A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O RIO WHARFE - Henrique Schnaider

 




O RIO WHARFE

Henrique Schnaider

 

O Sr. Green nasceu numa casinha senhorial em estilo Tudor às margens do rio Wharfe, perto da Abadia de Bolton. Foi uma criança muito bem-educada já que se tornou filho único, pois o irmão morreu provavelmente afogado nas profundezas das águas do rio. Teve a dedicação total dos pais depois do infausto acontecimento.

Sua mãe ficou tão deprimida com a morte do filho, acabou doando as terras que atravessam o rio, para a construção do mosteiro de Bolton Priory. Dentre as lendas que dominam os moradores ribeirinhos, está história trágica da morte do irmão do Sr. Green, que foi imortalizada por William Wordsworth “A Força da Oração”.

Existem lendas que levam ao fantástico e a pura fantasia que é o caso, pois os moradores dizem se a pessoa puder respirar debaixo d’agua e nadar em direção ao fundo, chegará ao outro lado do mundo. Infelizmente não se sabe se alguém tentou e nem se voltou para contar tal façanha.

Também aprendeu com seu pai a lidar com este rio tão misterioso quanto cruel. As histórias fantásticas que viu e vivenciou, onde o rio é sempre o protagonista. Nunca se aproximava do monstro das águas sem a companhia do pai, conhecedor profundo de tudo que rodeava o rio.

Existem trechos do rio com suas margens tão próximas que muitas pessoas imprudentes no passado foram tentadas a saltar de sobre as pedras ou atravessar sua água, acreditando que ela só chegaria aos joelhos. Acabaram mortas e seus corpos nunca foram encontrados. Green não só sabia destes perigos, como presenciou muitas mortes de pessoas descuidadas. O pior é que cada vez mais o rio atrai pessoas curiosas.

Há placas de avisos por todos os lados para que ninguém se arrisque tentando nadar ou mergulhar. Mas, sempre existem os teimosos e valentões e as mortes continuam acontecendo e as explicações continuam sem nexo. Pois não há pistas daqueles que somem. Se você mergulhar ali nem adianta a família encomendar o caixão pois não vão ter quem enterrar.

Para complicar as coisas tem um trecho do rio Wharfe que desce a montanha em meio de uma floresta com águas serenas e tranquilas, mas é uma verdadeira armadilha da natureza.

O senhor Green pretende escrever um livro sobre tudo que viu e ouviu à beira deste rio misterioso, e a primeira história que vai abrir o livro é do lenhador Oliver. Homem corajoso forte, um touro musculoso que derrubava com poucas machadadas tão profundas que eram, uma árvore de tronco bem grosso, mas que vinha abaixo não resistindo à força bruta.

Dizem as lendas que Oliver se apaixonou por uma bela mulher misteriosa, que aparecia sempre que ele adentrava à floresta e se aproximava dele. A sua beleza deslumbrava o lenhador. O perfume que envolvia todo o ambiente era algo que o homem de origem simples nunca havia sentido.

Esta mulher de nome Laura dizia que habitava a floresta e se encantou com seu corpo másculo e sua alma pura, já que ela tinha poderes para ver coisas além deste mundo. Oliver apaixonou-se por Laura loucamente e ela se deixou envolver. O amor nasceu entre as duas criaturas.

Oliver começou a ficar cada vez mais na companhia de Laura e até parou de derrubar árvores, pois achou que não precisaria mais de lenha para esquentar sua cabana. Então sua amada o convidou para morar no seu reino que ficava do outro lado do rio. Mas para isso ele precisaria atravessá-lo nadando.

Oliver se assustou ao saber que teria que enfrentar o rio traiçoeiro, mas seu amor por Laura foi mais forte do que qualquer temor, e vendo que ela já o esperava do outro lado do rio, mergulhou com toda coragem e começou a nadar em direção da felicidade.

Porém, como esta história vinha sendo contada desde os tempos muito antigos e sendo passada de pai para filho, alguns davam um final feliz para Oliver e Laura. Mas outros moradores contavam de outra maneira e diziam que o rio furioso venceu o corajoso lenhador que morreu afogado. Green resolveu que esta primeira história do seu livro não teria um desfecho.

Cada um que decida como esta história deve terminar. Mas outras histórias virão pois Green sabe um bocado delas.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

APOSENTADO SEM ÂNGELA, COM ÂNGELA SEMPRE - Leon Vagliengo





APOSENTADO SEM ÂNGELA, COM ÂNGELA SEMPRE

 

Um conto que conta como e por que ele mesmo foi contado noutro conto.

Também, um conto do amor que ignora as fronteiras da morte.

 

Leon Vagliengo

 

Gustavo sempre foi um executivo de sucesso, graças a seu preparo e competência. Em sua brilhante carreira, desde muito cedo galgou cargos de chefia. Lider inconteste e sempre querido por seus funcionários, após mais de quarenta anos de bons serviços acostumara-se às vitórias, nunca havia sentido a decepção de um fracasso.

As fortes reprimendas que recebera de seu pai, quando não tirava notas altas na escola, ou quando cometia algum erro, foram muito úteis para o seu aprendizado e formação, mas deixaram marcas profundas em sua personalidade. Não suportava errar ou perder.

A aposentadoria lhe trouxe a oportunidade de realizar alguns sonhos, que antes ficavam fora de seu alcance por falta de tempo. Viúvo havia já três anos, sentia muita falta de sua Ângela, com quem desfrutara uma feliz cumplicidade por quase meio século.

Para fugir das recordações que tanto o machucavam e, também, para tornar mais cômoda a sua vida, agora ainda mais solitária, mudou-se para um pequeno apartamento, que mobiliou com muito cuidado para que lhe fosse confortável e de fácil manutenção, próximo ao parque da cidade, onde poderia encontrar distrações, fazer exercícios e, quem sabe, novos amigos.

