A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

CAMINHONEIRO - Helio Salema

 



CAMINHONEIRO

Helio Salema

 

A viagem começou às 6:00 horas. O sol clareava toda a estrada, dando a certeza de uma viagem tranquila. Conheço cada palmo do asfalto, posto de combustível, restaurante e tudo o mais que existe por aqui. Qualquer pequena mudança percebo imediatamente.

Quando de longe vi veículos parados, fiquei surpreso. O posto policial ficava muito distante.

Parei e pouco depois vi motoristas andando no acostamento. Tudo muito estranho. Faço este trajeto há mais de 10 anos, toda semana.

Desci e logo observei um restaurante a poucos metros. Muita gente indo naquela direção. Mesmo sabendo que o meu preferido ficava a mais de 100 km, resolvi conhecer.

Muito chique, e moderno demais para um caminhoneiro. Não quis nem ver os preços, certamente salgados. 

Mesmo sem jeito, fui em direção ao banheiro. Preocupado em não dar mancada, olhava atentamente, para cada detalhe. Chão muito limpo e um cheiro agradável que eu ainda não tinha sentido em nenhum lugar.

Ao passar por uma porta, meio aberta, vi uma mulher, de costas, que usava uma velha máquina de escrever. Fiquei intrigado, sem nenhum motivo. Há muito tempo que não me apegava por um rabo de saia. Talvez estivesse trabalhando demais.

Quando saí do banheiro, procurei passar propositalmente de novo pelo mesmo lugar, olhei, mas não a vi. Continuei andando para ver se a encontrava. Fui para fora do restaurante e nada. Então resolvi contornar o prédio na esperança de encontrar uma janela aberta, assim poderia ver o rosto dela.

Havia sim várias janelas. Olhando uma a uma, sem sucesso,  e a esperança diminuindo. A última era uma janela envidraçada, justamente a da sala onde ela se encontrava. Passei bem devagar, quase parando. Achei que ela percebeu. Parei logo depois, por um instante. Respirei bem fundo. Tomei coragem e pedi a São Cristóvão que me ajudasse.

Quando voltei, na vidraça da janela, havia um rosto lindo e uma das mãos aberta. Passei olhando, mas ela não fez nenhum movimento.

Lembrei que eu tinha no caminhão um chaveiro de um carro que me roubaram. Corri até lá. Peguei e voltei até a porta do escritório. Pedi licença. Ela me olhou com surpresa. Com dificuldades disse:

— Encontrei estas chaves no pátio. O dono poderá vir aqui procurar. Posso deixar com a senhora?

— Sim. Eu guardo.

Pegou o chaveiro e ficamos conversando. Linda, simpática, educada. Era tudo que eu nunca tinha visto antes. Parecia um sonho. Como todo sonho bom acaba de repente.

— Liberado….liberado…trânsito liberado

Alguém berrou.

Ela me olhou com tristeza. Então falei:

— Com muita tristeza, vou ter que ir.

— Vai com Deus.

— Amém. Que Deus me traga de volta.

Ela sorriu.

— Na volta, semana que vem, passo para saber se alguém apareceu para pegar as chaves.

Sorriu, novamente.

Quando me virei para sair, vi na parede um quadro muito bonito. Parecia um lugar à beira da estrada, por onde costumo passar e admirar. Porém mostrava uma noite com um clarão de lua que iluminava o céu.

Ao dar partida no caminhão, me veio a lembrança do quadro. Hoje vou passar por lá à noite.

Tristeza e uma pancada de raiva por não ter perguntado o nome dela. Como fui bobo. Um verdadeiro bocó.

Durante todo percurso lembrava-me dela, sua pele morena, olhos negros e misteriosos, que ao olhar para mim, dizia o que eu não entendia. O sorriso completava sua beleza natural.

Na semana seguinte a viagem de volta parecia mais demorada. Não havia congestionamento, mas toda hora, um “meia-roda”, na minha frente atrapalhando. Eu queria chegar cedo. No meio do caminho parei para almoçar. Aproveitei para tomar banho. Fiz questão de colocar uma camisa nova na cabine, para botar quando fosse falar com ela.

 

Quando cheguei, no final da tarde, temia que ela já tivesse ido embora. Troquei de camisa, olhei-me no espelho. Parecia que estava tudo nos conformes.

Ao entrar no restaurante fui direto à sala dela. Fechada. Trancada.  Dei umas voltas na esperança de encontrá-la. Fui até a janela envidraçada. Sala vazia. Já temendo pelo pior, voltei para ficar à espera na porta da sala. Continuava trancada.

Uma senhora de uniforme, parecia funcionária, vinha na minha direção. Perguntei:

— A senhora viu a morena que trabalha nesta sala ?

