A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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quarta-feira, 26 de abril de 2023

A loucura faz parte da humanidade - Adelaide Dittmers

 


A loucura faz parte da humanidade.

Adelaide Dittmers

 

 Muitas vezes me pergunto: O que é a loucura?

Quando observo que milhares de homens morrem em uma guerra movida por um governante, que se julga poderoso e onipotente, sem o direito de se recusarem a ir para um campo de batalha, vejo nisso a maior insanidade deste mundo em que vivemos.

A loucura também habita na cabeça da pessoa, que se julga dono da vida de outra, dominando-o e impedindo que ela seja livre para viver da maneira que quiser, de ter o direito de fazer suas escolhas e de dar opiniões próprias.

Não é só o esquizofrênico, o bipolar ou o paranóico que é ensandecido, porque muitas vezes, esses têm muito mais sanidade do que os que se acham totalmente normais, presos a pensamentos imutáveis e avessos a qualquer mudança de ver a vida de outra forma.  São herméticos e arrogantes. O fanatismo se enquadra nesse grupo.

Aquele que se julga o conhecedor de tudo, nada sabe.  Somos seres em constante aprendizagem.  Somos incompletos e suscetíveis a muitos erros. O desejo de ser perfeito é algo inatingível e pode conduzir à loucura.

Somos dominados pela insanidade, quando queremos mudar o que não pode ser mudado e nos obstinamos em conseguir isso. Quando damos mais importância ao dinheiro do que a desfrutar a nossa curta vida. A avareza pode nos tirar da realidade.

As paixões desenfreadas tiram as pessoas do prumo, levando-as a cometer atos desvairados e sem sentido.  Há, porém, as loucuras benéficas, que fazem o homem criar obras magníficas e surpreendentes, tanto na arquitetura, escultura, pintura ou mesmo na escrita.

Enfim, a loucura faz parte da humanidade.  Cada um de nós a carrega em algum cantinho de nosso ser e temos que ter o cuidado e a sabedoria de não cutucá-la, quando nociva, ou estimulá-la, quando queremos atingir um objetivo que enriqueça e transforme de maneira positiva o mundo em que vivemos.


quarta-feira, 19 de abril de 2023

PROJETO MEU CONTISTA BRASILEIRO

 

PROJETO MEU CONTISTA BRASILEIRO

Cada aluno estuda sobre um escritor brasileiro e escolhe um de seus contos para comentar, analisar e atrair, com isso, a curiosidade dos colegas. 

A maioria já fez sua escolha, e a data já está decidida. (ver abaixo).

Os que ainda farão escolha, vejam as opções no final da próxima imagem abaixo.



MEU CONTISTA BRASILEIRO / 2023

19/04

HELIO

MACHADO DE ASSIS

O ALIENISTA

03/05

ADELAIDE

LYGIA F. TELLES

AS FORMIGAS

10/05

LEON

ARTHUR DE AZEVEDO

A CONSELHO DO MARIDO

24/05

LANDI

CLARICE LISPECTOR

LAÇOS DE FAMÍLIA

31/05

VANESSA

CARLOS DRUMMOND

PRESÉPIO

07/06

CLAUDIONOR

LIMA BARRETO

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS

14/06

IARA

ADÉLIA PRADO

SEM ENFEITE NENHUM

21/06

HENRIQUE

GRACILIANO RAMOS

UM CINTURÃO

28/06

HIRTIS

CORA CORALINA

O CASAMENTO E A CEGONHA

 

 

FERNANDO SABINO

O HOMEM NU

 

 

 

 

 


Leia aqui:
Mediador: Helio Salema —  19/04/2023

AS FORMIGAS - LYGYA FAGUNDES TELLES

Mediadora: Adelaide Dittmers — 03/05/2023



Mediador: Leon Vagliengo — 10/05/2023



Mediador: Alberto Landi — 17/05/2023



Mediadora: Vanessa Proteu






Mediador — Claudionor — 24/05/2023



Mediadora: Iara — 14/06:2023


Mediador — Henrique —  21/06/2023

Mediador — Hirtis — 28/06/2023

O ALIENISTA - MACHADO DE ASSIS - MEDIADOR : HELIO SALEMA

 


Esta aula faz parte do projeto MEU CONTISTA BRASILEIRO, onde cada aluno se predispões a estudar um autor e um conto dele, para uma aula inteira sobre o tema

O mediador de hoje é o HELIO SALEMA.




