A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

VINGANÇA A QUALQUER CUSTO - Atividade Literária 2022/2023





ICAL — GINCANA LITERÁRIA INTENSIVA


Este exercício literário coletivo exalta a criatividade, as circunstâncias do trabalho em equipe, o treino de entendimento de texto, a aplicabilidade de ferramentas literárias, e a compreensão de que um texto não brota de um dia para outro, ele sempre carece de lapidação.

Início 16/11/22

Autores: Adelaide Dittmers / Hirtis Lazarin /

 Claudionor Dias da Costa / Hélio Salema / Alberto

 Landi / Henrique Schnaider / Leon Vagliengo

FINALIZADO (agosto/23)

 

 



 

 VINGANÇA  A  QUALQUER CUSTO

 

 

A TRAIÇÃO DE HELENA

FAMÍLIA CIPRIANO E FLORA

 

 

Helena e Américo eram muito queridos. Ele era fazendeiro, pecuarista, dono de cobiçada propriedade na região, toda cercada por rios, o melhor pasto estava ali no pedaço de terra da família Cipriano.  Helena era bonita, fazia alguns trabalhos voluntários para famílias carentes, tinha o sorriso sempre pronto, era educada e gentil. Há quem tivesse inveja dos trejeitos charmosos dela.

Flora, que nasceu numa das fazendas da família Cipriano, não teve tempo de ir para escola como gostaria, ficou apenas o suficiente para chegar ao final do ensino fundamental. Com o tempo, com exercício de leitura, ela aprendeu o básico da língua portuguesa, A caligrafia dela era de um nível de clareza, que fazia inveja aos demais empregados da casa.  Teve que aprender bem cedo a cuidar da limpeza, lavar roupa e cozinhar. Era uma garota curiosa, lia o caderno de receitas da patroa e os pratos iam brotando à mesa. E como diziam os patrões, ela era uma “locomotiva” de eficiência, rapidez nos cuidados da casa.

Após o casamento de Américo e Helena, passou a servi-los com muito carinho. Limpava, arrumava e cozinhava. O casal parecia ter momentos de grande felicidade, mas como ele viajava muito, Helena começou a se sentir sozinha.

E aí, começaram algumas suspeitas sobre a existência de certo amante, que fazia visitas noturnas quando Américo Cipriano viajava a negócios. Era o coronel Borges, o sujeito não tinha medo de ser descoberto, e frequentava a casa como se sua fosse.

A governanta via tudo, ouvia tudo, mas não falava nada. Não falava, mas anotava suas emoções e medos, suas desconfianças e descobertas, num diário que ela mantinha em segredo.

Uma manhã bem cedo, deu de frente com o amante da patroa na casa. Entreolharam-se com olhar de reprovação de ambos os lados. O olhar dela o excomungava. E ele foi embora no mesmo instante, mas com sorriso irônico nos lábios.

Flora tinha muita consideração pelo patrão “Ele não merece ser traído! ” — Queixava-se.

Ela observava tudo e se remoía.  Um ódio brutal por Borges, nasceu dentro dela. Ele tinha atitudes repulsivas, e muitas mentiras suspeitas. Então, ela, indignada com o amante da patroa, passou a “acompanhar” detalhadamente suas atitudes, passou a investigá-lo.

A governanta passou a sondar também a patroa, preocupada com o que poderia acontecer. Doutor Américo era um homem muito educado, bondoso, mas se enfureceria com a deslealdade. E, Flora, procurava demonstrar abertamente sua reprovação àquela traição.

Flora não gostava nada daquela ousadia do Borges, nem de sua prepotência, nem de sua índole. Também não aprovava aquela atitude de Dona Helena. Andava tão incomodada com os rumos daquela família, tanto, que se sentia no dever de colocá-la nos trilhos. Lembrava sempre que o Dr. Américo a chamava de “locomotiva” por ser muito despachada e por dar conta de colocar sempre as coisas em ordem.

