A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Fala, fala espelho meu... - HIRTIS LAZARIN

 

 


Fala, fala espelho meu...

HIRTIS LAZARIN

 

Dona Luíza entrou apressada no quarto da Elisabeth. Tinha pouco tempo para colocar ordem. Estava atrasada com os serviços do dia; as crianças e o marido logo mais chegariam para o almoço. Às quintas-feiras, Rui tinha que sair voando. As audiências no fórum não esperavam.

Como sempre, encontrou tudo como ela não queria: gavetas abertas, tênis jogados, roupas espalhadas por todo canto. Já tentou muitas vezes, com jeitinho e outras vezes, aos gritos, conscientizar a filha. Já estava na hora dela cooperar com a mãe.

Assim que abriu a janela e a claridade entrou, percebeu que alguma coisa estava diferente.  A bagunça era a mesma, mas...

Bem, não tinha tempo para ficar pensando. Ouviu o ronco do carro da família entrando na garagem e correu para terminar o almoço.

Elisabeth não é mais a menina que coleciona bonecas. Não foi de uma hora pra outra que seus pensamentos mudaram.  Tudo aconteceu aos pouquinhos, em doses homeopáticas.  E ela foi guardando para si. Não era extrovertida o suficiente para contar à mãe.

Não demorou muito e o primeiro sintoma extravasou: sentiu vergonha da coleção de bonecas que enchia a prateleira do quarto. Num ímpeto, escondeu todas.

E o espelho, o malvado espelho da penteadeira apareceu e tirou-lhe o sossego e a espontaneidade da infância.

Ele contou-lhe um segredo: ”a menininha manhosa foi embora”.

Elisabeth sentou-se à sua frente e ali ficou parada alheia à vida, como se nunca tivesse reparado que esse espelho existia.  

Teve tempo para conferir todos os detalhes do próprio corpo, dos cabelos e até das unhas mal lixadas. Examinou suas roupas e não gostou do que viu.   As expressões faciais, ora bem-humoradas, ora contrariadas, contavam seus sentimentos.

Dali em diante sua vida mudou. Passou a ser monitorada pelo espelho, o personagem que apareceu forte e autoritário em sua vida.

 E, assim, a vaidade brotou em flores e espinhos.

Ir à escola, até então, momento de alegria, passou a ser um tormento aos pais. Elisabeth colocava o relógio para despertar, levantava-se bem mais cedo que todos e perdia-se no tempo. O tênis não podia ser o mesmo usado no dia anterior, o moletom estava velho, a presilha tinha que combinar com o humor do dia. E o cabelo, coitado, era puxado pra cá, pra lá e perdeu a liberdade de seguir o caminho do vento. Chegar atrasada à aula virou rotina.

Descer à portaria para pegar uma pizza “delivery”, caso a mãe estivesse ocupada, era um inferno. Elisabeth consultava o espelho e ele, sem dó,  sempre torcia o nariz e apontava um item errado. Ela obedecia fielmente.

Já ocorreram vezes em que o motoboy, responsável pela entrega, perdeu a paciência e voltou com a mercadoria.

Os pais estavam preocupados, mas acreditavam que a crise, comum entre os adolescentes, era passageira.

Elisabeth foi convidada, com bastante antecedência, para ser dama de honra, no casamento da prima mais velha. Durante um mês, mãe e filha rodaram lojas e lojas de grife, em busca do vestido mais bonito e apropriado para a ocasião. Depois de desentendimentos, malcriações, mudanças nos detalhes e muito choro, a roupa foi escolhida.

Não era o que a mãe queria, mas o espelho orgulhoso venceu a parada mais uma vez.

O dia do casamento chegou. Estava bem frio, mas nada demais para o esperado no mês de julho.

A daminha de honra passou a manhã toda no salão de beleza. Deu trabalho, mas chegou em casa satisfeita. Horrorizadas ficaram as profissionais que atenderam a cliente.  “Nunca mais”, cochichavam entre elas.

Dona Luísa nunca passou tanta vergonha na vida e nunca desembolsou tanto dinheiro para pagar uma conta de cabelo. Foi esfolada viva.

O casamento estava marcado para as vinte horas. Já eram dezenove e Elisabeth ainda não estava pronta. Ao colocar o vestido, reclamou que alguma coisa, no avesso, cutucava-a.  A mãe procurava... Procurava... E não achava nada. Esse processo se repetiu, acho que por três vezes. Nessa confusão, o cabelo, preso no do alto da cabeça, despencou.