        Enquanto ainda trabalhava, depois da viuvez, procurava alguma distração no lazer dos fins-de semana ou das férias, que sempre se restringia a distrações convencionais e momentosas por essência, como cinema, TV, espetáculos esportivos, almoços ou jantares em bons restaurantes, eventualmente alguma curta viagem; porém, nada que envolvesse compromisso ou continuidade. E sozinho, tudo ficava muito sem graça. Mas não era mais tempo para encontrar uma nova companheira, e nem queria. Ele e Ângela não tiveram filhos, e o seu coração ainda era todo para ela, que estava sempre presente em seu pensamento.

        Agora, com a aposentadoria, teria que escolher alguma atividade a que pudesse dedicar-se de verdade, em que pudesse colocar um pouco de si mesmo, liberar suas ideias, seu espírito; enfim, buscar alguma ocupação que lhe proporcionasse algum prazer pessoal para preencher o vazio que Ângela deixara. Esta nova condição de aposentado se afigurava para Gustavo um pouco assustadora, pela solidão que já pressentia. Tinha que encontrar o que fazer, como preencher o seu tempo. Com esse propósito, meticulosamente foi avaliando algumas possibilidades para organizar a sua nova vida.

Pensou na prática regular de esportes, por exemplo, mas aos setenta anos já não teria o vigor necessário para isso; em verdade, logo percebeu que seria muito conveniente adotar atividades físicas moderadas, que ajudassem a preservar o seu bem-estar, e, certamente, a idade já o aconselhava a não exagerar. Assim, optou por uma caminhada diária, entremeada por alguns exercícios adequados a suas condições de saúde.

        Viajar, também, seria uma ótima alternativa, especialmente para o início da nova fase. Mas impunha limites, especialmente os financeiros, e não poderia ser realizada em caráter permanente.

Ainda faltava encontrar uma atividade que ocupasse regularmente o longo tempo disponível de que agora dispunha.

Depois de muito cogitar, Gustavo pensou na possibilidade de dedicar-se a escrever. Seria uma maneira de ocupar o seu tempo e uma forma direta de exercer a sua criatividade, expor o seu pensamento, as suas emoções, os seus sentimentos. Um campo vasto, inesgotável, a ser explorado. Encantou-se com a ideia. “Quem sabe, um dia ainda escrevo as minhas memórias, escrevo sobre a saudade que sinto da Ângela, ou até um belo poema para ela”.

        Gustavo nunca havia antes se dedicado a escrever contos, histórias ou memórias, não tinha essa prática. No trabalho que deixara, até escrevia; dominava razoavelmente bem a gramática em suas concordâncias, na coerência de sua sintaxe, na lógica de suas frases e tudo mais, mas eram textos frios, correspondência comercial.

Imaginando que seria fácil a adaptação para a ficção, de início tentou. Tinha boas ideias, mas sentiu a dificuldade quando procurava colocá-las num texto: em suma, demorava muito para conseguir organizá-las numa sequência lógica e no final ficavam sem graça. Analisando os seus escritos, logo percebeu que neles faltava a emoção, faltavam os sentimentos. Eram, praticamente, descrições frias e pouco interessantes, como as cartas comerciais que escrevia quando trabalhava. Não produzia nada parecido com as peças que lia de bons autores. Nem de longe, como se diz. Mas não poderia desistir, isso era muito importante para ele. Precisaria de ajuda.

Após algumas pesquisas, encontrou um grupo que se reunia semanalmente para aulas de orientação sobre escrita literária. “É disso mesmo que eu preciso. Ângela me apoiaria, com certeza”, pensou emocionado.

Fez a inscrição.

Assim, Gustavo passou a frequentar aulas de escrita literária, em busca de noções e dicas que lhe proporcionassem o conhecimento básico para tentar realizar-se como escritor.

Não imaginava, porém, como seria desafiador. Constatou, na prática, que, a cada aula, após algumas boas dicas e orientações, a Professora dava um tema ao aluno e, como exercício de aula, a tarefa de encontrar uma história sobre esse tema em algum lugar do seu cérebro para escrevê-la em cerca de meia hora e apresentá-la, em leitura, à Professora e aos colegas. Esse era o método, que se completava com os contos escritos em casa para a avaliação, crítica e correção pela Professora.

O problema todo, para Gustavo, eram esses exercícios rápidos, em que se expunha no momento da leitura. Aula após aula, a muito custo, Gustavo rabiscava algumas palavras, mas nada que parecesse uma história, por simples que fosse, pelo menos em sua própria e exigente concepção. Ouvia as histórias escritas por seus colegas, algumas muito boas, considerando a exiguidade do tempo em que eram concebidas. Via que os outros conseguiam, ele não. Estava acostumado a vitórias sempre, mas agora sentia-se derrotado. E isso não cabia em sua personalidade.

Essa situação foi deixando Gustavo cada vez mais tenso. Sempre fora um vencedor, agora sentia-se um fracassado. Mesmo com o incentivo da Professora, que tentava tranquilizá-lo dizendo que aos poucos ele conseguiria, que seria só uma questão de dedicação e treino, não adiantava. Intimamente, já estava se considerando um fiasco em sua aspiração a escritor.

E a tensão só foi crescendo, dificultando ainda mais o seu desempenho. Até que, após uma das aulas em que não conseguiu fazer o exercício, chegou ao seu limite: “Que vergonha, todos estão percebendo que eu não consigo. Ângela ficaria decepcionada comigo, se soubesse os vexames que tenho passado”. Em verdade, vexames que só estavam em sua cabeça, mas esse pensamento mexeu profundamente com ele, dormiu muito mal naquela noite.

