VIDA 
PERDIDA
Hirtis
Lazarin
    
Conheci o Gino de ontem e conheço o Gino de agora.
     Há
muito tempo, Gino abandonou a família, o trabalho estável bem remunerado e partiu
sem rumo por este mundo de Deus.
    
O que levaria um homem a fazer isso?   Um desgosto
profundo?  Uma traição?  Um surto?  Loucura?  Todos esses pensamentos gritam
quando se vê a vida do lado de cá.
    
Aquela noite chuvosa estava muito... muito ...fria. Até o criquilar dos
grilos saía congelado.
    
A casa estava vazia.  Há horas, Gino angustiado caminhava incessantemente
de um cômodo a outro seguindo o tic tac compassado do relógio.
    
Ouvia-se lá de fora, o plim plim plim  ritmado dos pingos grossos da
chuva batendo numa bacia de alumínio, como se uma música
fosse começar. Até isso irritava-o, mas nada fazia pra interromper
essa agonia.  Ao contrário, o seu ódio, o seu descontrole só fazia
crescer.
    
E foi assim, sem condições de pensar nas
consequências, alucinado, desapareceu de casa sem levar nada. 
Apenas um bilhete trêmulo e rasurado:  "Estou indo embora.  Não
me procurem."
    
Andou...andou...quilômetros por estrada desconhecida.  O cansaço parou-o
num matagal espesso.   Desmaiou e só acordou quando, no dia seguinte, o
sol forte que se esgueirava entre os galhos, por
uma frestinha, encontrou seu rosto.  Cheio de dores e com muitos
arranhões pelo braço, sabia o que teria que ser feito.  Era ali que queria
ficar.
    
Sem ferramentas e com pouca habilidade, abriu, ali mesmo, uma pequena
clareira, espaço suficiente pra ele.  Aos poucos, recolhendo pedaços do
que já foram portas, janelas e pés de mesa  armou sua barraca. 
A chuva era impedida de entrar por sacos plásticos pretos e grossos. 
Estava pronto o lugar onde passaria os últimos dos seus dias e,
conscientemente, torcia pra que fossem poucos.  Não lhe importava mais
saber  o dia, nem o mês, nem o ano.  Tinha o que precisava:
"PAZ".
    
As noites eram longas e silenciosas.  De vez em quando, acordava
sobressaltado com o pio de uma coruja solitária e indefesa. O
piar mais parecia o lamento de alguma alma perdida.  
Durante o dia, o que realmente lhe incomodava, era o zum zum zum monótono
e incessante de borrachudos loucos pra se alimentar do sangue da
vítima.  Às vezes, varejeiras perigosas se fantasiavam  de verde
azulado e se misturavam a esses mosquitinhos.
    
 Gino cobria-se com trapos que encontrava em suas andanças. 
Muitos desses trapos tinham certos detalhes próprios de roupas
que, um dia, fizeram parte de um guarda-roupa luxuoso.
      
Hoje, os cabelos que já foram fartos e bem tratados, desapareceram. 
Apenas alguns punhados de fios que teimam em resistir.  A barba crescida e
desregrada esconde-lhe o rosto magro.  Visíveis apenas o nariz e os olhos
claros lacrimejantes.
    
Que sofrimento esconde essa criatura?  Quem tirou-lhe a esperança, o
desejo, a mola propulsora da vida?  Quem ou o que o forçou à
solidão?  Solidão que o tornou arisco, desconfiado e de pouquíssimas
palavras.  Apenas dois gatos tinham o privilégio da sua companhia e de
alguns gestos carinhosos. 
    
Tudo tem uma explicação.  E eu fui em busca dela.  Desvendar esse
segredo, o lado silencioso e obscuro dessa história.
    
Gino era casado, tinha um menino e Vanda, a mais nova. Os traços da
menina, delicados e bem torneados, chamavam a atenção.  E, ainda
bem pequenina, já era requisitada pra comerciais de t.v.  Mas foi na
adolescência que sua beleza explodiu.  E junto, explodiram a rebeldia
e a vaidade exagerada.  Era a preocupação com os cabelos, com o
corpo, com a pele.  Deixou os estudos pra trás e a vontade de ser
advogada.   Os livros da escrivaninha deram lugar a cremes,
shampoos, cosméticos e essa parafernália toda que promete a juventude
eterna. 
    
A família vivia um cotidiano fútil baseado em beleza, moda, tratamentos
e dietas em busca da perfeição.  "Passarela",
"modelo", "sucesso" "fama" e
"dinheiro" eram as palavras mais pronunciadas naquela casa.
    
O tempo corria veloz e a carreira de Vanda andava feito tartaruga.  Os
esforços eram muitos, as oportunidades eram poucas.
    Enquanto
o pai aconselhava, advertia, mostrava a efemeridade dessa carreira, a
mãe não só apoiava como era a maior incentivadora das loucuras
da filha. 
    
Vanda já passara por vários procedimentos estéticos, mas não se satisfazia com
o que o espelho lhe mostrava.  Insistia agora numa lipoaspiração
abdominal.  As dezenas de" não" do pai geraram choro, gritos,
brigas, muita confusão.   A casa enlouqueceu.
    
Às escondidas do pai, Vanda chegou à mesa de cirurgia. e tudo
correu conforme a previsão médica.  Ficou internada por dois dias apenas e
a recuperação seria em casa.  Cinco dias depois, um mal-estar que
seria passageiro levou-a à uma nova internação.  E, pra desespero da
família, uma parada cardiorrespiratória tirou-lhe a vida.  E, hoje,
um túmulo frio e cinzento acolhe os dezoito anos de uma jovem sonhadora, que sonhou
o impossível.
    
Gino não suportou, entregou-se à bebida, abandonou tudo e perdeu-se
pela vida. 