Fim de festa. Fim da tolerância.

“As regras, nesta casa, a partir de AGORA, serão outras. Aguarde, Elisabeth”.

O PODEROSO CORONEL RAMIRO - Henrique Schnaider

 




O PODEROSO CORONEL RAMIRO

Henrique Schnaider

 

Josué chegou naquela cidadezinha, no interior do Estado da Paraíba, de nome Cedró e não imaginava que, não era diferente o modo de vida dos pacatos cidadãos do lugarejo, aos da cidade grande. Desceu do ônibus na pequena estação rodoviária que mais parecia um ponto de ônibus de uma cidade maior.

Cedró toda tinha dois serviços de táxi, um que vinha e outro que ia, mas assim mesmo faltavam clientes para os taxistas. As pessoas andavam a pé. Josué pegou o táxi que ia, cumprimentou o motorista e perguntou onde poderia achar uma casinha para alugar. O taxista que depois se tornou amigo de Josué, respondeu que ia levá-lo lá onde havia casas para alugar.

Josué viu casa do seu gosto. Alugou a casinha. Ela mais parecia uma toca, mas servia para ele. Não havia exigências, era só pegar a chave, entrar e pagar o aluguel dali trinta dias. O taxista indicou também a Usina de Açúcar São João, onde ele poderia arrumar um emprego.

No dia seguinte Josué pegou o táxi que vinha, dirigido pelo Armando com quem simpatizou logo. Pediu para ser levado para a Usina de açúcar. No caminho foram conversando e o motorista falou sobre o Coronel Ramiro, dono da Usina e a pessoa mais importante da cidade.

Chegando na Usina, Josué se despediu do Armando e se dirigiu ao escritório, pensando que iria conhecer o tão falado Coronel. Mas não, nem sinal dele. Passou por uma entrevista básica e logo foi admitido como auxiliar de escritório. No dia seguinte no trabalho, só ouvia os colegas falando sobre o poderoso Coronel. Falavam de tudo, sobre os três filhos do Ramiro e sobre a esposa tão bela e formosa.

Passado um mês, Josué já na sua rotina, ia depois do trabalho para relaxar um pouco, antes de se recolher em casa, lá no bar do Cabeção, outra vez ouvia a ladainha, tudo sobre o Coronel. Ele percebeu que as futricas eram muitas, mas na verdade, eram poucas as pessoas que haviam visto ou sequer conversado com o poderoso senhor.

Festas aconteciam constantemente na casa do patrão, o dono da cidade de Cedró. Poucas pessoas do local, escolhidas a dedo frequentavam tais festas. O Prefeito cupincha de Ramiro, o Presidente da Câmara dedo mole e o dono das três lojas no centro da cidade,. Outros convidados, eram todos vindos de fora, de outras cidades importantes e que mantinham relações políticas com o Coronel.

Josué ficava de boca aberta com tamanho poder e influência do seu patrão, mas que não aparecia nunca. Estava sempre, ou viajando ou permanecia dentro de sua casa com um luxo invejável. Piscinas, imensos salões para as recepções e sem deixar de mencionar um belíssimo salão de jogos.

Todas estas histórias sobre a casa do Coronel, eram contadas pelas poucas pessoas que lá estiveram, mas que não chegaram a ver o dono da casa. Alguns tiveram o privilégio de ver Dona Olga a formosa esposa, que era quem dava as ordens na mansão.

Certo dia, Josué se considerou um sortudo, já que seu chefe lhe chamou ao gabinete e o incumbiu de levar um pacote que ele considerou como misterioso. Era todo embrulhado num papel finíssimo e muito bem amarrado.

Lá se foi Josué caminhando pela estrada em direção ao palácio do Coronel. Ficou imaginando, devido a importância do seu patrão, que o mesmo, deveria ser um homem alto, forte e muito charmoso. Emocionado, caminhou a passos largos, ansioso por chegar, e finalmente poder ver a tão importante e misteriosa figura.

Na porta da casa, tocou a campainha e com o coração aos pulos, aguardou emocionado para ver o patrão. Finalmente alguém abriu a porta e um senhor baixinho com um metro e meio, com um chapelão. Na opinião de Josué o homem era muito feio. Gaguejando ele falou.