Esta obra está em Domínio Público e pode ser lida na íntegra:


O ALIENISTA
MACHADO DE ASSIS


Machado de Assis é autor de “O Alienista”, sua primeira obra realista, considerada por alguns críticos um conto e para outros uma novela, a maioria o classifica como um conto mais longo, principalmente devido à narrativa. Obra que inaugura a fase realista do autor, apresenta características como a análise psicológica e a crítica social.

O conto é narrado em 3º pessoa, o chamado narrador onisciente. Machado de Assis consegue mostrar o comportamento humano no que diz respeito a aparência, vaidade e egoísmo.

Resumo do livro:

A obra “O Alienista”, narra a história do Dr. Simão Bacamarte (Alienista), um respeitado médico que tinha boa fama em Portugal, Espanha e no Brasil.  Ele é casado com a já viúva D. Evarista, quem ele julga ser uma boa mulher para gerar bons filhos, o que acaba não acontecendo.

Dr. Simão acaba se dedicando então aos estudos da mente e a psiquiatria. Ele se muda para a cidade de Itaguaí, Rio de Janeiro, onde pede autorização do Governo para abrir uma clínica feita para estudar a loucura e doenças da mente.

O local é batizado de Casa Verde, e todos os que Dr. Simão julga ser louco ele manda internar. No começo as internações eram feitas com pessoas que possuíam realmente casos de loucura, sendo aclamado pela população. Mas depois ele passa a internar pessoas consideradas sãs, como Costa, um rapaz que havia recebido uma herança com a qual daria para viver até o fim da vida, mas gastou tudo em empréstimos aos outros e acabou na miséria. Nem D. Evarista escapou, foi internada por não conseguir decidir que roupa vestir para uma festa.

Metade da população já estava internada e as pessoas começaram a se revoltar. O barbeiro Porfírio decide liderar uma revolta para soltar as pessoas que foram presas injustamente conhecido como a “revolta dos canjicas” (o apelido do barbeiro era Canjica). Esta manifestação de nada adianta e no final os manifestantes também acabaram presos internados.

Quando mais de 75% da população da cidade estava internada, Dr. Simão viu que  havia algo de errado com seu critério e decidiu o rever: se a maioria seguia um desvio de padrão, quem tinha regularidade em suas ações e firmeza de caráter eram os verdadeiros loucos. Então ele decidiu prender a minoria.

Por fim, ele não encontrou ninguém que possuísse ao menos um desvio de caráter a não ser ele mesmo. Dr. Simão então se internou e ficou sozinho na Casa Verde, falecendo dezessete meses depois.


terça-feira, 11 de abril de 2023

UM DIA DIFERENTE - Leon Vagliengo






UM DIA DIFERENTE

As aparências enganam, nem tudo é o que parece.

                                                                                                                               Leon Alfonsin Vagliengo

 

A porta da rua se abriu de repente e foi batida com grande estrondo. Luciana irrompeu a sala aos prantos, correu diretamente para a escada do sobrado, galgou-a em desespero, seus passos ressoando alto na madeira dos degraus, e bateu com violência a porta de seu quarto.  Os dois gatos da casa dispararam desesperadamente para a cozinha e pararam à porta espiando para a sala, apavorados, tentando identificar a repentina ameaça.

Clarissa não tinha ido trabalhar naquela manhã e aguardava na sala a hora de sair para uma consulta médica. Levou um grande susto com aquela invasão inesperada e, sem entender o que estava acontecendo com sua filha, ficou paralisada por um ou dois segundos, aturdida, mas logo reagiu e subiu também apressadamente, encontrando a porta trancada.

— Luciana! Abra a porta! O que houve?

Àquela hora, Luciana deveria estar ainda na primeira aula. Seu pai a levou para o Colégio e dali iria para o aeroporto, em viagem de negócios.

Luciana não respondeu, não abriu, não a atendeu. Clarissa podia ouvi-la chorando, um choro convulsivo, sem cessar. Insistiu muitas vezes, mas não conseguiu resposta. Enquanto tentava convencer a menina a abrir a porta, em sua cabeça as ideias mais trágicas se sucediam: Teriam sofrido um acidente no caminho? Onde está o Rodolfo? Por que não veio com ela? Ou será que foi abusada no Colégio? Meu Deus! Ela tem apenas treze anos! O que será que aconteceu? Justamente hoje que eu não pude ir com eles!