Em pesadelo, viu-se no palco de um auditório, havia acabado de ler a história que escreveu no exercício de aula. Com insuportável constrangimento via que os seus colegas, alguns de amizades tão antigas, e até a Professora, riam muito, riam sem parar, zombavam dele, porque a sua história era ridícula. Na porta desse auditório surgiram, então, várias pessoas que também riam e faziam coro com aquela monstruosa zombaria. Eram os Deputados... os Deputados!? Sim, os Deputados! Ele, a Professora, seus colegas e essas pessoas estavam todos no prédio da Assembleia Legislativa! Que vergonha!

De repente, fez-se um silêncio sepulcral. Todos se calaram apavorados quando apareceu aquele vulto etéreo, deslizando suavemente no ar. Era a sua Ângela, vestida toda de branco e chorando muito, um choro convulsivo, entrecortado por gemidos que pareciam vir do Além, porque ele, o seu amor eterno, estava sendo humilhado. Nesse momento Gustavo acordou assustado, agitado, com o coração batendo muito e forte, chorando pela vergonha que passara no sonho.

Aos poucos foi se acalmando, retomou vagamente a percepção de que estava em seu quarto, e viu que Ângela não estava lá, tivera um sonho ruim em que ela veio protegê-lo; mas “... será que ela não estava mesmo?...parecia tão real...” pensou, ainda em dúvida.

 Mais acordado, Gustavo levantou-se, foi ao banheiro, lavou o rosto; foi até a cozinha, bebeu um copo de água, acalmou-se de vez; então, já inteiramente consciente, reconheceu o estresse que as aulas provocavam nele, devido ao desafio do exercício. Não era do seu feitio, mas já havia alguns dias que estava pensando em desistir, não estava aguentando mais aquela tensão. Tentava não pensar nisso porque significaria o encerramento de seu sonho de escrever. Mas sofria. Sentia-se em divergência consigo mesmo perante a luta renhida travada entre o razoável, que eram as suas dificuldades como aluno iniciante, e as despóticas exigências de sua personalidade, que não tolerava insucessos. Precisava reagir.

Não era à toa que Gustavo conquistara o prestígio de vencedor. A sua tenacidade, a sua perseverança, a sua garra, sempre o mantiveram em combate até a vitória. Resolveu continuar, enfrentar aquele martírio.

As aulas se sucederam, os temores se sucederam, os exercícios se sucederam, e Gustavo, até em homenagem à memória de Ângela, continuou lá, na luta, mesmo com aquele sofrimento crescente devido a sua sensação de insegurança e incompetência. Em verdade, a batalha não terminara. Cada exercício feito era um grande tormento, mas também era um treino. Um dia esse esforço ainda lhe traria frutos.

Naquela tarde, uma nova aula. Desde algumas horas antes, a tensão já tomava conta de Gustavo. Era uma inquietação incômoda e persistente, um misto de temor, ansiedade e angústia, que ele buscava disfarçar, não poderia revelar. Sentia que não seria compreendido, achava que aquele sentimento era apenas seu, devido ao seu modo de ser.

A aula transcorreu normalmente, como sempre. E quando veio o exercício, inesperadamente veio também uma inspiração. Gustavo resolveu escrever sobre um aluno de escrita literária que tinha um temor crescente pelos exercícios de aula, porque não conseguia fazê-los e ficava, a cada insucesso, com mais vergonha da Professora e dos colegas. Contou tudo, até o pesadelo. Era ele mesmo, era a sua história. Como a conhecia bem e sabia toda a sua sequência, desta vez não foi tão difícil escrevê-la, o que fez rapidamente, no prazo estipulado.

Depois de ler o seu trabalho para a Professora e seus colegas, descobriu, pelos comentários solidários que ouviu, que ele não era o único a temer os exercícios de aula; eles também os temiam e sentiam-se inseguros, a sua história criou uma oportunidade para a revelação.  E a boa receptividade que os seus companheiros tiveram ao escutá-la, foi, para ele, o incentivo definitivo.

No sorriso divertido e carinhoso da Professora, finalmente o atestado de uma vitória.

Gustavo, tal como um menino, sentiu-se aliviado, entusiasmou-se com esse primeiro sucesso, renovou a sua autoconfiança e não teve mais dúvidas em continuar. “Ainda serei, sim, um escritor. Lá no Céu, Ângela, certamente, ficará orgulhosa de mim, como sempre”, pensou, feliz e sonhador.

Ninguém entendeu quando o ouviram dizer, sorrindo, desligado de tudo e absorto em seus pensamentos, sem nem perceber que estava falando sozinho:

Imagine, então, quando eu fizer um poema para ela!

 



Assalto ao Metrô - Adelaide Dittmers

 


Assalto ao Metrô

Adelaide Dittmers

 

As pessoas com ar cansado lotavam a plataforma da estação do metrô.  Depois de um exaustivo dia de trabalho não viam a hora de chegar em casa.    

Na boca do túnel subterrâneo, a luzinha do trem apareceu e todos aglomeraram-se em diversos pontos para conseguirem entrar e talvez arrumar um lugar para sentar.

Quando o metrô parou e as portas automáticas abriram-se  foi aquele avanço.  A gentileza e a educação jogada no lixo.  Os vagões ficaram cheios.  O trem saiu da estação na disparada costumeira e entrou pelo escuro túnel.  Alguns passageiros de pé, deitavam a cabeça sobre os ombros, outros empunhavam com uma das mãos os celulares.  O balanço do trem desequilibrava alguns mais desprevenidos.

De repente, um homem gritou:

— Isto é um assalto.  Joguem os celulares e carteiras no chão e nem pensem em se mexer.  Qualquer movimento, atiramos.