— Boa tarde, gostaria de entregar este pacote ao Coronel Ramiro.

— O senhor respondeu, sim sou eu, pode me entregar. Josué capengando se dirigiu ao Coronel. Este por sua vez disse um até logo baixinho, virou as costas, entrou e fechou a porta.

Josué não cabia em si de tanta decepção com o poderoso chefão. Ficou ali parado, pensando no homem que acabara de conhecer. Saiu andando trôpego pela estrada de volta para a Usina. Pondo os pensamentos no lugar. Por fim chegou à conclusão de que, depois de ter visto o patrão, viu que aparência não é tudo, mas sim o poder e a fortuna se adquirem com muitas outras qualidades.

 

 

APARECIDA - LEON A. VAGLIENGO

 





APARECIDA

Uma pequena história que emocionou o autor.

                                                                                                                               Leon Alfonsin Vagliengo

 

        Estabelecido numa rua tranquila daquele bairro modesto de periferia, o açougue de Ricardo era pequeno, mas primava pela higiene e pelo bom atendimento. Isso combinava perfeitamente com ele, um comerciante muito correto, que adicionava a essa virtude e oferecia também, no atendimento a seus fregueses, a grande simpatia que brotava com naturalidade de seu bom coração.

        Por isso, ninguém estranhou a sua atitude naquela tarde, em horário de pouco movimento, quando aquela cachorrinha branca e preta, suja e magra como um palito, parou em frente ao estabelecimento e deu um pequeno latido, com um olhar suplicante para dentro do açougue.  Ao vê-la, Ricardo condoeu-se com o seu aspecto tão deplorável, correu para separar uns bons retalhos de carne que sempre sobravam dos cortes, e generosamente, com muito carinho, os ofereceu para ela.

        A cachorrinha abanou o rabo em sinal de contentamento e, para a surpresa de Ricardo, abocanhou a carne, mas não a comeu. Foi-se embora caminhando pela rua com o alimento na boca, carregando-o com alguma dificuldade. Ele ficou a observá-la, sem entender, até que ela virou a esquina; pelo aspecto faminto da cachorrinha parecia que iria engolir toda a carne no ato, vorazmente, mas não o fez.

        No dia seguinte, por volta do mesmo horário, ali estava novamente a cachorrinha: mesmo latido, mesmo aspecto comovente, mesmo olhar de quem pede ajuda. Quando a viu, Ricardo se enterneceu outra vez, e nem pestanejou: separou os retalhos de carne e os entregou carinhosamente para ela, que os abocanhou e foi-se embora com eles na boca, como no dia anterior.

        Quando ela voltou no terceiro dia, os empregados do açougue já comemoraram a sua chegada:

        — Olha a sua freguesa aí de novo! A Aparecida chegou, Ricardo! — disseram, entre risos, já batizando a cachorrinha.

        E assim aconteceu por vários dias seguidos. Ricardo já deixava separados os retalhos que daria para ela, e até separava os mais longos para facilitar o transporte, porque sabia que ela voltaria e procederia como sempre, mas continuava curioso: “por que ela não come aqui, como qualquer cão faminto faria? Para onde será que ela vai?”.

        O estranho comportamento da cachorrinha o deixava a cada vez mais intrigado. Depois de alguns dias em que tudo se repetiu, vendo que ela ia embora caminhando devagar devido ao alimento que transportava com uma certa dificuldade, Ricardo percebeu que seria possível segui-la, e assim o fez.

        No caminho, Aparecida parava de vez em quando para ajeitar melhor o alimento em sua boca, retomando a marcha de imediato. Andou por alguns quarteirões até entrar num depósito de ferro-velho, caminhando pelo chão de terra batida por entre peças e objetos empilhados ou largados a esmo no local. Finalmente, passou com alguma dificuldade por sobre algumas caixas de madeira que cercavam o pequeno quintal de uma edícula desabitada, já nos fundos do terreno.

        Ricardo vinha logo atrás, chegando a tempo de vê-la depositar o alimento no chão e dar um pequeno latido ao qual acorreram seus três filhotes, abanando os rabinhos perante a refeição que a mamãe lhes trouxe. Sua grande sensibilidade, então, falou alto: com um nó na garganta, as lágrimas assomaram a seus olhos ao constatar a situação precária daqueles bichinhos e compreender o instinto maternal superior daquela pequena cachorrinha.

