A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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terça-feira, 14 de novembro de 2017

CURIOSIDADE: ETIMOLOGIA DE ALGUMAS PALAVRAS


ETIMOLOGIA DE ALGUMAS PALAVRAS

Resultado de imagem para palavras

Bastardo:  Vem do Francês arcaico BASTARD, modernamente BÂTARD, “filho de nobre com mulher que não seja sua esposa”. Vem da expressão FILS DE BAST, “filho de cobertor de sela”, pois estes, além de revestir a parte inferior dela, serviam como cobertas numa viagem. Essa condição, na Idade Média, não era vista como agora. Muitos filhos de nobres alcançaram altas posições. E essa é a origem da expressão “ter o rei na barriga”: muitas amantes de personagens reais desfrutavam do prestígio a elas conferido de portar um herdeiro real no ventre.
PRIMOGÊNITO – do grego, de primus, “primeiro, o que veio antes de todos”, mais genitus, “nascido, gerado”.  Existe gente, contudo, que anuncia o nascimento de “seu segundo primogênito”, “seu terceiro primogênito”, etc.
Toalha. Esta vem do Francês toaille, que vem do Latim tela, “tecido, pano”. Daí derivou toilette, no início “pequena toalha, toalha de mesa” e depois “arrumação, higiene corporal”
Dentifrício:  Essa palavra vem do Latim dens, “dente”, mais fricare, “esfregar”, já que é uma pasta para fazer exatamente isso.
Nariz: Latim nasus, “nariz”.

Olho:  vem do Latim oculus, “olho”

Debate: Do Francês antigo DEBATRE, originalmente “lutar”, formado por DE-, completamente”, mais BATRE, “bater, golpear

Decadência: Do Latim DECADENTIA, “o que está estragado”, de DECADERE, formado por DE, “fora”, mais CADERE, “cair.
Vadio: vem do Latim VAGATIVUS, “o que anda sem destino”, de VAGARE, “andar sem propósito, sem destino. O emprego pejorativo tem origem óbvia: uma pessoa que gastava seu tempo andando ao léu não podia se dedicar a atividades necessárias a alguém que pertencesse a um grupo e cooperasse para as suas finalidades. Outras conotações pejorativas daí se desenvolveram.
Obrigado: obrigado” vem do Latim OBLIGARE, formado por OB, “a”, mais LIGARE, “unir, atar”. Quando dizemos “obrigado” estamos dizendo que nos sentimos ligados pelos laços do agradecimento a quem nos fez um favor 

Fêmea:  que veio do latim FEMELLA, “jovem do sexo feminino”, de FEMINA, “mulher”. “Feminino” e “feminismo” são outros derivados

Fiado: Do latim FIDARE, “confiar, crer, acreditar”, de FIDES, “fé, confiança”.

Filhos: filius em Latim / Primos: Esta palavra vem do Latim consobrinus primus, “primeiro consobrinho”. / Tios: Esses vêm do Grego thios.  Mas, no Latim, prevaleceu por um tempo uma situação que nos parece estranha. Havia um nome para cada tipo de tios. O irmão da mãe era chamado avunculus. A irmã dela era a matertera. O irmão do pai era o patrius e a irmã do pai se dizia amita / Netos: Esses vêm do Latim nepos , inicialmente “filho da irmã, neto, descendente”. Mais tarde essa palavra adquiriu o sentido de “sobrinho”. Veio do Indo-Europeu nepot- , “neto, descendente outro que não o filho. / Foi aí que originou nepotismo . Esta palavra passou a se usar em 1662, na época em que nem todos os Papas se distinguiam pela santidade. Alguns tinham filhos naturais, que chamavam de nipoti , “sobrinhos”, e que eram beneficiados com cargos e outras vantagens.

Navio:  os gregos chamavam de naus os seus navios; em Latim isso se transformou emnavis, de onde passou para nós como navio ou nave.

Ônibus: omnibus em Latim, quer dizer “para todos” e se aplicou a uma espécie de transporte por carruagem que servia a todas as classes sociais, na Inglaterra, em 1832. Mais tarde ela foi aplicada aos veículos de transporte de pessoas movidos a motor e abreviada para bus por lá.

Abrigo: Vem do Latim apricare, “proteger-se do frio aquecendo-se ao sol”, de apricus, “exposto ao sol”.

Cachecol  -  do Francês cache-col, literalmente “esconde o pescoço”, já que essa
é a parte do corpo defendida pela peça.

Caipira: Do Tupi CAA, “mato”, e PIR, “que corta”.

Flagrante:  Ser apanhado assim pode ser a maior de todas as provas. Vem do Latimflagrans, “o que queima, ardente”, do verbo flagrare, “queimar”, da raiz Indo-Européiabhleg-, “queimar”.

Detetive: vem do Latim detectare, “descobrir, destapar”, formado por de-, “fora”, mais tegere, “cobrir com algo”. Ele é a pessoa que “destapa, descobre” o que estava oculto pela conduta do criminoso.

Adivinhar: vem do Latim divinare, “predizer o futuro”, de divinus, “divino, relativo a um deus”, que veio de divus, “deus”.


Edifício:  vem do Latim aedes, “casa, mansão”. O nome acabou se fixando nos edifícios que existiam em Roma e que tinham até cinco andares, usados como morada para as pessoas de baixa renda. 

Primeira aventura de Alexandre - Graciliano Ramos

Primeira aventura de Alexandre
Graciliano Ramos

Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.

— Vou contar aos senhores... principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:
— Conte, meu padrinho.

Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se .na rede e perguntou:

— Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?

Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

— Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. 
Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

— Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

— Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

— Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

— Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

— "Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?" E eu respondi: — "Não achei, nhor não." — "Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai Veja se encontra a égua." — "Nhor sim." Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha agüentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim". Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu. me estirei na ribanceira do rio, de papo para. o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha. Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant'lago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam,as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de. voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant'lago. e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente. conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista consegui distingui-las por causa das malhas brancas. — "Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite." Muito ruim o animal aparecer .àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a idéia me chegou.

— Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

— Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal:

— Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então... Eu então pensava, na tropelia desembestada: — "A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada." Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a. para a estrada. Ai ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que .nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio .da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — "Vocês não viram por aí o Xandu?" — "Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora" — "Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!" — "Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?" —"Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?" — "Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa., porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava com outro pequeno." Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

— Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.

Texto extraído do livro “Alexandre e outros heróis”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1981, pág. 11.
Tudo sobre Graciliano Ramos e sua obra em "Biografias".




A última noite de Natal - Graciliano Ramos

A última noite de Natal
Graciliano Ramos

Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala, sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. 0 exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; .os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.

Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam . e apagavam.

Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a. fumaça luminosa dos repuxos.

(20 de dezembro de 1941).


Texto extraído do livro “Linhas Tortas”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1983, pág. 222.

Quem era ela? - Hirtis Lazarin

  Quem era ela? Hirtis Lazarin     A rua já estava quase deserta. Já se ouvia o cri-cri-lar dos grilos. A lua iluminava só um tantin...