Ligou para o Colégio, disseram apenas que a menina não tinha entrado em aula.

O desespero já tomava conta de Clarissa. Havia mais de uma hora que estava naquela situação e a menina não respondia. Tentou ligar para o marido, duas, três, várias vezes, não conseguiu completar a ligação, ele devia estar no avião. Tentou abrir a porta com a chave de seu quarto, não serviu.

— Pelo amor de Deus, Luciana! Abra a porta!

Finalmente, Luciana a atendeu. Abriu a porta, olhou para a mãe com o olhar salgado pelas lágrimas, e a abraçou; um abraço apertado, sem parar de chorar e soluçar. Não dizia nada, apenas chorava.

Vendo o estado emocional da filha, Clarissa a aconchegou melhor no abraço e resignou-se a esperar. Ficaram assim por muito tempo, até que Luciana se acalmou um pouco, olhou para ela e falou:

— Eu te amo, mamãe. Vou ficar sempre com você. Nunca vou te deixar sozinha.

— Por que você está dizendo isso, Luciana?

Então, ainda relutante, entre soluços e entremeando longas pausas, ela começou a contar. Disse que logo ao entrar no Colégio sentiu frio e viu que tinha esquecido o casaco no banco do carro; voltou correndo para buscá-lo, deu tempo; seu pai ainda estava conversando com a mãe de sua coleguinha, aquela mulher loira, muito bonita, cujo marido havia morrido havia pouco tempo, num acidente; “aquela mesma que outro dia o papai elogiou e você ficou com ciúmes”, completou, hesitante. Interrompeu-se por um instante sem saber como prosseguir, e afinal, novamente chorando e segurando os soluços, contou de uma vez:

— Ele nem me viu abrir a porta do carro e estava dizendo para ela que hoje tinha se separado de você e não voltaria para casa. Eu não quis ouvir mais nada; peguei o casaco e corri para o Colégio, mas não aguentei e vim para casa.

Ao ouvir o que sua filha contara, Clarissa estremeceu. Terríveis recordações assomaram impiedosas à mente. Queria esquecê-las, mantê-las no limbo de sua memória, mas aquela situação as trouxe revividas com todo vigor, causando a mesma dor que sempre provocavam quando vinham à tona. O impacto foi muito forte, tão forte que Clarissa perdeu a consciência. Antes, ainda pronunciou o nome de seu marido;

— Rodolfo...

<<< O >>>

 

Anthony fazia jus a seu nome esnobe. Era um homem bonito, elegante, sua postura aristocrática sem afetação provocava suspiros românticos em muitas mulheres, aguçando-lhe a vaidade; ambicioso, deslumbrava-se facilmente com tudo que exalasse luxo e riquezas. Por conta disso, embora não fosse rico, era incansável em frequentar amigos da alta roda.

No ambiente do lar, porém, era diferente: brincalhão e irrequieto, marido perfeito e pai carinhoso, embora não resistisse aos muitos convites dos amigos para festas e jogos no clube. A esposa Dulce já não o acompanhava mais como antes, porque tinha mais juízo e compreendia como era importante estar sempre presente para a filha Clarissa naquela sua fase tão bonita e melindrosa de pré-adolescente.

Nessas oportunidades Anthony ficava desassossegado, não hesitava em inventar desculpas para sair, mesmo sem a esposa. Muitas vezes eram argumentos evidentemente falsos, mas Dulce não dizia nada, fingia não perceber e o perdoava; não queria um clima de hostilidades em sua própria casa, e até achava graça ao considerar que aquele cabeça-de-vento cumpria direitinho o seu papel de pai e marido; admitia, então, que era justo que ele saísse para se divertir, mas ela já havia optado por assumir as suas responsabilidades de mãe e dona de casa de classe média.

Sabia, porém, que não podia confiar na palavra de seu marido.