Muito assustados, deixaram cair os celulares e as carteiras no chão.  Ao procurar de onde vinha a voz, depararam-se com cinco homens com armas apontadas para eles.  Um estava em uma extremidade do vagão, dois no meio deles e outros dois na outra extremidade.

O medo tomou conta de todos. Ficaram tão imóveis, que nem pareciam respirar.  As faces empalideceram e os  olhos cheios de terror.   Uma mulher, com uma criança no colo, apertou-a contra o peito.

O homem gritou novamente:

— Quando o trem parar na próxima estação.  Fiquem bem quietos.  Ninguém sai.

Dois dos assaltantes começaram a recolher os objetos do chão e colocá-los em grandes sacolas de plástico. 

A composição chegou à estação e como o vagão estava lotado, só um homem forçou a entrada e logo foi rendido. Seguindo caminho, o trem pegou sua velocidade normal.

Rapidamente, os assaltantes colocaram o resto dos objetos roubados nas sacolas.

Os passageiros pareciam congelados pelo pavor. Apenas olhavam uns para os outros, como se procurassem, em silêncio, apoio mútuo.

Na estação seguinte, os ladrões desceram e caminharam calmamente para não despertar suspeitas.

Um homem então gritou:

— Não entreguei meu celular.  Disfarcei e coloquei ele dentro da calça, caso eles revistassem meus bolsos.  Estou ligando para a polícia, informando a estação em que desceram.  Esses bandidos vão pagar!

As pessoas começaram a falar todas ao mesmo tempo.  A revolta explodiu pelo vagão. Uma mulher chorava: o salário de doméstica estava na carteira.  A criança percebeu a tensão e também começou a chorar alto. A confusão se espalhou por todo o lado.  O homem do celular então gritou:

— Calma pessoal! Vamos descer na próxima estação, vamos ficar juntos.  Vou avisar a polícia onde estamos!

Enquanto isso, os assaltantes subiam pelas escadas rolantes da grande estação, que tinha três andares.  A satisfação pelo sucesso do roubo brilhava em seus olhares.  Estavam tranqüilos.  Ao chegar ao andar, que os conduziria à saída, tiveram que percorrer um corredor comprido, com várias lojinhas ao redor.  Um deles parou para comprar cigarros.  Devagar seguiram seu caminho, conversando com naturalidade.

No entanto, quando chegaram próximos a escadaria que dava para fora foram surpreendidos por um grande número de policiais, que olhavam atentamente para a multidão que se encaminhava para a saída.  Um deles viu as grandes sacolas e chamou a atenção dos outros.

 Os ladrões perceberam o movimento e sentindo o perigo correram na direção oposta. Os policiais correram atrás deles. Uma grande e perigosa caçada começou.  As pessoas, ao ver isso, encolhiam-se pelo corredor. 

Um dos assaltantes olhou para trás e atirou.  Os policiais reagiram e um perigoso tiroteio ecoou pelo lugar.  As pessoas refugiaram-se nas pequenas lojas e os policiais gritaram para elas:

— Abaixem, um policial gritou,

Aturdidas e confusas, encolhiam-se, não acreditando no que estava acontecendo.

Um dos bandidos foi atingido e caiu morto.  Um policial foi ferido.

A polícia desceu pelas escadas, numa corrida desabalada e conseguiu cercar os quatro homens.  Um dos policiais saltou por cima da mureta e caiu de pé na escada rolante, alcançando-os por trás.   Encostou o revólver nas costas de um dos ladrões.

— Levantem as mãos e larguem as armas!  Ordenou.

Os homens muito nervosos obedeceram.

Ao pé da escada, os outros policiais estavam esperando. 

— Mãos na cabeça.  Gritaram e os agarraram.

Muita gente curiosa parou para ver a rendição dos bandidos.  Os guardas, porém, os dispersavam, mandando seguirem seus caminhos.

Os criminosos, então, foram levados para a delegacia.  Lá foram revistados, interrogados e depois de várias verificações, o delegado chocado descobriu que dois deles faziam parte da corporação.

Honesto e sério, sempre ficava furioso ao se deparar com esse lado podre da polícia.  Não se conformava de que homens que tinham o dever de proteger os cidadãos, passassem para o lado do crime.

Cansado pela longa jornada, levantou-se, vestiu o casaco e foi para casa.  Mais um dia tempestuoso vencido, pensou.  Como seria o dia seguinte.  A grande cidade era imprevisível e desafiadora.

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

A MELHOR HISTÓRIA EM 30 DIAS - PRAZO 10 DE NOVEMBRO DE 21




A MELHOR HISTÓRIA EM 30 DIAS 

Convocação geral para os alunos desta oficina


 Desafio: criar um romance curtinho, uma escrita mais longa que o tradicional conto, com mais vertentes, com mais conflitos.

Você tem apenas 30 dias.

O prazo: 10 de Novembro de 21.

Prepare seu texto, estruture sua história

Investigue, pesquise, namore sua história, e só envie no dia 10.


OBS.:

O tema, não há nenhuma exigência.

O tamanho do texto, não há nenhuma exigência


Todas as histórias que chegarem no e-mail e-mail abaixo na data do dia 10 de novembro, serão considerados válidos para o "concurso" de MELHOR HISTÓRIA EM 30 DIAS. Todas serão lidas, analisadas e comentadas:

E-mail para envio: contosdoical@gmail.com


A melhor história será premiada.


CAPRICHE PARA QUE SEJA A SUA.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

CAMINHONEIRO - Helio Salema

 



CAMINHONEIRO

Helio Salema

 

A viagem começou às 6:00 horas. O sol clareava toda a estrada, dando a certeza de uma viagem tranquila. Conheço cada palmo do asfalto, posto de combustível, restaurante e tudo o mais que existe por aqui. Qualquer pequena mudança percebo imediatamente.