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        Num sábado, alguns dias depois, Ricardo convidou seus dois irmãos e suas jovens famílias para um churrasco no quintal de sua casa. A conversa corria solta entre risos, comes e bebes, quando seu sobrinho veio correndo, todo animado.

        — Tio Ricardo! Tio Ricardo!

        — Que foi, Julinho?

        — O Senhor tem quatro cachorrinhos! Me dá o pretinho? Meu pai deixa levar ele para a minha casa!

        Ricardo pensou um instante em como responderia. Não queria frustrar o menino, mas o seu coração de ouro não lhe permitiu outra resposta:

        — Não posso, Julinho. Não tenho coragem de separar a mãe de seus filhos, seria uma maldade. Já pensou como a Aparecida e os filhotinhos ficariam tristes? Mas você mora perto, pode vir brincar com eles sempre que quiser, eles vão gostar; e ela, mais ainda, com certeza. Venha, sim!

 

A MENTIRA OCULTA - Helio Fernando Salema

 


A MENTIRA OCULTA

Helio Fernando Salema

 

Depois de muitas trocas de olhares e sorrisos, consegui falar com uma mulher que me encantava há alguns dias. Eu a admirava quando passava perto do meu trabalho, mas ela sempre parecia estar com pressa. Então decidi sair mais cedo e ficar de plantão até que ela aparecesse.

Quando a vislumbrei, logo preparei-me para iniciar a tão esperada conversa, ou quem sabe, conquista. Assim que estava bem próxima percebeu as minhas intenções e, um contido sorriso demonstrava o enorme desejo que ela não atrevia esconder.

Ali mesmo na calçada começamos a conversar e a convidei para um café ou jantar, à escolha dela. Ela sugeriu uma pizzaria que ficava bem próxima. A princípio pensei que a escolha dela era para mostrar-me quem decide. Não me importei, qualquer coisa eu faria para ter a presença dela.

Para demonstrar todo o meu cavalheirismo, deixei que ela escolhesse e, para surpresa foi a minha pizza predileta. Falamos de vários assuntos, a maioria das vezes era ela quem iniciava e eu prosseguia.

Quando ela olhou o relógio e disse-me que precisava ir, pois já era tarde, decidi arriscar um novo encontro:

 — Cremilda, foi um prazer enorme conhecer você. Gostei muito da nossa conversa, da escolha do local e saber que você também aprecia Pizza Marguerita, a minha preferida. Ficarei contente se nos encontrarmos outras vezes:

— Para mim também. Da próxima vez você escolhe.

Arrisquei apostando todas as minhas fichas, considerando o olhar e alegria que ela demonstrava. Então, sugeri o apartamento dela, que ficava bem próximo, como ela mesma dissera.

Ela mais uma vez demonstrando quem decidia, lembrou que eu mencionei que gostava de música e possuía uma esplêndida aparelhagem:

— No meu não é possível. Por causa de minha filha Sandra.

Com um semblante de enorme espanto:

— Sandro! Você não me disse que tinha uma filha.

Expliquei que pretendia falar mais tarde. Ela lembrou de que falei também de uma praia que eu adorava e frequentava sempre que podia:

— Então, você não vai me levar para conhecer aquela praia maravilhosa, que você vai sempre?

— Vamos sim.

— Mas, e sua filha?

Com muita tranquilidade, pois senti que ela já estava ”fisgada”, expliquei que iríamos só nós dois. Ela ainda insistiu querendo saber se minha filha não ficaria zangada. Comentei que eu a avisaria e, como sempre faço, direi onde e com quem irei.

Com os olhos arregalados e demonstrando satisfação, permaneceu por alguns segundos, pensativa:

— Então não há segredos entre vocês e, só não posso ir ao seu apartamento. Certo?

— Exatamente! Respondi quase soletrando.

— Lá… Não levo amigos e nem amigas.

No dia seguinte liguei e a convidei para um café após o expediente. Disse que não poderia, mas se eu quisesse ir ao apartamento dela outro dia, seria um prazer. Rapidamente pensei… E Decidi ver como estava o meu sucesso, perguntei se era para jantar. Deu uma risada gostosa e pediu para eu escolher o menu. Retruquei dizendo que gostaria de uma surpresa. Nova risada e confirmou que iria pensar, mas afirmou que estaria me esperando.