Naquele carnaval Anthony foi mais ousado, anunciando, muito empolgado, que fora convidado pelos amigos para o baile do clube.  Iria a caráter e, após examinar inúmeras alternativas, encantou-se com a fantasia de Capitão Gancho, que ficou perfeita para ele. Dulce conhecia muito bem o marido que tinha e sabia que não conseguiria impedi-lo; entre contrariada e divertida, ainda observou, sorrindo:

— Só falta o navio, está perfeito. É você mesmo, sem tirar nem pôr! Pode ir, divirta-se com seus amigos, mas... tenha juízo! — Acrescentou, sem acreditar nisso — eu fico com a Clarissa. Ela convidou umas coleguinhas, vão fazer um bailinho no quintal de casa. Não venha muito tarde.

No salão do clube, pessoas muito animadas dançavam ao som alto de marchinhas ritmadas, algumas maliciosas, casais em atitudes atrevidas, muitas mulheres bonitas em trajes provocantes, erotismo no ar.

Uma loira bonita e muito sensual chamou a atenção de Anthony. Ele logo a reconheceu: era Laura, já se conheciam socialmente de outros eventos do clube. Anthony sabia que o marido dela havia falecido quatro anos antes num acidente automobilístico, deixando-a muito rica e carente, ainda bastante jovem aos quarenta anos de idade. A atração foi imediata e muito forte: esqueceu os amigos, convidou-a para dançar.

Ao longo da noite dançaram, beberam, divertiram-se bastante. Em certo momento, no calor da folia, Laura confessou para Anthony que já era apaixonada por ele havia muito tempo, desde quando o via em outras atividades do clube. Ouvindo essa revelação daquela mulher tão provocante e inebriado pelo ambiente contagiante de tentações em que estavam, ele não resistiu aos seus encantos e às benesses da vida de fartura e riquezas que ela lhe oferecia.  Era tudo o que ele sempre quis, sua ambição falou alto.

Anthony não voltou para casa naquela noite. Quando apareceu, já na tarde do dia seguinte, foi para informar que resolvera mudar de vida. Pegou apenas os pertences pessoais e não teve escrúpulos em abandonar Dulce e Clarissa.

Inconformada com o fim de seu casamento, Dulce compreendeu tarde demais que ele agiu como agiria o personagem da fantasia que escolheu, pilhando o tesouro que encontrou. Aquela caracterização revelava mesmo quem ele era realmente.

Foi assim que uma viúva loira e rica desfez o lar de Dulce e levou embora o seu marido, que a deixou ao desamparo, causando para Clarissa consequências emocionais devidas a uma juventude triste, carente do amor paterno.

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         Luciana não sabia o que fazer, nunca tinha visto alguém desmaiado.

Em sua inexperiência pensou as piores hipóteses, mas viu que a mãe respirava. Pegou o telefone e ligou para a avó, pedindo socorro.

Dona Dulce já imaginava o que tinha acontecido. Sempre que se lembrava que fora abandonada pelo pai, Clarissa perdia os sentidos por alguns momentos. Um médico lhe dissera que se tratava de cataplexia, uma perda de sentidos motivada por alguma forte emoção. O casamento feliz que sua filha tinha com Rodolfo parecia ter resolvido esse problema, havia muitos anos que ela não desmaiava. O que teria desencadeado novamente aquela reação? Pensou, preocupada.

Morava perto, chegou rapidamente à casa da filha e, como esperava, Clarissa já havia recuperado a consciência.  Por um instante se enterneceu ao perceber os olhos da neta Luciana ainda vermelhos como os de um coelhinho, e achou que ela tinha chorado apenas por causa do susto.

Ao ver a mãe, Clarissa sentiu-se amparada; apoiou a cabeça em seu peito e chorou sem nada dizer, provocando novo choro também em Luciana. Dona Dulce lhe acariciou os cabelos e não estranhou a fragilidade da filha, achava que sabia o motivo. Só não atinava em como ressurgira. Quase acertou, mas o personagem era outro.

Logo providenciou duas almofadas e disse a Clarissa que se deitasse de costas com as pernas elevadas, apoiadas nas almofadas. Isso a ajudaria a recobrar a boa circulação cerebral, consolidando sua recuperação. Providenciou também um chá de camomila quentinho, para acalmá-la.