Quando de longe vi veículos parados, fiquei surpreso. O posto policial ficava muito distante.

Parei e pouco depois vi motoristas andando no acostamento. Tudo muito estranho. Faço este trajeto há mais de 10 anos, toda semana.

Desci e logo observei um restaurante a poucos metros. Muita gente indo naquela direção. Mesmo sabendo que o meu preferido ficava a mais de 100 km, resolvi conhecer.

Muito chique, e moderno demais para um caminhoneiro. Não quis nem ver os preços, certamente salgados. 

Mesmo sem jeito, fui em direção ao banheiro. Preocupado em não dar mancada, olhava atentamente, para cada detalhe. Chão muito limpo e um cheiro agradável que eu ainda não tinha sentido em nenhum lugar.

Ao passar por uma porta, meio aberta, vi uma mulher, de costas, que usava uma velha máquina de escrever. Fiquei intrigado, sem nenhum motivo. Há muito tempo que não me apegava por um rabo de saia. Talvez estivesse trabalhando demais.

Quando saí do banheiro, procurei passar propositalmente de novo pelo mesmo lugar, olhei, mas não a vi. Continuei andando para ver se a encontrava. Fui para fora do restaurante e nada. Então resolvi contornar o prédio na esperança de encontrar uma janela aberta, assim poderia ver o rosto dela.

Havia sim várias janelas. Olhando uma a uma, sem sucesso,  e a esperança diminuindo. A última era uma janela envidraçada, justamente a da sala onde ela se encontrava. Passei bem devagar, quase parando. Achei que ela percebeu. Parei logo depois, por um instante. Respirei bem fundo. Tomei coragem e pedi a São Cristóvão que me ajudasse.

Quando voltei, na vidraça da janela, havia um rosto lindo e uma das mãos aberta. Passei olhando, mas ela não fez nenhum movimento.

Lembrei que eu tinha no caminhão um chaveiro de um carro que me roubaram. Corri até lá. Peguei e voltei até a porta do escritório. Pedi licença. Ela me olhou com surpresa. Com dificuldades disse:

— Encontrei estas chaves no pátio. O dono poderá vir aqui procurar. Posso deixar com a senhora?

— Sim. Eu guardo.

Pegou o chaveiro e ficamos conversando. Linda, simpática, educada. Era tudo que eu nunca tinha visto antes. Parecia um sonho. Como todo sonho bom acaba de repente.

— Liberado….liberado…trânsito liberado

Alguém berrou.

Ela me olhou com tristeza. Então falei:

— Com muita tristeza, vou ter que ir.

— Vai com Deus.

— Amém. Que Deus me traga de volta.

Ela sorriu.

— Na volta, semana que vem, passo para saber se alguém apareceu para pegar as chaves.

Sorriu, novamente.

Quando me virei para sair, vi na parede um quadro muito bonito. Parecia um lugar à beira da estrada, por onde costumo passar e admirar. Porém mostrava uma noite com um clarão de lua que iluminava o céu.

Ao dar partida no caminhão, me veio a lembrança do quadro. Hoje vou passar por lá à noite.

Tristeza e uma pancada de raiva por não ter perguntado o nome dela. Como fui bobo. Um verdadeiro bocó.

Durante todo percurso lembrava-me dela, sua pele morena, olhos negros e misteriosos, que ao olhar para mim, dizia o que eu não entendia. O sorriso completava sua beleza natural.

Na semana seguinte a viagem de volta parecia mais demorada. Não havia congestionamento, mas toda hora, um “meia-roda”, na minha frente atrapalhando. Eu queria chegar cedo. No meio do caminho parei para almoçar. Aproveitei para tomar banho. Fiz questão de colocar uma camisa nova na cabine, para botar quando fosse falar com ela.

 

Quando cheguei, no final da tarde, temia que ela já tivesse ido embora. Troquei de camisa, olhei-me no espelho. Parecia que estava tudo nos conformes.

Ao entrar no restaurante fui direto à sala dela. Fechada. Trancada.  Dei umas voltas na esperança de encontrá-la. Fui até a janela envidraçada. Sala vazia. Já temendo pelo pior, voltei para ficar à espera na porta da sala. Continuava trancada.

Uma senhora de uniforme, parecia funcionária, vinha na minha direção. Perguntei:

— A senhora viu a morena que trabalha nesta sala ?

— Ela não veio esta semana. E só com ela ?

— Semana passada estive aqui e deixei um chaveiro com ela.

A funcionária me interrompeu:

— Está comigo. Um momento, que vou pegar.

Saiu apressada. Durante um minuto fiquei pensando em tantas coisas. Que diabos!

A funcionária volta com o chaveiro na mão. Peguei e olhando as chaves com vontade de jogar longe, ao inferno. A funcionária estica a outra mão e me entrega um envelope. Certamente, era um bilhete. Com medo de ler e demonstrar toda minha raiva, talvez até chorar, agradeci e fui para o caminhão.

“Meu amigo, espero que tenha feito boa viagem. Meu pai faleceu no dia seguinte. Minha mãe muito doente precisa de mim. Não pude continuar trabalhando. Se quiser falar comigo….a mulher da limpeza sabe informar onde moro. Que Deus te proteja.”

Desci correndo. Antes de entrar no restaurante vi a funcionária saindo. Olhou para mim. Pedi desculpa por não ter agradecido antes. Ela sorriu, como se estivesse diante de um adolescente que se arrependera de algo.

Explicou com detalhes como eu poderia chegar até a casa. Mais uma vez pedi desculpas e agradeci.

Saí agora mais apressado, entrei no caminhão. Rezei e pedi desculpas a Deus por ter blasfemado e pensado coisas ruins.