— Ela não veio esta semana. E só com ela ?

— Semana passada estive aqui e deixei um chaveiro com ela.

A funcionária me interrompeu:

— Está comigo. Um momento, que vou pegar.

Saiu apressada. Durante um minuto fiquei pensando em tantas coisas. Que diabos!

A funcionária volta com o chaveiro na mão. Peguei e olhando as chaves com vontade de jogar longe, ao inferno. A funcionária estica a outra mão e me entrega um envelope. Certamente, era um bilhete. Com medo de ler e demonstrar toda minha raiva, talvez até chorar, agradeci e fui para o caminhão.

“Meu amigo, espero que tenha feito boa viagem. Meu pai faleceu no dia seguinte. Minha mãe muito doente precisa de mim. Não pude continuar trabalhando. Se quiser falar comigo….a mulher da limpeza sabe informar onde moro. Que Deus te proteja.”

Desci correndo. Antes de entrar no restaurante vi a funcionária saindo. Olhou para mim. Pedi desculpa por não ter agradecido antes. Ela sorriu, como se estivesse diante de um adolescente que se arrependera de algo.

Explicou com detalhes como eu poderia chegar até a casa. Mais uma vez pedi desculpas e agradeci.

Saí agora mais apressado, entrei no caminhão. Rezei e pedi desculpas a Deus por ter blasfemado e pensado coisas ruins.

Fui seguindo as indicações. Entrei na pequena cidade. Encantado com as construções antigas e bem conservadas. Poucas pessoas andavam, calmamente. Aquele ar de tranquilidade.

 Facilmente, vi a casa branca com janela verde. Parei bem em frente. O barulho do caminhão parece que entrou dentro da casa. A cortina balançou como se alguém fosse abrir a janela.

Para minha surpresa foi a porta que se abriu. Não tive dúvidas, a minha Deusa desejada, linda e sorridente saiu e veio até o portão.

Desci e fui até ao encontro dela. Pelo olhar dava para notar a felicidade que a minha presença causava. Com um forte abraço me levou para dentro da casa. Uma senhora ainda não idosa, numa cadeira de rodas, me olhou com alegria. Sentei e conversamos por algumas horas. Tomamos água e café.

Quando falei que ia embora, ela pegou minha mão e me levou até a cozinha. Pediu para que eu ficasse para jantar. A empregada tinha preparado tudo antes de sair. Falou para eu sentar. Foi colocando as travessas na mesa e disse que a mãe só tomava um caldo.

 Enquanto jantávamos conversamos sobre nossas vidas. Contou que ela e o pai trabalhavam no restaurante, que era de um tio. Ela e o pai reversavam no trabalho, para que sempre um estivesse em casa junto com a mãe e a empregada. Porém na manha seguinte, àquela que nos conhecemos, o pai não acordou. Foi um momento terrível. Então resolveu ficar em casa, para estar mais tempo com a mãe.

Disse que era filha adotiva e que eles sempre a trataram muito bem. O pai era um homem muito bom, embora bastante rigoroso. Não deixava que ela saísse sozinha e muitas vezes recomendava que evitasse certas amigas.

 

 

 

Assim que me levantei da cadeira e comentei que tinha que ir, porque no dia seguinte, bem cedo, teria que entregar a carga, ela mais rápida que eu, se levantou, me abraçou, e, com uma voz suave e bem baixinho, pediu para ficar. Que me acordaria bem cedo com café pronto.

Não resisti. Está ideia já havia passado pela minha cabeça. Um desejo muito forte. Faltou coragem em mim, sobrou nela. Em toda minha vida jamais vi alguém com tanta força na decisão.

Não vi quando ela se levantou. Acordei com beijos e um cheiro de café quente. Levantei-me, tomei banho e fui para a cozinha. Durante o café contei para ela que assim que chegasse ao meu destino, iria procurar minhas duas filhas, que eram casadas. E comunicaria que depois de mais de 10 anos viúvo, encontrei uma companheira. Que se Deus, que a colocou no meu caminho, permitir, será até o fim da minha vida. Com abraços e beijos, nos despedimos.

Entrei no caminhão. Ao passar pela estação, vi um relógio antigo, pendurado na parede marcando 10:10. Ainda bem que estava parado.  Fui pensando em chegar ao meu destino em tempo e voltar a tempo para o paraíso que jamais pensei que existia. Então refleti.

Como um congestionamento pode mudar, tanto, em tão pouco tempo, a vida das pessoas.

 

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

    O cãozinho aventureiro Alberto Landi                                       Era uma vez um cãozinho da raça Shih Tzu, quando ele chegou p...