Um pouco depois Clarissa já se sentia melhor, mas ainda um pouco desorientada. Fez um sinal para Luciana com o dedo indicador sobre a boca, para que não contasse nada a sua avó. A manhã já estava no fim, tinha perdido a consulta no oculista e estava com muita dor de cabeça. Telefonou para avisar ao chefe que não estava bem, não iria ao trabalho nem à tarde.

Dona Dulce cuidou para que as coisas voltassem à rotina. Fez o almoço, cuidou de algumas coisas da casa. Clarissa tomou um analgésico e dormiu até a hora da janta. Luciana foi para seu quarto. Tentou estudar um pouco, teria uma prova no dia seguinte, mas não conseguia se concentrar.

O restante do dia transcorreu monótono para elas.

<<< O >>>

 

Eram mais de dez horas da noite quando ouviram bater a porta de um carro e em seguida aquela música italiana antiga, naquele assobio inconfundível.  Clarissa e Luciana o reconheceram de imediato e se entreolharam, surpresas. Revelava a presença de alguém sempre muito feliz e despreocupado, que conheciam muito bem. Mas não esperavam que ele aparecesse agora, muito menos assobiando.

Rodolfo abriu a porta e entrou na sala, abraçado a dois grandes pacotes. Foi direto para Clarissa com um sorriso que lhe tomava toda a face, e a beijou nos lábios antes que ela pudesse evitar. Entregou-lhe um dos pacotes e o outro para Luciana, que também beijou carinhosamente. Cumprimentou a sogra e lhe agradeceu por estar ali, fazendo companhia a elas.

— Deu tudo certo, o comprador gostou da proposta, negócio fechado! — Exclamou – e ainda consegui uma passagem de volta para hoje mesmo. Comprei essas lembrancinhas para vocês numa loja do aeroporto.

Incrédulas, Clarissa e Luciana olhavam para ele sem entender. Dona Dulce, que continuava candidamente sem saber de nada, ficou mais tranquila com a presença do genro.

— Agora que você chegou, vou para casa — despediu-se e saiu.

Clarissa fez discretamente o mesmo sinal de “psiu” para Luciana; e depois de pensar um pouco, resolveu comer pelas bordas para não queimar a língua.

— Você sentiu minha falta hoje de manhã?

— Claro, meu bem — mas você agora me fez lembrar que eu dei um fora terrível. Sabe a Dona Sonia, a mãe da coleguinha da Luciana? Ela perguntou por você e eu disse para ela – imagine só — que esta manhã nós tínhamos nos separado e eu não voltaria para casa. Ela fez uma cara de espanto que só vendo. Só então percebi o que eu tinha dito. Fiquei sem graça, pedi desculpas e esclareci que nos separamos porque você tinha uma consulta médica e eu estava indo para o aeroporto para uma viagem de negócios, só voltaria amanhã.

Clarissa olhou para Luciana, Luciana olhou para Clarissa, ambas de olhos arregalados. De repente a ficha caiu ao mesmo tempo para as duas e a gargalhada delas explodiu uníssona, espalhafatosa, estrondosa. Mais uma vez os gatos dispararam, assustados, para a cozinha.

Rodolfo olhava para elas, intrigado, mas teve que esperar até que recuperassem o fôlego para saber o que estava acontecendo.

Antes assim.

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segunda-feira, 10 de abril de 2023

Marcas que não se apagam - Adelaide Dittmers

 


Marcas que não se apagam

Adelaide Dittmers

 

Do pequeno barraco pendurado no morro despido de verde, gritos estridentes cortavam a noite escura.

Um menino de uns dez anos tampava ou ouvidos, acocorado atrás de uma pequena mesa feita de ripas de madeira sem cor.  Os olhos fechados e mudos de terror. O choro sacudia seu corpo franzino.

Na cama tosca encostada a uma parede precária, a mulher debatia-se tentando desvencilhar-se das pancadas e pontapés do companheiro bêbado.

De repente, a criança levantou-se e se jogou contra o pai, num assomo de desespero, socando-o com seus bracinhos frágeis. O homem o empurrou com violência e ele se estatelou no chão. A mulher soltou um berro e tentou acudir o filho, que chorava descontrolado, mas foi impedida pelo homem enlouquecido, que pegara uma faca e a ameaçava, encostando a arma  no peito da pobre mulher.

Nesse momento, a porta foi empurrada com força e dois homens entraram e seguraram o desvairado, tirando-lhe a faca das mãos.