Não há situação tão ruim que não possa piorar…

 

 

A TRAGÉDIA

O ASSASSINATO DE AMÉRICO

 

 

Numa manhã de verão, Américo, que chegara de viagem na noite anterior, nem ficou para o desjejum, e já saiu para a fazenda. Fazia sempre assim, mas desta vez havia um chamado para que ele fosse imediatamente. Tão apressado saiu que esqueceu o livro da contabilidade. Flora mandou o moleque Ezequiel montar um cavalo e levar o livro para o patrão. “O patrãozinho é assim mesmo, leva uma vida agitada de compromissos urgentes, e ter muitos afazeres é normal para ele, mas acaba esquecendo coisas pra trás. Vai logo, menino!”. Não demorou muito, o garoto já via a poeira do cavalo do patrão, mas ainda não o alcançara. Até que vislumbrou de longe um amontoado de gente numa briga, freou o animal antes da curva, não queria ser visto. É o bando do coronel Borges – constatou o garoto, recuando mais alguns metros. Quem será que está lá apanhando? – Pensou, curioso, o menino. Quando o entrevero terminou, ele seguiu adiante, e percebeu o cavalo do patrão num terreno mais aberto do campo, o patrão estava estirado na terra batida, todo ensanguentado. “Meu Deus!”. Voltou correndo e avisou Flora, que chamou a patroa, e ela avisou a polícia.

— Moleque, não conta o que você viu senão vão matar você, hein!

Foi assim a notícia que receberam na casa. Uma morte violenta, alguém disse. Tinha escoriações pelo corpo todo, sinais visíveis de linchamento. Mas, o Dr. Nereu, médico mais conhecido na cidade, atestou escoriações por um tombo que ele, possivelmente, levara do cavalo. Isso era muito estranho, pois, Américo era exímio cavaleiro, e Dr. Nereu não merecia confiança, uma vez que era médico do coronel Borges também. O Borges ainda teve a pachorra de ir ver a amante nesse mesmo dia. Disse que foi levar os pêsames. Talvez ele estivesse criando um álibi.

Sobre o assassinato de Américo, não se sabe como as investigações não se aprofundaram o quanto merecia, mas a verdade é que, até hoje, não foi considerado um crime, mas um acidente, mesmo com todos percebendo o que realmente aconteceu naquele dia. O menino Ezequiel foi poupado de ser testemunha para não ser perseguido pelo coronel. A pequena cidade interiorana ficou em polvorosa, pois os crimes por ali eram tidos como crimes domésticos, eram leves e não passavam de roubo de reses, ou insultos. Um assassinato era um evento de cidade grande. Um linchamento era coisa cruel demais.

Essa fatalidade abalou a governanta, mas, estranhamente, nem tanto a Dona Helena. Apesar do acontecimento trágico, Helena não chorou o bastante pela morte do esposo, rendia-se ainda aos cortejos de Borges, que frequentava a casa com regularidade, sem nenhuma cerimônia. Agora, mais que antes.

A empregada se tornou mais cautelosa, ficara um tanto circunspecta, mas muito mais atenta. Sabia que o assassino do patrão, era o tal Borges, que imediatamente passou a frequentar a casa como se fosse ele o proprietário. Tão descarado que até alguns afazeres ele ordenava para ela, no que ela recusava dizendo trabalhar para Dona Helena, não para ele.

Uns dois meses depois da morte de Américo, Flora estava na cozinha e pode ouvir claramente o casal em uma barulhenta discussão com ares de violência, ao Helena anunciar sua gravidez. Quando o Coronel Borges ouviu falar da gravidez, tornou-se hostil, gesticulava grosseiramente, uivando que não gostava de crianças. Flora tremia, iria lá defender Dona Helena se fosse necessário. Ficou postada no umbral segurando fortemente o cutelo. Dentro dela uma ira quase incontrolável. E, depois de muito alvoroço e insultos, sem mais explicações, ele se afastou. Saiu esbravejando e, depois disso, nunca mais o Coronel Borges apareceu na casa, desaparecendo da vida de Helena.

Helena se viu desamparada, ficou inconformada com aquela atitude áspera. Mas, ainda assim, o queria. Alguns dias depois ela ainda esperava que ele voltasse.  Esperou por muito tempo.

 

 

MATILDE

NASCIMENTO

 

 

Uma linda e saudável menina, nasceu poucos meses depois. Chamou-se Matilde em homenagem à avó, uma imigrante italiana que veio fugindo da guerra, misturada às tantas outras famílias. Tinha os olhinhos espertos e os cabelinhos avermelhados, como os da avó italiana.

A criança mudou o clima da casa, era disciplinada, cheia de curiosidades. Gentil e educada, Matilde cresceu se tornando uma menina muito estudiosa. Assim que começou a frequentar a escola, se destacou pela inteligência e dedicação aos estudos. E, à medida que o tempo foi passando, sua beleza juvenil foi desabrochando.