Fui seguindo as indicações. Entrei na pequena cidade. Encantado com as construções antigas e bem conservadas. Poucas pessoas andavam, calmamente. Aquele ar de tranquilidade.

 Facilmente, vi a casa branca com janela verde. Parei bem em frente. O barulho do caminhão parece que entrou dentro da casa. A cortina balançou como se alguém fosse abrir a janela.

Para minha surpresa foi a porta que se abriu. Não tive dúvidas, a minha Deusa desejada, linda e sorridente saiu e veio até o portão.

Desci e fui até ao encontro dela. Pelo olhar dava para notar a felicidade que a minha presença causava. Com um forte abraço me levou para dentro da casa. Uma senhora ainda não idosa, numa cadeira de rodas, me olhou com alegria. Sentei e conversamos por algumas horas. Tomamos água e café.

Quando falei que ia embora, ela pegou minha mão e me levou até a cozinha. Pediu para que eu ficasse para jantar. A empregada tinha preparado tudo antes de sair. Falou para eu sentar. Foi colocando as travessas na mesa e disse que a mãe só tomava um caldo.

 Enquanto jantávamos conversamos sobre nossas vidas. Contou que ela e o pai trabalhavam no restaurante, que era de um tio. Ela e o pai reversavam no trabalho, para que sempre um estivesse em casa junto com a mãe e a empregada. Porém na manha seguinte, àquela que nos conhecemos, o pai não acordou. Foi um momento terrível. Então resolveu ficar em casa, para estar mais tempo com a mãe.

Disse que era filha adotiva e que eles sempre a trataram muito bem. O pai era um homem muito bom, embora bastante rigoroso. Não deixava que ela saísse sozinha e muitas vezes recomendava que evitasse certas amigas.

 

 

 

Assim que me levantei da cadeira e comentei que tinha que ir, porque no dia seguinte, bem cedo, teria que entregar a carga, ela mais rápida que eu, se levantou, me abraçou, e, com uma voz suave e bem baixinho, pediu para ficar. Que me acordaria bem cedo com café pronto.

Não resisti. Está ideia já havia passado pela minha cabeça. Um desejo muito forte. Faltou coragem em mim, sobrou nela. Em toda minha vida jamais vi alguém com tanta força na decisão.

Não vi quando ela se levantou. Acordei com beijos e um cheiro de café quente. Levantei-me, tomei banho e fui para a cozinha. Durante o café contei para ela que assim que chegasse ao meu destino, iria procurar minhas duas filhas, que eram casadas. E comunicaria que depois de mais de 10 anos viúvo, encontrei uma companheira. Que se Deus, que a colocou no meu caminho, permitir, será até o fim da minha vida. Com abraços e beijos, nos despedimos.

Entrei no caminhão. Ao passar pela estação, vi um relógio antigo, pendurado na parede marcando 10:10. Ainda bem que estava parado.  Fui pensando em chegar ao meu destino em tempo e voltar a tempo para o paraíso que jamais pensei que existia. Então refleti.

Como um congestionamento pode mudar, tanto, em tão pouco tempo, a vida das pessoas.

 

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

CAMPO DOS CURROS - Alberto Landi

 



CAMPO DOS CURROS

Alberto Landi

 

Campo dos Curros, atual Praça da República, era uma praça de corridas de touros e cavalos, onde os paulistanos se divertiam com os rodeios e touradas no século XIX.

Aos domingos nessa grande praça, as pessoas lotavam a arena.  Era um povo alegre, querendo se divertir assistindo as touradas vendo sangue!

Havia o famoso “Bailarino” que era um ativo ajudante na estação do Brás. Mercadorias, vindas do porto de Santos, eram descarregados pelos trens nessa estação.  As carroças eram o único meio de transporte nessa época, levavam esses produtos para restaurantes e lojas espalhados na província de SP.

Ele era muito divertido e talentoso, fazia acrobacias e alguns passos de ballet, daí o seu apelido.

As pessoas que frequentavam a arena, gostavam de ver suas maluquices e se esborrachavam de tanto rir.

Havia o touro Twist, as pessoas gostavam muito de vê-lo perseguindo com seus chifres impiedosos e afiados ferir os toureiros.

Ele era considerado herói pelos frequentadores.  Ele cada vez foi ficando mais bravo, os olhos de raiva, de um vermelho escuro que parecia mais uma brasa, raspando os cascos no chão e trotando em busca do toureiro.

Todos gritavam:

Twist,  pega ele!

O bailarino por sua vez queria desviar a sua atenção para ele, fazendo piruetas.

Os frequentadores falavam e discutiam a politica do governo da província de São Paulo, além de assistirem a barbárie das touradas.

Bailarino era também um visionário, o povo se reunia em torno dele, só para ouvir suas profecias. Enfatizava que num futuro não muito longínquo o homem iria pisar na lua. Ressaltava também a existência de objetos voadores e seres extraterrestres que visitavam a província.

As discussões eram as mais variadas possíveis, alguns diziam que isso seria impossível, porque a lua se tratava de uma bola de luz, que a Terra era plana, outros apoiavam a ideia de homens na lua.

Como o Bailarino poderia vislumbrar naquele tempo tão distante do atual, que muitos anos  após isso se concretizaria e se tornariam realidades suas palavras?

Ele era com certeza um visionário.

Nunca devemos duvidar desses “devaneios” porque nesse universo onde um magnânimo Senhor foi o criador, nada é impossível.

 

DIREÇÃO ERRADA - Hirtis Lazarin




DIREÇÃO ERRADA

Hirtis Lazarin

 

A noite estava escura. Nem a lua nem as estrelas para clarear a estrada estreita e esburacada.  Apenas uma brisa irrequieta ciscando a relva esbranquiçada e miúda que se estendia a perder de vista. Árvores, muito poucas.