No dia combinado, após comprar na floricultura um belo vaso de flores coloridas e perfumadas, cheguei à “Casa dos Desejos Sonhados”. Ela abriu a porta e ao ver as flores externou uma imensa satisfação.

A minha surpresa não foi menor. Ela fez uma receita especialmente para aquela noite, inventada por ela mesma, Pizza de Marguerita com um molho à parte, todo especial também criado por ela. Insistentemente me pedia desculpas por não oferecer algo diferente, mas para não correr o risco de errar, preferiu escolher o que certamente me agradaria… Pizza de Marguerita. Respondi com toda sinceridade que foi uma excelente escolha.

Quando eu menos esperava ela pergunta pela minha filha. Assustou-me… Fingi que estava mastigando e assim pude pensar:

— Avisei que estaria no seu apartamento.

Ela levantou-se para ir à cozinha pegar a sobremesa... UFA!

Como a sobremesa era deliciosa passou a ser o assunto daquele momento.

O restante da noite foi tranquilo.  Acordei assim que o dia clareou, tomei um banho e arrumei-me para mais um dia de trabalho. Quando terminei, ela também estava pronta. Saímos para tomar café. Enquanto saboreávamos, ela sugeriu que no fim-de-semana fôssemos à praia:

— Boa ideia. Confirmarei nos próximos dias, preciso falar com a Sandra.

Parece que ela esperava outra resposta, ficou quieta e não tocou mais no assunto, nem eu.

 

VIAGEM À PRAIA

 

Dois dias depois telefonei para confirmar a nossa ida à praia, para eu fazer a reserva. Tudo acertado fiz a reserva e, só faltava arrumar a mala.  Saímos na sexta-feira no início da noite e em poucas horas estávamos na pousada.

Foi um fim-de-semana muito agradável e divertido. Ela concordou com tudo que eu havia dito sobre as maravilhas da praia. Sábado durante o café, perguntou quando eu estaria de férias, pois se coincidisse com as dela, poderíamos passar naquela pousada. Balancei a cabeça em sinal de dúvida … Ela imediatamente:

— Já sei… A Sandra pode não concordar.

— Não é isso. Minha filha não precisa concordar, apenas eu preciso acertar as coisas da casa com ela.

Silêncio fúnebre desceu sobre ela. Só algumas horas depois, quando a chamei para almoçarmos, foi que ela voltou a conversar normalmente.

Sábado à noite fomos a um restaurante de música ao vivo jantar e dançar. Eu que sempre me considerei um excelente dançarino e, outras mulheres também, fiquei estupefato. Dançava como nenhuma outra que conheci em toda minha vida, chequei a pensar que ela fosse dançarina. Ainda bem que ela elogiou a minha perfomance, também.

No domingo bem cedo,  um sol extranatural nos brindou até o fim do dia, quando tivemos que retornar acompanhados de uma saudade ”danada”.

 

DE VOLTA AO AP

 

 No domingo à noite, quando entrei no meu “AP” senti falta dela. Muito estranho, com trinta e cinco anos completos e mais de quinze morando sozinho, nunca senti no meu lar falta de uma mulher. Em momento algum pensei em levar qualquer pessoa, mesmo que fosse só para ver o meu ”recanto solitário”. Sensação estranha… Será que estou ficando velho? Pensei e fiquei preocupado.

Mesmo depois do verão, alguns fins-de-semana retornamos àquela pousada, viagem curta, rápida e boas recordações. Durante a semana nos encontrávamos para um café e depois um cinema ou teatro. Na maioria das vezes jantar no apartamento dela, quando ficávamos juntos até o dia seguinte. Poucas vezes ela mencionava alguma coisa sobre minha filha. Certo dia ao chegarmos, ela fez uma leve insinuação do anonimato de Sandra, fechei a porta do apartamento com toda força para mostrar a ela que quem manda no apartamento dela, sou eu.

 

 CASAMENTO

 

Seis meses de relacionamento, cada dia mais aumentava minha paixão pela Cremilda. Passar dias juntos era estar no paraíso sonhado. Não parecia real, especialmente quando retornava ao meu recanto, era  como se eu estive numa prisão solitária sem saber, nem compreender a razão de tal punição.