A convivência com a mãe era básica, sem grandes carícias. Mas com Flora, sua babá, o convívio era de grande amizade e confidências. Cuidava da menina como se fosse sua própria filha…

Na adolescência Matilde estudou na Capital, e voltava de tempos em tempos para um final de semana em casa. Flora e Helena bajulavam a menina com doces, laços de fita, até vestidos costuravam para a garota.

Aos dezoito anos, quando Matilde cursava o primeiro ano do ensino superior, veio o falecimento de sua mãe. Um baque sem precedentes. Não conheceu o pai, e agora com a perda da mãe, agarrou-se à Flora.

“Mas o que é isso? Tantas perdas importantes na vida dessa menina! ” — Choramingava a governanta. Veio-lhe o assassinato do patrão, a prepotência do coronel Borges, o abandono à Helena, ainda grávida. “Agora essa menina sem pai, nem mãe! ” — Repetia sem parar.

Flora bem que pensou em contar para Matilde que, ele foi amante da patroa. Que ele matou o Doutor Américo. Mas ponderou, aquele traste iria perseguir a menina. Então, não contou nada.

No final daquele ano, Flora precisou viajar, tinha que ajudar uma tia adoentada que morava em outra cidade.  Pediu à Matilde que não voltasse para casa, que permanecesse no dormitório da Faculdade até a formatura. “Lá você estará mais segura, menina”.

— Segura? Por quê?

— Preciso viajar para o interior, meus parentes precisam de mim. Não sei quando poderei voltar. Você ficará bem lá na Faculdade. Seu dormitório é ótimo, tem tudo que precisa, além de boas amigas. Se precisar de mim, mande-me uma carta. Naquele fim de mundo é tudo muito distante. Não se meta em confusão, garota. Assim que possível voltarei para cá.

E assim que Matilde viajou para BH, Flora nem esperou clarear. Amarrou um lenço na cabeça, guardou suas economias na bolsinha que Matilde lhe dera, ajeitou algumas peças de roupas na malinha, ajoelhou-se, rezou pedindo proteção para Matilde. Examinou a casa, as janelas, as portas, rodeou o quintal, e como tudo lhe parecia em ordem, mais do que depressa rumou para a estação.

Estava apreensiva de deixar a menina por tanto tempo na Capital, mas não tinha jeito. Isso a preocupava.

Lembrou do coronel, da maldade dele linchando o patrão na estrada da fazenda. Sentiu o coração saltar. Tinha ódio dele, e um plano na cabeça.

“Ela vai ficar bem na Faculdade” — pensava a mulher, insistentemente.

“Ela está cansada de ir e voltar” — Justificava-se. Isso a tranquilizava, poderia ficar longe por muito tempo.

Foi morar por uns tempos com a tia que já estava bem idosa, lá ela ajudava nos afazeres da casa e cuidava da mulher. Era raro receber alguma notícia da cidade. O tempo passou depressa, e a tia estava cada dia pior de saúde.

Dois anos depois, Matilde já estava de volta, já era uma professorinha, foi direto buscar emprego na escola da cidade. Preferiu não avisar Flora de sua chegada, não precisava atrapalhar a vida dela com a tia doente.

 

MATILDE VOLTA PARA CASA

AMOR A PRIMEIRA VISTA

 

 

Matilde acabara de voltar para casa, fazia alguns dias. A casa solitária, ninguém para conversar. Não imaginou que Flora demoraria tanto tempo com a tia.

Aquela noite haveria uma quermesse, e Matilde decidiu que iria à festa.

Talvez não reconheça ninguém por lá, mas me divertirei um pouco – Pensou.

Na idade em que o amor desperta, Matilde sentia-se sozinha e vulnerável, tudo foi muito intenso em sua vida. Gradualmente, aceitou o flerte claro de Francisco, mas percebeu com algum receio o flerte dissimulado do Coronel Borges, um homem bem mais velho.

Para o Coronel, era a primeira festividade que participava desde o falecimento da esposa Amélia.

E se encantou profundamente com aquela discreta moça ruiva. Vinha de uns tempos obcecado com a ideia de um novo casamento, pois considerava que um homem poderoso como ele, até chamado de Coronel, para ser respeitado precisava ter uma bela esposa.

Claro, era visível a diferença entre as idades, mas ela já era uma mulher adulta, parecia. E, ele, um homem ainda vigoroso, rico e respeitado em toda a região, considerando a si próprio um partido irrecusável. A moça, certamente, reconheceria seus méritos e teria interesse em um relacionamento sério com ele — planejava o coronel.

