olhos dela e, carinhosamente, toca em seu rosto:

— Filhinha… Qual é o seu nome?

— Margarida!

José Antônio pega a outra mão da menina e os três saem caminhando, lentamente, de mãos dadas para o futuro.


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