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terça-feira, 11 de abril de 2023

UM DIA DIFERENTE - Leon Vagliengo






UM DIA DIFERENTE

As aparências enganam, nem tudo é o que parece.

                                                                                                                               Leon Alfonsin Vagliengo

 

A porta da rua se abriu de repente e foi batida com grande estrondo. Luciana irrompeu a sala aos prantos, correu diretamente para a escada do sobrado, galgou-a em desespero, seus passos ressoando alto na madeira dos degraus, e bateu com violência a porta de seu quarto.  Os dois gatos da casa dispararam desesperadamente para a cozinha e pararam à porta espiando para a sala, apavorados, tentando identificar a repentina ameaça.

Clarissa não tinha ido trabalhar naquela manhã e aguardava na sala a hora de sair para uma consulta médica. Levou um grande susto com aquela invasão inesperada e, sem entender o que estava acontecendo com sua filha, ficou paralisada por um ou dois segundos, aturdida, mas logo reagiu e subiu também apressadamente, encontrando a porta trancada.

— Luciana! Abra a porta! O que houve?

Àquela hora, Luciana deveria estar ainda na primeira aula. Seu pai a levou para o Colégio e dali iria para o aeroporto, em viagem de negócios.

Luciana não respondeu, não abriu, não a atendeu. Clarissa podia ouvi-la chorando, um choro convulsivo, sem cessar. Insistiu muitas vezes, mas não conseguiu resposta. Enquanto tentava convencer a menina a abrir a porta, em sua cabeça as ideias mais trágicas se sucediam: Teriam sofrido um acidente no caminho? Onde está o Rodolfo? Por que não veio com ela? Ou será que foi abusada no Colégio? Meu Deus! Ela tem apenas treze anos! O que será que aconteceu? Justamente hoje que eu não pude ir com eles!

Ligou para o Colégio, disseram apenas que a menina não tinha entrado em aula.

O desespero já tomava conta de Clarissa. Havia mais de uma hora que estava naquela situação e a menina não respondia. Tentou ligar para o marido, duas, três, várias vezes, não conseguiu completar a ligação, ele devia estar no avião. Tentou abrir a porta com a chave de seu quarto, não serviu.

— Pelo amor de Deus, Luciana! Abra a porta!

Finalmente, Luciana a atendeu. Abriu a porta, olhou para a mãe com o olhar salgado pelas lágrimas, e a abraçou; um abraço apertado, sem parar de chorar e soluçar. Não dizia nada, apenas chorava.

Vendo o estado emocional da filha, Clarissa a aconchegou melhor no abraço e resignou-se a esperar. Ficaram assim por muito tempo, até que Luciana se acalmou um pouco, olhou para ela e falou:

— Eu te amo, mamãe. Vou ficar sempre com você. Nunca vou te deixar sozinha.

— Por que você está dizendo isso, Luciana?

Então, ainda relutante, entre soluços e entremeando longas pausas, ela começou a contar. Disse que logo ao entrar no Colégio sentiu frio e viu que tinha esquecido o casaco no banco do carro; voltou correndo para buscá-lo, deu tempo; seu pai ainda estava conversando com a mãe de sua coleguinha, aquela mulher loira, muito bonita, cujo marido havia morrido havia pouco tempo, num acidente; “aquela mesma que outro dia o papai elogiou e você ficou com ciúmes”, completou, hesitante. Interrompeu-se por um instante sem saber como prosseguir, e afinal, novamente chorando e segurando os soluços, contou de uma vez:

— Ele nem me viu abrir a porta do carro e estava dizendo para ela que hoje tinha se separado de você e não voltaria para casa. Eu não quis ouvir mais nada; peguei o casaco e corri para o Colégio, mas não aguentei e vim para casa.

Ao ouvir o que sua filha contara, Clarissa estremeceu. Terríveis recordações assomaram impiedosas à mente. Queria esquecê-las, mantê-las no limbo de sua memória, mas aquela situação as trouxe revividas com todo vigor, causando a mesma dor que sempre provocavam quando vinham à tona. O impacto foi muito forte, tão forte que Clarissa perdeu a consciência. Antes, ainda pronunciou o nome de seu marido;

— Rodolfo...

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Anthony fazia jus a seu nome esnobe. Era um homem bonito, elegante, sua postura aristocrática sem afetação provocava suspiros românticos em muitas mulheres, aguçando-lhe a vaidade; ambicioso, deslumbrava-se facilmente com tudo que exalasse luxo e riquezas. Por conta disso, embora não fosse rico, era incansável em frequentar amigos da alta roda.