Depois de quilômetros e quilômetros rodados num carro velho e perdido no rumo, aparece uma placa indicando um restaurante de estrada.

Estaciono e observo detalhadamente tudo à minha volta. Nenhuma luz acesa, nenhuma voz. Parecia abandonado.

Senti medo, mas desci. Minhas pernas inchadas e cansadas doíam. Muito tempo na mesma posição tensa de gente que está perdida e não sabe onde vai parar. A garganta seca exigia água. Impossível não encontrar uma única torneira.

A recepção estava vazia. Sobre uma escrivaninha de verniz rabiscado, uma máquina Olivetti e numa folha de papel branco e intacto encaixada nela, uma palavra que não foi concluída.

Da janela envidraçada, coberta de gordura e pó, era impossível ver o que acontecia do outro lado. Uma porta que já foi pintada de branco está com a maçaneta quebrada.

Empurro-a cuidadosamente para não chamar a atenção, mas de velhice ela reclama. Nem vozes, nem barulho do outro lado, apenas a minha respiração ofegante. Um cheiro azedo de comida estragada.

Meus olhos, aos poucos, vão se acostumando com o escuro: uma cadeira caída, cacos do que já foi louça, roupas esparramadas e muitas moscas rodeando alimentos apodrecidos. O maior susto foi quando vi sobre a cama uma moça seminua, amordaçada, presa à cama, pés e mãos amarrados. Os olhos arregalados suplicam, pois acredita ela que chegou o seu fim.

Aproximo-me de um jeito cordial e transmito-lhe confiança. “Não se assuste. Vou ajudá-la. Sou alguém alheio a tudo que está acontecendo”.

Com dificuldade, liberto-a das amarras. Seus pulsos e tornozelos estão feridos, sangram.  Peço que não fale nada. “Temos que abandonar esse lugar o mais rápido possível, antes que apareça alguém”.

Ela está confusa e fraca. Não consegue dar um passo à frente. Carrego-a no colo e chegamos ao carro sem sermos incomodados. Reviro os bolsos da calça, do casaco e não encontro as chaves. Deito-a na grama quase desfalecida.

A noite está agora mais escura. Nuvens acinzentadas prometem chuva a qualquer momento.  ”Ótimo para assentar a poeira que levanta do chão seco e ataca minha rinite crônica”.

Olho o relógio e são vinte e duas horas e dez minutos. Já se passaram mais de duas horas desde que cheguei ali.

“Preciso voltar àquela casa e procurar as chaves. Corremos o risco de sermos surpreendidos a todo minuto perdido”.

Dou alguns passos rápidos e paro.

Ouço o trotar de cavalos que chegam cada vez mais perto...


Viagem a Paris - Adelaide Dittmers

 



Viagem a Paris

Adelaide Dittmers

 

Muito comunicativo e espirituoso, Xavier conquistava todos por seu bom humor, mas tinha um lado peculiar; era um gozador nato e adorava pregar peças nas pessoas à sua volta.

Certa noite, ao chegar em casa, depois de um dia de trabalho, escancarou um sorriso para a mulher e disse:

— Tenho uma surpresa especial para você.  E estendeu dois pequenos papéis.

— O que é isto? Perguntou ela com um ar desconfiado.

— Veja você mesma!

— Não acredito!  Duas passagens para Paris.

Helena abraçou o marido.  Sempre sonhara em conhecer a cidade luz, mas tinha muito medo de viajar de avião.  Apesar da situação financeira deles permitir, só viajavam de carro.  Conhecia quase todo o país e já tinha ido à Argentina e Uruguai.

De repente afastou-o e perguntou:

— Isso não é mais uma das suas brincadeiras? Não é?

— Não.  O único problema é seu medo de voar.

— Tenho que enfrentar isso.  Por Paris, vou enfrentá-lo.  Além do mais, minhas amigas, que não gostam de voar, costumam tomar comprimidos para acalmar e dormir.

— Então tudo bem, porque me lembro daquela viagem, que fizemos ao Rio pela ponte aérea, em que você apertou minha mão a viagem toda.  Para Paris são onze horas de voo e não quarenta e cinco minutos.

— Estou tão feliz, que prometo que vou me comportar bem.

Uma semana depois, estavam os dois no aeroporto para iniciar a viagem dos sonhos de Helena.  Ansiosa, procurava esconder o nervosismo ao entrar no avião.  Logo ao se sentar no lugar, que lhes foi reservado, engoliu o comprimido para diminuir o temor.

A grande aeronave decolou suavemente e ganhou altura em um céu sem nuvens.  Era uma bonita noite de outono.  Poucas horas depois, o jantar foi servido e Helena distraiu-se em ver o que iria comer.  Após terem jantado, Xavier lhe disse:

— Vou tirar um cochilo.  Quando a aeromoça recolher as bandejas, peça a conta, por favor, e fechando os olhos, virou a cabeça para o lado com um sorriso zombeteiro.

Depois de alguns minutos, a comissária veio retirar as bandejas e Helena educadamente lhe pediu:

— Pode me dar a conta, por favor.

— Como senhora?

— A conta do jantar.

A moça arregalou os olhos e disfarçando o constrangimento respondeu:

— Não há conta a pagar.  O jantar está incluso na passagem.

Sem graça, Helena pediu-lhe desculpas e, quando a jovem se afastou, deu um safanão em Xavier.

— Como você me fez uma coisa dessas?  Não gostei nem um pouco dessa brincadeira.

E ele rindo, exclamou:

— É muito divertido, que até hoje você caia em minhas armadilhas.