Voltou a examinar a moça que caminhava por entre as barracas. Certamente, era bem mais jovem que ele. Tinha a pele alva e cabelos ruivos, brilhantes. Destacava-se entre as demais. Decidiu abordá-la, mas, eis que chegou um rapaz antes dele.

O Coronel Borges, esperto como ele sempre foi, um homem de atitude, nunca perdeu uma briga, rapidamente, estabeleceu uma ligeira estratégia, aproximando-se do casal, tentando parecer simpático:

— É, meu rapaz, você tem sorte! Ela é a mais bonita moça desta festa, a mais simpática e atraente.

Ele então examinou o ar de lisonjeio da garota, e constatou que ganhou um round… Mas fingiu desinteresse: “Vocês são jovens, vivam a vida e o que ela lhes oferecer”, e continua, “Estou viúvo, e asseguro que a solidão não faz bem a ninguém. A vida tem muita coisa boa a nos proporcionar”. Analisa o rosto do rapaz, que demonstra receptividade…

A moça observou com ressalvas a ousadia daquele homem.  Ele percebeu que ela o analisava, então ele aproveitou a oportunidade e estendeu a mão para o rapaz:

— Borges, sempre ao seu dispor.

E o rapaz apertou sua mão vigorosamente: “Francisco, muito prazer! ”. Nesse momento lhe veio à mente que o Borges era bem famoso na cidade.

Ambos olharam para moça que, timidamente, estendeu a mão para Borges. “Matilde, prazer”.

Depois, voltando-se para Francisco, pensou “Este é um dia muito especial para mim…”

E os lábios dela, logo se abriram num terno sorriso que encantou o jovem Francisco. Tudo indicava que ali nasceria um relacionamento amoroso.

Tudo indicava que ali nasceria uma amizade entre os três…

 

 

AMEAÇA — PERSEGUIÇÃO — FUGA

 

 

Francisco e o Coronel Borges só pensavam em Matilde. Tornou-se uma obsessão, uma acirrada disputa entre os dois. O primeiro, jovem e atraente, engenheiro-agrônomo, herdeiro de uma propriedade muito produtiva, cheio de planos e com muita vontade de vencer na vida. O outro, um homem vivido, astuto e de muitas posses, capaz de proporcionar-lhe vida de princesa.  Mas, Matilde se rendeu aos encantos de Francisco, e em pouco tempo estavam morando juntos na casa dela, que ficava na cidade, já que a dele ficava na zona rural. Com ele, ela se sentia feliz e protegida. Uma proteção que sempre lhe faltou. A morte dos pais e a falta de irmãos eram um grande vazio que carregava. Ainda mais que sua babá estava longe, sem comunicação. E eis que surge alguém capaz de preencher essa lacuna e de proporcionar-lhe alegria. Ao lado dele, sentia-se realizada, como nunca. Passou a ouvir músicas, cantar e dançar pela casa. Regava o jardim, colocava flores nos vasos e a casa lhe sorria. Falavam de suas famílias, e Matilde falou de Flora, que voltaria assim que as coisas estivessem resolvidas por lá.

— Você vai adorar a Florinha, um encanto que está na minha família desde sempre, uma quase mãe para mim.

 

Quando Borges percebeu que o casal estava cada vez mais unido, passou a presenteá-la com objetos valiosos, mas a bajulação exagerada do Coronel não funcionava, e seu amor-próprio foi posto à prova. “Mas o que é isso, eu sou um coronel humilhado? ” — Doía-se. Justo ele que era o valentão, não podia perder, portanto, usaria métodos escusos para alcançar seus objetivos.

 

E a perseguição começou sem tréguas contra Francisco. Capatazes sondavam o casal e, perseguiam o rapaz de modo intimidativo e violento. Quando menos se esperava, apareciam do nada, exibindo armas e ordenando que a abandonasse. Tudo era feito de um jeito tão ardiloso, intimidativo, ameaçador e bem-planejado, que se impossibilitou juntar provas e denunciá-lo à Justiça.

Matilde precisa saber que cobra venenosa é essa víbora que finge ser cordeiro – pensava.

Certo dia, quando Francisco estava decidido a contar tudo para Matilde, queria que ela soubesse com quem estava lidando, ele foi surpreendido no trajeto de volta para casa, próximo da estação e foi, covardemente, espancado nas proximidades dos trilhos.

