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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Eu não quero ser uma caneca - Hirtis Lazarin





Eu não quero ser uma caneca
Hirtis Lazarin



 
Vó Toninha morava no casarão da esquina na Rua Torta.  Apesar de viver sozinha, esbanjava bom humor e a solidão nunca conseguiu encontrá-la.  Criativa e inteligente, sentia prazer imenso em contar historinhas, inventar outras e até alterar as já conhecidas.  Não é à toa que vivia rodeada de crianças.

     Como passava o maior tempo na cozinha, seu cantinho preferido, até apelidos e brincadeiras ela fazia com os objetos da cozinha.  Dizia que o "bule" tinha o bico aberto e não parava de tagarelar.  A "tigela" de porcelana finíssima pintada de flores era a" margarida desfolhada" só porque tinha uma rachadura quase imperceptível na borda.  A "panela" de alumínio amassada e com o cabo de madeira esfrangalhado era a "idosa querida".  Fazia até competições entre as xícaras de café, "as anãzinhas", com as de chá, "as poderosas".  Confusão na certa!

     Guardada no armário de vidro espelhado, reinava uma caneca de louça vermelha e branca com o emblema da Suíça.  Presente que o esposo ganhou do governo de lá.  Era poupada e resguardada.  Uma relíquia. A tal caneca sabia do valor emocional que representava e se aproveitava disso.   Sentia-se poderosa e esbanjava orgulho.  Nunca abriu mão do seu trono.


     Numa noite estrelada em que a lua cheia espantou a escuridão, a caneca abandonou a clausura daquele convento.  Queria conhecer o mundo que girava lá fora.  Nos primeiros dias foi dificílimo driblar os passos dos pedestres para não morrer pisoteada.  Todos tão apressados como se o mundo fosse acabar naquele instante.  Atordoada naquele vaivém,   escondeu-se debaixo de uma lixeira e toda encolhidinha aguardou a tontura e o pavor passarem.  Atravessou uma rua calma e sentou-se numa pracinha sombreada, onde crianças pequenas brincavam.  Divertiu-se muito com as peripécias da criançada até que um garoto bem fortinho deu um chute certeiro na bola.  Ela subiu zunindo no ar, deu duas ou três piruetas e caiu acertadamente no banco onde a caneca, até então, sentia-se a mais segura das criaturas.  O banco de madeira já gasto chacoalhou-se tanto que a caneca saltou no ar e, só não se espatifou porque sua queda foi amortecida por um ursinho de pelúcia.  Só recobrou os sentidos quando estava noite e o parquinho vazio.  Teve a grandeza de agradecer por estar viva, pôs-se em pé e se contorceu toda para se livrar da areia suja que a incomodava.

     E foi a primeira vez que suas lágrimas rolaram. "Estou arrasada.  Sei que meu fim está próximo.  É só alguém, nervoso ou irritado, por engano, encher-me de café fresquinho e bem quente.  O líquido vai escorrer pelo trincado e eu, coitada de mim, serei atirada bem longe até e me desfarei em pedacinhos.  Mil pedacinhos.  Um final muito triste"

     Era uma vez uma caneca presunçosa que se amava além da conta. 


Rumo à Via Láctea - Marilda Borelli




Rumo à Via Láctea
Marilda Borelli                  



        Ao longo da jornada fui colhendo flores, desde a Rosa, rainha das flores, à majestosa Flor de Lodo nos momentos de aridez.

São cravos, dálias, crisântemos, estrelícias, margaridas, flores do campo encantadoras, perfumados jasmins, verbenas, hortênsias, violetas. Não faltaram lírios, gerânios, antúrios, elegantes orquídeas, ciclames.

Diversos arco-íris, essências as mais variadas, fui dispondo em Floreiras no meu coração, entremeadas com delicados miosótis, que tão raramente hoje se vê.

Adornaram toda minha vida, para que eu pudesse estar sempre repleta de alegria, olhos brilhantes, respirando ar puro, sobretudo transmitindo ao mundo o encanto de viver cercada pela beleza da criação.