— Você está louco, Severino!  Ia matar sua mulher!  Olha esse menino!

— Saiam daqui! Severino gritou com a voz enrolada pela bebida.

Os homens o jogaram em um banco.  De sua boca saia uma baba malcheirosa.  Os olhos vidrados não conseguiam se fixar nos invasores.

Josilene, que caíra sentada na cama, levantou-se devagar, atordoada,  tentando manter-se de pé. Os lábios sangravam. Vergões espalhavam-se pelo seu corpo. O olhar doído procurava o filho, sentado em um canto.  Com passos lentos e indecisos chegou até ele.  Os dois se abraçaram.  Um dos vizinhos disse:

— Vem Josilene.  Hoje você e Josué dormem em casa.

Ela acedeu com um movimento da cabeça e seguiu-o como uma sonâmbula, puxando o menino pela mão.

O pequeno lançou um olhar de medo e de raiva ao pai, que agora soluçava a bebedeira.

Deitado em um colchão velho, o pequeno custou a adormecer e foi sacudido por pesadelos a noite inteira. Uma manhã cinzenta acordou-o. Vozes alteradas chegaram-lhe aos ouvidos.  Reconheceu a voz do pai, que exigia a volta da mulher.  Apavorado, cobriu a cabeça com  o lençol velho e desbotado. A mãe dizia que nunca mais voltaria para casa.  Subitamente, a porta do barraco foi fechada com estrondo pela vizinha e amiga de Josilene.   Ele sentou-se e ouviu a mãe dizer, que iria embora dali, que estava cansada de apanhar e com medo de ser morta pelo companheiro.

 

Mais tarde, aproveitando a ausência do truculento Severino, mãe e filho retiraram do barraco os poucos pertences e deixaram o lugar.

Atravessaram a grande cidade até chegar a um subúrbio longínquo.  Lá vivia Joana, uma grande amiga, que viera com Josilene do Nordeste, muitos anos atrás.  Muitas vezes ela pedira à amiga para deixar o marido violento e vir morar com ela, que morava sozinha em uma casa simples, que conseguira com muito trabalho.  

Quando Joana abriu a porta, assustou-se com o estado da amiga.  O rosto inchado e os braços com grandes manchas roxas.

— De novo, Lene! Aquele miserável bateu em você!

— Foi a última vez, Jo. Vim morar com você, se você ainda quiser! Respondeu com a voz embargada, acrescentando: Ele quase me furou com uma faca! 

E o choro explodiu de dentro dela.  Joana a abraçou e tentava consolá-la.  Eram como irmãs e lá estaria segura, pois sempre escondeu de Severino, onde a amiga morava.

Agarrado à mãe, Josué baixou os olhos.  Estava confuso e amedrontado. 

Joana olhou para ele e percebeu a angústia do menino.  Colocando a mão nas costas dele, levou-o delicadamente para dentro.

— Graças a Deus que você largou aquele homem! Venham, sentem aí para descansar. Vou fazer um café.  Depois arrumamos suas coisas.

Ainda com lágrimas, que lhe salgavam a língua, Josilene derramou o sofrimento que lhe feria a alma. O menino ouvia com um olhar perdido, digerindo com dificuldade o desabafo da mãe.

A preocupação com o trabalho aflorou na conversa.  Tinha que abandonar as casas em que faxinava.  Joana então lhe prometeu que iria lhe ajudar a arrumar um emprego mais perto.  Não muito longe dali havia um condomínio de gente de posses, e não faltaria lugar para a amiga trabalhar.

Com o passar do tempo, a vida foi se acomodando.  O emprego foi conseguido.  Josué entrou em uma escola próxima.  Uma tranquilidade há muito não sentida encheu o coração de Josilene.  As marcas físicas e morais foram desaparecendo e no lugar da fragilidade e do medo, surgiu uma mulher forte e decidida.

O menino, no entanto, não conseguiu superar o medo.  Muitas vezes acordava de madrugada, banhado de suor após pesadelos, em que o pai os surrava e os ameaçava. A mãe o acalmava com carinho e conversava com ele.

Na escola, era muito quieto e tímido e se afastava dos coleguinhas. Em casa era obediente e cooperativo, mas muito fechado em si.