 

“Ou você desaparece do mapa, ou matamos vocês dois. Porque se ela não ficar com o Coronel, não ficará com mais ninguém! Então, fuja, rapaz! Desapareça para não morrer! E não conte nada para ela. Se ela não souber o que acontece, não correrá risco! ”

 

Seus passos seriam mais duramente vigiados se ali permanecesse, e seu destino já estava traçado. Não lhe restava outra alternativa senão desaparecer da cidade, renunciando ao grande amor da sua vida. Subiu para a plataforma, alcançou uma torneira, lavou-se. Tentava ordenar os pensamentos, os sentimentos. A respiração sofregava, os olhos lacrimejavam. Havia muita dor no peito, teria que abandoná-la, para o bem dela. Foi ao balcão de passagens, escreveu uma carta, e pediu que entregassem à Matilde.  O barulho ensurdecedor da frenagem da composição, agitou-o. Precisava mesmo partir. Olhou para a plataforma, os homens ainda o espreitavam.

E foi assim que, no silêncio do sol poente, desapareceu de sua cidade.

 

 

 

MATILDE E O CORONEL BORGES

 

 

Logo depois do desaparecimento de Francisco…Matilde se perguntava, o que fora feito de Francisco.  Quando ele partiu, ela o esperou por um longo tempo, contava com a possibilidade de chegar alguma notícia dele, mas essa espera foi em vão.  Foi à polícia, procurou amigos, e nada. Foi diversas vezes à fazenda da família dele, conversava com o gerente, e ninguém sabia de Francisco. Desabafava com Borges, que se tornara um grande amigo, afinal, ele a consolava e a animava. “Temos que aceitar as mudanças, a vida é feita de escolhas, Matilde” — dizia. — Justo agora que eu ia confessar-lhe minha gravidez – disse chorando.

— Ahn, você está grávida daquele moleque?

— Ele não é um moleque, é responsável e trabalhador.

— Responsável? Então onde está ele agora?

Borges tornou–se frequentador constante da casa da jovem, era gentil e compreensivo, até que um dia ele, emocionado, lhe confessou amor.  Matilde nem ficou surpresa. E, a solidão que sentia com o silêncio de Francisco foi aceitando que o coronel encurtasse suas rédeas. Não prometeu nada, não lhe dava nada, e ele frequentava sua casa.

Mas, com o passar dos dias, foi se revelando um homem possessivo, ciumento, intolerante e explosivo.  Não aceitava a gestação de Matilde. Queria que ela fosse morar com ele, mas ela estava decidida a ser mãe.

— Francisco é meu marido, Borges. Ele é o pai desta criança que vai nascer, e eu vou esperá-lo para sempre.

Cada fala de Matilde soava como um punhal no peito do coronel. O ódio que sentia por Francisco se avolumava.

 

 

 

A CARTA NAS MÃOS DE MATILDE

 

Uma manhã bem cedo, Matilde recebeu na casa, o gerente da fazenda do Francisco. Ele perguntou como estavam todos. Estava ressabiado. Olhou para a barriga dela e sorriu. Percorreu ambiente com os olhos. Pediu um copo de água. Perguntou se o Borges estava por perto. Ele não virá mais aqui. Então fez sinal de silêncio para Matilde, e lhe entregou um envelope aberto. É do Francisco. Nunca diga que recebeu essa carta, senhora.

— Do Francisco! Onde ele está?

E ao abrir o envelope viu que Custódio já a tinha aberto.

— Você leu?

— O envelope estava bem escondido no armário do guarda da estação. Ele temia que o coronel tomasse conhecimento dessa carta, e resolvesse punir a senhora, já que não podia punir seu marido.

Ela concordou fazendo um “sim” com a cabeça.

— Preciso ir. Não é bom que me vejam aqui. Se a senhora precisar de alguma coisa, pode contar comigo.

Disse e saiu para a rua sem olhar para trás.

Matilde ficou lendo de modo guloso o conteúdo da carta. Tomou conhecimento de que o coronel era um bicho venenoso. Não o queria mais por perto.

Na carta ele não dizia para onde viajaria, nem quando voltaria.

— Ele precisa saber que vai ser pai!

Então ela correu atrás de Custódio, segurou-o pela mão e disse:

— Diga ao meu marido que estou esperando por ele. Que nós estamos bem. O menino nascerá daqui a 30 dias. 

Custódio meneou com a cabeça, e seguiu em direção à praça, onde estava o automóvel. Seguiu com os pensamentos atrapalhados, e a garganta seca. “Aquele coronel desgraçado, não podia ter feito isso com o patrãozinho”.