Reiteradamente tinha pensamentos inusitados… Casamento… Vida a dois. Sacudia a cabeça tentando jogá-los para bem longe, afastá-los da minha vida. Por pouco tempo eu até consiga quando me preocupava com outros problemas do cotidiano. Ao deitar-me sozinho, era como que aquela cama não fosse a minha, que meu corpo não estava completo e, a parte mais fundamental eu não a vislumbrava. Era estar inteiro num lugar e, em outro, apenas um pedaço de mim.

Depois de uma noite difícil, acordei tomei e uma decisão. Liguei para ela e avisei que iriamos jantar num lugar esplêndido… Uma grande e maravilhosa surpresa.

Ao sair do trabalho fiquei esperando, como sempre, no mesmo lugar da calçada. Assim que ela apareceu senti nela algo estranho. Aproximou-se … Entregou-me um envelope:

— Vá sozinho… Seu mentiroso… Você não tem filha.

Saiu com passos largos quase correndo. Assistindo o seu desaparecimento entre as pessoas, pensei… NEM FILHA … NEM VOCÊ.

 

Era muito bom pra ser verdade - Hirtis Lazarin

 



Era muito bom pra ser verdade

Hirtis Lazari


Flutuando, ela deixou a sala do diretor da empresa,  não sabia onde estava nem pra onde ia. Perdeu-se no corredor imenso cheio de salas fechadas. Leu algumas plaquinhas afixadas às portas e nenhuma delas permitia a entrada.  Não encontrava ninguém para orientá-la.  Onde ficavam os elevadores? Passou pelo mesmo lugar várias vezes, até que encontrou uma saleta bem decorada e duas poltronas à sua espera. Sentou-se. O corpo todo tremia. Não se lembrava de já ter perdido o controle antes, mesmo nas situações mais difíceis. Agora, depois de receber a melhor notícia do ano, Laura desequilibra-se de tal maneira que é muito difícil para ela mesma acreditar.  Sempre foi uma mulher calma, sempre capaz de controlar seus sentimentos.

Respirou fundo diversas vezes até sentir-se menos ofegante e o coração bater mais compassado. Tomou dois copos de água e abriu a bolsa; tirou aquela carta, precisava ler novamente para acreditar nos últimos acontecimentos.

Percorreu os parágrafos e selecionou aquele que mais lhe interessava. Leu em voz alta mais que duas vezes. Precisava acreditar.

 “Laura, você foi selecionada para trabalhar conosco. Bem-vinda ao nosso time”.

Quatro anos na Faculdade de Economia, mais dois anos de estágio e vários cursos de aperfeiçoamento. Sentia-se preparadíssima para trabalhar no setor de recursos humanos, para o qual fora selecionada.  O salário era ótimo, principalmente num período em que a economia do país estava em crise. A taxa de juros e o dólar subindo e as vagas de emprego caindo.

Na segunda-feira seguinte, Laura chegou ao escritório confiante, carregando muitos sonhos acumulados. Depois de conhecer os colegas do escritório, a chefe do setor, Dona Divina, conduziu-a à mesa fria e sem expectativas, que a aguardava. De palavras poucas e sem nenhuma expressão, a senhora comentou baixinho sobre o terninho que Laura usava: “está conforme as regras da Empresa”.

Pegou um pequeno folheto do bolso e leu:

“A roupa tem que ser discreta e de cor neutra. Nada de bijuterias extravagantes, quando muito, permite-se uma pequena joia. Tudo para não desviar a atenção e suscitar comentários”.

Entregou-o e, antes mesmo que a moça argumentasse, afastou-se em passos apressados e pesados. Nada mais se ouvia além do ploct...ploct...

Laura entendeu que as normas eram para serem cumpridas e jamais questionadas.

Levantou os olhos e todos trabalhavam indiferentes. Organizou a mesa do seu jeito; pegou a foto da sua filha Elisa, deu-lhe um beijinho rápido e colocou-a bem a sua frente. Não demorou meio segundo e uma voz áspera pediu que a retirasse. Laura nem ousou questionar porque o tom de voz era bem autoritário e a fisionomia de quem estava ao seu lado era de gente mal-humorada. Entendeu que não era uma sugestão, era uma ordem.

 Aquela atitude a incomodou, mas não podia se dar ao luxo de gostar ou não gostar. Precisava trabalhar. O trabalho estava bastante acumulado e ela precisava dar conta do recado; e tinha certeza de que sua “expertise” na área, dispensaria intervenções da superiora.