No ambiente do lar, porém, era diferente: brincalhão e irrequieto, marido perfeito e pai carinhoso, embora não resistisse aos muitos convites dos amigos para festas e jogos no clube. A esposa Dulce já não o acompanhava mais como antes, porque tinha mais juízo e compreendia como era importante estar sempre presente para a filha Clarissa naquela sua fase tão bonita e melindrosa de pré-adolescente.

Nessas oportunidades Anthony ficava desassossegado, não hesitava em inventar desculpas para sair, mesmo sem a esposa. Muitas vezes eram argumentos evidentemente falsos, mas Dulce não dizia nada, fingia não perceber e o perdoava; não queria um clima de hostilidades em sua própria casa, e até achava graça ao considerar que aquele cabeça-de-vento cumpria direitinho o seu papel de pai e marido; admitia, então, que era justo que ele saísse para se divertir, mas ela já havia optado por assumir as suas responsabilidades de mãe e dona de casa de classe média.

Sabia, porém, que não podia confiar na palavra de seu marido.

Naquele carnaval Anthony foi mais ousado, anunciando, muito empolgado, que fora convidado pelos amigos para o baile do clube.  Iria a caráter e, após examinar inúmeras alternativas, encantou-se com a fantasia de Capitão Gancho, que ficou perfeita para ele. Dulce conhecia muito bem o marido que tinha e sabia que não conseguiria impedi-lo; entre contrariada e divertida, ainda observou, sorrindo:

— Só falta o navio, está perfeito. É você mesmo, sem tirar nem pôr! Pode ir, divirta-se com seus amigos, mas... tenha juízo! — Acrescentou, sem acreditar nisso — eu fico com a Clarissa. Ela convidou umas coleguinhas, vão fazer um bailinho no quintal de casa. Não venha muito tarde.

No salão do clube, pessoas muito animadas dançavam ao som alto de marchinhas ritmadas, algumas maliciosas, casais em atitudes atrevidas, muitas mulheres bonitas em trajes provocantes, erotismo no ar.

Uma loira bonita e muito sensual chamou a atenção de Anthony. Ele logo a reconheceu: era Laura, já se conheciam socialmente de outros eventos do clube. Anthony sabia que o marido dela havia falecido quatro anos antes num acidente automobilístico, deixando-a muito rica e carente, ainda bastante jovem aos quarenta anos de idade. A atração foi imediata e muito forte: esqueceu os amigos, convidou-a para dançar.

Ao longo da noite dançaram, beberam, divertiram-se bastante. Em certo momento, no calor da folia, Laura confessou para Anthony que já era apaixonada por ele havia muito tempo, desde quando o via em outras atividades do clube. Ouvindo essa revelação daquela mulher tão provocante e inebriado pelo ambiente contagiante de tentações em que estavam, ele não resistiu aos seus encantos e às benesses da vida de fartura e riquezas que ela lhe oferecia.  Era tudo o que ele sempre quis, sua ambição falou alto.

Anthony não voltou para casa naquela noite. Quando apareceu, já na tarde do dia seguinte, foi para informar que resolvera mudar de vida. Pegou apenas os pertences pessoais e não teve escrúpulos em abandonar Dulce e Clarissa.

Inconformada com o fim de seu casamento, Dulce compreendeu tarde demais que ele agiu como agiria o personagem da fantasia que escolheu, pilhando o tesouro que encontrou. Aquela caracterização revelava mesmo quem ele era realmente.

Foi assim que uma viúva loira e rica desfez o lar de Dulce e levou embora o seu marido, que a deixou ao desamparo, causando para Clarissa consequências emocionais devidas a uma juventude triste, carente do amor paterno.

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         Luciana não sabia o que fazer, nunca tinha visto alguém desmaiado.

Em sua inexperiência pensou as piores hipóteses, mas viu que a mãe respirava. Pegou o telefone e ligou para a avó, pedindo socorro.

Dona Dulce já imaginava o que tinha acontecido. Sempre que se lembrava que fora abandonada pelo pai, Clarissa perdia os sentidos por alguns momentos. Um médico lhe dissera que se tratava de cataplexia, uma perda de sentidos motivada por alguma forte emoção. O casamento feliz que sua filha tinha com Rodolfo parecia ter resolvido esse problema, havia muitos anos que ela não desmaiava. O que teria desencadeado novamente aquela reação? Pensou, preocupada.