A mãe sofria com a dor do filho.  Então, certo fim de tarde, após voltar do trabalho, ela o chamou para conversar.  Sentaram-se em um banco no pequeno quintal da casa, onde uma velha jabuticabeira estava vestida das pequenas e deliciosas frutinhas.  Lançou um olhar para a árvore e depois para o menino e disse com voz calma e carinhosa:

— Josué, você não pode continuar assim.  Fechando toda essa tristeza dentro de você. Você cresceu com medo, é verdade, só viu coisas ruins, mas passou, ficou tudo lá atrás.  Agora estamos seguros.

Os olhos do menino pousaram na mãe e as palavras jorraram com a intensidade de uma enxurrada lamacenta.

 — Tenho raiva e vergonha de ter nascido daquele pai.  Surras e mais surras em você e em mim. E se ele nos encontrar... tenho muito medo...

— Não, filho, ele não sabe onde estamos.  Fique tranquilo.  Jogue fora a raiva, a vergonha, o medo.  Você não tem culpa do que passamos.

E continuou com uma voz mansa e calorosa.

— Tá vendo essa jabuticabeira carregada.  Não é bonita e forte? Ela carrega tudo. Parece feliz de nos dar suas frutas.  Um dia ela foi pequena, vergou com ventos.  Foi cortada para crescer mais forte. E está aí, alta, dando para nós sombra e as tão gostosas jabuticabas e nada recebe de nós em troca. Nós também passamos por muita coisa triste, mas temos que seguir e aprender a crescer como ela.

— Eu não sou árvore, mãe.  Sou gente!

— A árvore não é gente, mas pode nos ensinar muita coisa. Você vai crescer como ela. Na escola vai aprender um monte de coisas, que eu nunca aprendi.  Quero que tenha uma vida melhor que a minha.  Só tem que abrir seu coração, seguir em frente e descobrir o caminho.

Joana, que tinha chegado devagarzinho, ficou admirada com a sabedoria da amiga. O sofrimento é nosso professor, pensou emocionada.

— O menino abraçou a mãe e desabou dele um choro que parecia lavar a tristeza e o medo dentro dele.

Daquele dia em diante, tentou ser outro menino, mais aberto.  Colocava suas emoções para fora e quando a memória o levava para o passado dolorido.  Sacudia a cabeça e pensava nas árvores, que também passam por desafios para crescer.

Tornou-se um adulto responsável e trabalhador.  Sempre se desviava de disputas e brigas.  Vozes alteradas ainda o atingiam.  Fugia delas. 

Fez um curso técnico de mecânica de automóveis e se tornou um ótimo profissional, disputado por muitas oficinas. Às vezes, as ferramentas caiam de suas mãos ao lembrar o passado, um arrepio lhe percorria o corpo, mas logo voltava ao presente e agradecia intimamente às duas mães que o guiaram nos momentos difíceis.

Uma noite em que estava no centro da cidade, voltando para casa, cruzou com um homem maltrapilho e completamente embriagado.  Seus músculos se retesaram.  Com os olhos assustados fixou o olhar no homem e para seu espanto, atrás da barba comprida e suja, reconheceu seu pai, mais velho, mais enrugado, mas era ele. O coração disparou. A palidez cobriu seu rosto.  O homem estendeu-lhe a mão encardida e pediu-lhe dinheiro.  Ele recuou, o ódio misturou-se a um inesperado sentimento de piedade, diante daquele trapo humano.

Ele negou e se afastou mais, mas o pai o segurou insistindo na esmola. Dentro dele surgiu a imagem da faca e dos gritos da mãe.  Fora de si, ele o empurrou com força para se desvencilhar.  Cambaleando e soltando palavrões, Severino desceu da calçada.  Ouviu-se uma brecada forte, mas o carro não conseguiu parar e o atirou longe. O motorista desceu desesperado para socorrê-lo.  Várias pessoas pararam para ajudar.  Estava morto. 

Josué assistiu petrificado a tudo.  Não conseguia sair do lugar.  De repente, virou as costas e seguiu seu caminho sem olhar para trás.  Dos olhos caiu uma lágrima confusa.

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

    O cãozinho aventureiro Alberto Landi                                       Era uma vez um cãozinho da raça Shih Tzu, quando ele chegou p...