D. Divina parava pouco em sua mesa e circulava muito pelo escritório. Seria uma necessidade de controle para sentir-se minimamente estruturada? Os gestos, alguns aspectos da sua linguagem corporal  e até seu vocabulário causavam constrangimento.

Mas a nova funcionária precisava trabalhar...

Num dia como outro qualquer da semana, Laura saiu de casa com bastante antecedência.  Esse cuidado já fazia parte da sua rotina. Uma regra imposta a si mesma para sempre chegar à Empresa antes do horário estipulado.  Atrasos não eram perdoados.  

Mas, os policiais interromperam o trânsito por conta de uma discussão entre motoristas, e a avenida ficou interditada por quase uma hora.

 E, justamente, naquela manhã, ao chegar apressada e apreensiva à porta da Empresa, um garoto aproximou-se dela, entregou-lhe uma rosa branca e saiu correndo. Confundido em meio às muitas pessoas que circulavam, gritou bem alto: — “Seja paciente, foi ele que falou”.

Laura não tinha tempo para entender aquilo. Entrou apressada e, por sorte, o elevador estava no térreo; eram vinte andares para subir. Foram os minutos mais ansiosos e, talvez, os menos desejados da sua vida. Uma hora atrasada. Sabia que as justificativas nunca eram justificáveis.

Entrou esbaforida no escritório, o corpo gelando e a mente fervendo.  Suportou o olhar preocupado dos colegas e o olhar inquisidor da chefe. Foi até a cozinha, colocou a rosa num copo plástico e enfeitou sua mesa com o símbolo da paz.

A paz não durou meia hora e a flor morreu no lixo.

Laura ouviu, fingindo atenção, as grosserias da D. Divina. Abaixou a cabeça como quem concorda com o que ouve e começou a trabalhar.

Não posso, neste momento, desistir dos meus propósitos e, eu sei, claramente, quais são. Preciso valorizar-me como profissional e não me abater com o que acontece ao meu entorno”.

Não parou para almoçar e trabalhou até terminar tudo que havia programado para aquela quinta-feira, não sem antes avisar aos familiares o motivo do atraso.

Eram dez horas da noite quando ela saiu do prédio. Entrou num barzinho, logo ali ao lado, e num só gole, ingeriu uma dose de Whisky, o melhor da casa. Tomou um táxi e se foi. Cansadíssima, mas não derrotada.

Os horários da Empresa eram rígidos, a roupa que se vestia era monitorada, a conversa entre colegas, se não fosse sobre trabalho, nem pensar. Era uma Empresa que investiu na mais alta tecnologia, mas conservadora e autoritária, com uma estrutura fortemente hierárquica. A tomada de decisões estava centralizada na líder, D. Divina. De “divina”, ela não tinha nada. Seus raios de luz estavam todos queimados. E o cheiro amargo propagava-se no ar distribuindo solidão e melancolia. Sim, todos eles trabalhavam melancólicos. Até ouviam vozes fantasmagóricas que cochichavam aos ouvidos.

Os funcionários pareciam robôs programados a cumprir ordens. A criatividade deles, treinados à inovação, era ignorada; não podia ir além das boas intenções.  

O que os prendia a este lugar?

Laura já sabia responder: “O alto salário pago, numa fase de crise do país, era o que os amarrava ali”.

A maioria das empresas estava demitindo os funcionários ou fazendo acordo de menores salários. Não era o momento de pedir as contas.  Ela tinha responsabilidades e várias pessoinhas dependiam dela.

Mas, nesse ambiente doentio, sintomas de ansiedade e perda de sono começaram a manifestar-se. Quando conseguia dormir, Dona Divina aparecia em seus pesadelos sob a forma de bruxa. E a bruxa servia-lhe uma poção venenosa que a transformava num animal deformado e fiel.

Laura acordava aos gritos.

A ansiedade virou pânico e, em pânico, comia sem parar.

Só percebeu que aumentou quilos, quando as roupas não lhe cabiam mais. Estava doente. Foi afastada do trabalho e os médicos encaminharam-na a uma clínica para tratamento. Ficou internada.

E aquele menino que entregou à Laura uma rosa branca? Ela investigou e nunca conseguiu encontrá-lo.

 

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

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