Helena recordou-se, então, do dia em que ele a deixou em um restaurante e saiu para a rua só para vê-la toda atrapalhada sem saber como iria pagar a conta, e de tantas outras em que sempre procurou aceitar com bom humor. No entanto, ultimamente, começou a cansar-se do humor negro do marido. Zangada, ligou a tela à frente para não discutir com ele.

Mais tarde, as luzes do avião foram apagadas e os passageiros ajeitaram-se como podiam para dormir.  Helena logo adormeceu embalada pelo comprimido. 

O grande pássaro começou a sobrevoar o vasto oceano, negro e misterioso, àquela hora da noite.

De repente, Helena foi sacudida por Xavier.  Tonta de sono, olhou a expressão de medo do marido.

— Acorda e coloca o cinto!  O avião entrou em pane.  Estamos em uma emergência.

Realmente, uma forte turbulência sacudia o avião.  A mulher entrou em pânico.  O terror tomou a forma de uma grande garra, que apertava sua garganta e descontrolada começou a gritar.

— Socorro!  Não quero morrer!

Os passageiros acordaram assustados e uma grande confusão espalhou-se pelo avião.  Logo um comissário veio até ela e perguntou:

— O que está acontecendo, senhora?

— O avião está caindo!  E ainda você me pergunta isso?

— Calma, senhora.  Foi só uma turbulência.  Está tudo bem com o avião.  Fique tranqüila.

Ainda muito assustada e envergonhada, olhou para Xavier e pela expressão dele, percebeu que fora novamente uma de suas brincadeiras e dessa vez de muito mau gosto.

— Você me paga! E seus olhos faiscaram de ódio.

Ignorou-o o resto da viagem e não conseguiu mais pregar os olhos.

Chegaram cedo à bela cidade.  Atordoados pelas horas de vôo passaram pela imigração e começaram a percorrer os intermináveis corredores do grande aeroporto.

Helena, ao ver banheiros, disse ao marido.

— Vou entrar e aproveitar para lavar o rosto e refazer a maquiagem.

— Também vou aproveitar para ir ao banheiro.

Helena entrou, mas saiu logo em seguida e apressou-se a andar pelo longo corredor.  Trazia apenas a mala de mão.  Sentia-se segura diante do desafio de percorrer a grande distância até a saída.  Dominava bem o francês e a qualquer imprevisto, conseguiria se comunicar com alguém. Foi seguindo as indicações e chegou ao saguão do aeroporto, onde parou por um momento e pesquisou hotéis pelo celular.  Ligou para um que lhe agradou e conseguiu uma reserva em um que adorou.  Considerado um dos mais luxuosos de Paris, ficava em um dos pontos mais emblemáticos da cidade.  Chamou um táxi e pediu ao motorista;

— Hotel Du Louvre, s’il vous plait!

Durante o percurso, reservou um almoço no L’Oiseau Blanc, considerado um dos melhores restaurantes parisienses e onde se podia desfrutar uma vista deslumbrante da cidade.

No aeroporto, Xavier saiu do banheiro e postou-se à porta para esperar pela mulher.  Os minutos foram passando e nada de Helena.  Começou a ficar preocupado.  Consultou o relógio e constatou que a estava esperando já há quase trinta minutos.  Pediu, então, a uma senhora da limpeza, que verificasse por que ela estava demorando tanto.  Ela entrou e voltou dizendo que não havia nenhuma Helena no banheiro.

Xavier controlou-se para não se desesperar.  Percorreu quase correndo os longos corredores e chegou ao lugar de resgatar as malas, que pareciam que nunca iam aparecer nas esteiras.  Tenso, apanhou-as e foi para a entrada do aeroporto.  O que poderia fazer agora?  Tinha tentado ligar várias vezes para a mulher sem sucesso.

Enfim o celular tocou.  Era ela.

— Helena, o que aconteceu? Onde você está?

— Não aconteceu nada, querido?  Estou no Hotel Du Louvre.  É um hotel maravilhoso, daqueles que se vê em filmes.

— O que!  Mas não foi esse o hotel que reservei.

— Ah! Mas este é o que sempre sonhei em me hospedar.  Luxuoso e fica em um lugar privilegiado.

— Você enlouqueceu.  Sabe quanto custa uma estada em Paris. Uma fortuna! E um hotel luxuoso é impagável.

— Não adianta reclamar.  Vem pra cá.  Você vai adorar. Respondeu irônica.

Nervoso e furioso, Xavier chamou um táxi.  Ao chegar, quase perdeu o fôlego ao se deparar com o imponente hotel. Na recepção informou-se onde sua mulher estava.  Acompanhado por um funcionário, que lhe levava as malas chegou ao quarto.  Helena abriu a porta, sorridente, com uma taça de champanhe na mão.

— O que está acontecendo com você? Ficou louca? Ele disparou.

— Nunca estive tão lúcida! Respondeu, fechando a porta atrás dele.

— E tem mais! Reservei um almoço no L’Oiseau Blanc. É um dos restaurantes mais tops desta cidade linda.

— Não acredito! Não sou o Bill Gates!  O que te deu?

— Você conhece o ditado: Um dia é da caça, o outro é do caçador.

— É uma vingança por que brinquei com você! Disse, cuspindo as palavras.

Não, não é! Uma vingança é para o mal de alguém. Estar num hotel magnífico e desfrutar das iguarias francesas em um restaurante estrelado é tudo de bom.

Xavier estava pálido.  Sentiu o estômago contorcer-se dentro dele e com uma repentina ânsia correu para o banheiro.

Helena aproximou-se da janela e admirou a romântica cidade, que lânguida se abandonava ao céu ensolarado da primavera.  Levantou a taça com um sorriso vitorioso.

— Santé Paris! Exclamou.

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

    O cãozinho aventureiro Alberto Landi                                       Era uma vez um cãozinho da raça Shih Tzu, quando ele chegou p...