Morava perto, chegou rapidamente à casa da filha e, como esperava, Clarissa já havia recuperado a consciência.  Por um instante se enterneceu ao perceber os olhos da neta Luciana ainda vermelhos como os de um coelhinho, e achou que ela tinha chorado apenas por causa do susto.

Ao ver a mãe, Clarissa sentiu-se amparada; apoiou a cabeça em seu peito e chorou sem nada dizer, provocando novo choro também em Luciana. Dona Dulce lhe acariciou os cabelos e não estranhou a fragilidade da filha, achava que sabia o motivo. Só não atinava em como ressurgira. Quase acertou, mas o personagem era outro.

Logo providenciou duas almofadas e disse a Clarissa que se deitasse de costas com as pernas elevadas, apoiadas nas almofadas. Isso a ajudaria a recobrar a boa circulação cerebral, consolidando sua recuperação. Providenciou também um chá de camomila quentinho, para acalmá-la.

Um pouco depois Clarissa já se sentia melhor, mas ainda um pouco desorientada. Fez um sinal para Luciana com o dedo indicador sobre a boca, para que não contasse nada a sua avó. A manhã já estava no fim, tinha perdido a consulta no oculista e estava com muita dor de cabeça. Telefonou para avisar ao chefe que não estava bem, não iria ao trabalho nem à tarde.

Dona Dulce cuidou para que as coisas voltassem à rotina. Fez o almoço, cuidou de algumas coisas da casa. Clarissa tomou um analgésico e dormiu até a hora da janta. Luciana foi para seu quarto. Tentou estudar um pouco, teria uma prova no dia seguinte, mas não conseguia se concentrar.

O restante do dia transcorreu monótono para elas.

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Eram mais de dez horas da noite quando ouviram bater a porta de um carro e em seguida aquela música italiana antiga, naquele assobio inconfundível.  Clarissa e Luciana o reconheceram de imediato e se entreolharam, surpresas. Revelava a presença de alguém sempre muito feliz e despreocupado, que conheciam muito bem. Mas não esperavam que ele aparecesse agora, muito menos assobiando.

Rodolfo abriu a porta e entrou na sala, abraçado a dois grandes pacotes. Foi direto para Clarissa com um sorriso que lhe tomava toda a face, e a beijou nos lábios antes que ela pudesse evitar. Entregou-lhe um dos pacotes e o outro para Luciana, que também beijou carinhosamente. Cumprimentou a sogra e lhe agradeceu por estar ali, fazendo companhia a elas.

— Deu tudo certo, o comprador gostou da proposta, negócio fechado! — Exclamou – e ainda consegui uma passagem de volta para hoje mesmo. Comprei essas lembrancinhas para vocês numa loja do aeroporto.

Incrédulas, Clarissa e Luciana olhavam para ele sem entender. Dona Dulce, que continuava candidamente sem saber de nada, ficou mais tranquila com a presença do genro.

— Agora que você chegou, vou para casa — despediu-se e saiu.

Clarissa fez discretamente o mesmo sinal de “psiu” para Luciana; e depois de pensar um pouco, resolveu comer pelas bordas para não queimar a língua.

— Você sentiu minha falta hoje de manhã?

— Claro, meu bem — mas você agora me fez lembrar que eu dei um fora terrível. Sabe a Dona Sonia, a mãe da coleguinha da Luciana? Ela perguntou por você e eu disse para ela – imagine só — que esta manhã nós tínhamos nos separado e eu não voltaria para casa. Ela fez uma cara de espanto que só vendo. Só então percebi o que eu tinha dito. Fiquei sem graça, pedi desculpas e esclareci que nos separamos porque você tinha uma consulta médica e eu estava indo para o aeroporto para uma viagem de negócios, só voltaria amanhã.

Clarissa olhou para Luciana, Luciana olhou para Clarissa, ambas de olhos arregalados. De repente a ficha caiu ao mesmo tempo para as duas e a gargalhada delas explodiu uníssona, espalhafatosa, estrondosa. Mais uma vez os gatos dispararam, assustados, para a cozinha.

Rodolfo olhava para elas, intrigado, mas teve que esperar até que recuperassem o fôlego para saber o que estava acontecendo.

Antes assim.

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