Estar vestida a rigor todos os dias, transformando cada lugar em dia de festa, uma comemoração a ser feita!

Os mosquitinhos dão um toque especial e as azaleias coloridas aqui, os manacás ali, quanta vibração na terra!

Esse movimento contínuo em prol do “sentir-se bem’ faz-me perceber a existência de um regente-mor, ordenando passo a passo as fases da Lua, o caminho do Sol, as chuvas, as estações.

É o momento da gratidão: oferecer um mimo a quem precisa, um buquê ou uma singela flor, dádiva da natureza, armazenados em minha alma!

Para te fazer feliz!

Com carinho!

É a Primavera chegando!

Receba, eu te ofereço!


A LIÇÃO DO CARAMUJO - Hirtis Larazarin


 


A LIÇÃO DO CARAMUJO
Hirtis Larazarin



André não tinha jeito, não.  Era briguento e insatisfeito com a vida.  Reclamava de tudo.  Uma família bem estruturada e pais carinhosos. Não tinha tudo o que queria, mas tudo que precisava.  Estudava numa boa escola, bons amigos e uma namorada apaixonada.

          Aos dezoito anos entrou numa crise depressiva.  Trancou-se no quarto, janelas fechadas.  A presença da luz e de pessoas irritava-o tanto, a ponto de perder a razão e destruir o que via pela frente.   Não aceitava medicamentos nem a presença de terapeuta.  Os pais não sabiam mais o que fazer.  Enquanto as crianças irrequietas e felizes brincavam lá fora. André definhava lá dentro.

          Numa madrugada, quando a casa dormia no silêncio da noite, ele levantou-se e, pé ante pé, atravessou os ambientes e chegou ao jardim.  Sentou-se no degrau da sala iluminado pela luz fraca do poste, as plantas adormeciam.   Nem uma brisa.  Apenas o silêncio que o confortava.  Foi então que percebeu não estar sozinho.  Um animalzinho delicado caminhava lentamente e com muito esforço carregava a casa nas costas.  E o cansaço deixava um rastro de sofrimento por onde passava.  Era um caramujo, um molusco indefeso que visita jardins à noite e se alimenta de folhas tenras, protegendo-se dos predadores, inimigos mortais.

           De pronto o rapaz identificou-se com ele.  E todas as noites,  na madrugada, André visitava o caramujo que já se acostumara com sua presença.  Tornaram-se amigos e ganhou até um nome:  Carmelo.

          Não é que o rapaz se imaginou na pele de um caramujo.... Sentiu a dificuldade de rastejar-se pelo chão.  Sentiu inveja dos pássaros que viajam alcançando as mais altas árvores do bosque... Das borboletas de asas brilhantes que colorem por onde passam... Até da joaninha pintada de vermelho com bolinhas pretas espalhadas pelo corpo...

          Mas o caramujo solitário não desistia de viver.  Fazia o melhor dentro de suas parcas possibilidades.  Era humilde e aceitava o que não podia mudar.  E toda essa reflexão começou a "rebuliçar" a cabeça de André.

          Na madrugada de uma quinta-feira preguiçosa e chuvosa, ele encontrou o amigo sem vida enroscada num galho miúdo e seco que se soltara da roseira.  Foi um choque.  Chorou muito.  Nem sabia que se apegara tanto àquele ser que quase passa invisível aos olhos humanos.

          Mas foi o Carmelo que o ajudou a compreender o quanto era ingrato e egoísta.  Não foi de repente, mas aos poucos...  Foi se desvencilhando daquela casca grossa envolvente que o impedia de ver o quanto era feliz e privilegiado. 

E o mais importante, valorizar a força que possuía para caminhar sozinho, vencer desafios e escrever sua história.

          Hoje Carmelo está guardado num vidro ao lado dos livros de André.  E a cada vacilo, é só encará-lo que as forças depressa chegam.




O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

    O cãozinho aventureiro Alberto Landi                                       Era uma vez um cãozinho da raça Shih Tzu, quando ele chegou p...