Naquele dia, Matilde chorou muito. Francisco precisava voltar para casa.

No entanto, quem apareceu lá foi o coronel, mostrava-se mais e mais agressivo no falar com ela.

 “Não gosto de crianças, não quero nenhum pirralho me chamando de pai” – disse Borges dando murro na mesa.

— Pai? Não seja bobo. Ele jamais o chamará de pai. Você não é nada dele, e nem de mim. E, já está na hora de cortarmos esse vínculo, Borges. Volte para seus capangas que eu tenho uma gestação para curtir. Me esqueça.

Borges estremeceu. Não toleraria tal ofensa.

— Você não teme pela sua vida e pela vida de seu filho?

— O pior já aconteceu comigo, perdi meus pais e meu marido, estou só neste mundo, mas não ficaria com você nem que fosse o único homem deste planeta.

Disse e foi conduzindo Borges para a porta aos empurrões.

Ele a segurou pelos braços, tentou beijá-la à força, ela o empurrou com força.

— Fora da minha casa e da minha vida, seu cafajeste!

Ela chorava amiúde. Eu detesto você e sua gente! – Gritou lá de dentro.

Mais do que truculento, um cretino! — Sussurrava para si mesma depois que fechou a porta, dominada por um sentimento de raiva e decepção.

 

 

FLORA ESTÁ DE VOLTA

DURAS REVELAÇÕES

 

 

Flora ainda permaneceu com a tia, até sua morte. Depois disso, retornou à cidade e foi direto para a casa da família Cipriano, de onde havia saído. Lá, encontrou Matilde e se espantou. A jovem mostrava alegre, uma mulher feita.

 

Houve um abraço terno, demorado, e cheio de amor. Elas tinham muito a conversar. “Nunca mais sairei de perto de você, menina” Me conta aí, e essa barriga, quem é o pai dessa criança? Vem, vou fazer um café para nós”.

— Florinha, que alegria ver você! Me conta tudo, e sua tia? Eu também tenho muito para te contar...

Flora não a encheria de notícias tristes, disse apenas que sentiu muita saudade da menina.

A governanta ouviu toda a história de Matilde, e quando ouviu o nome Coronel Borges, Flora empalideceu. Era visível seu abatimento ao ouvir o nome do coronel.

— Mas, minha filha, essa criança é filha do coronel?

— Não, Florinha. Essa criança é filha do Francisco. Moramos juntos alguns meses aqui nesta casa, mas ele desapareceu de repente.

Flora, imediatamente foi levada ao passado quando veio a notícia do assassinado de Américo. Coronel tirou ele do caminho para ficar com Dona Helena.

Aquele maldito coronel é capaz de qualquer coisa! – Pensou em silêncio, franzindo o cenho.

Por outro lado, Flora estava feliz por ter encontrado Matilde. Emocionada, não parava de acariciar a barriga de jovem.  

Apesar de saber que não poderia interferir na vida da menina, Flora ainda fez recomendações:

— Não se aproxime jamais desse tal coronel Borges, ele é uma víbora, capaz de violência para conseguir o quer.

— Você conhece ele, Florinha?

— Conheço sim, ele não é homem pra mulher nenhuma, é traidor, um assassino. Não deixe que ele entre nesta casa, Matilde.

— Desgraçado! — Pensava, Flora, bufando de ódio.

— Sabe que estou de volta, Matilde, voltei para casa, e juntas vamos criar essa criança com muito amor. — Dizia com o rosto marcado de dor.

— Tome, leia a carta que o Francisco me escreveu no dia que teve que me deixar. – E estendeu o papel para Flora, que ao ler, mostrava-se incrédula.

Depois parou um instante como se estivesse buscando algo na história. Enfiou a mão na bolsa e de lá trouxe seu diário, e o entregou para a jovem:

— Sabe, minha filha, o coronel Borges assassinou seu pai, antes de você nascer. Ele e o bando dele. Ezequiel era um garoto ainda, e viu tudo. Não deu tempo de salvá-lo. Está tudo aí nesse diário, aí dentro está sua história.

— Meus Deus, o que está me dizendo, Flora!

— Não contei antes porque você ainda era uma criança, ia estudar longe, e eu tive medo do que pudesse acontecer com você. Guardei todos esses anos esse segredo. Ele e sua mãe eram amantes, ela estava apaixonada por ele. Mas ele era um miserável, e sua mãe sofreu muito. Quando ela lhe disse que estava grávida do Dr. Américo, o Borges começou a gritar com ela, avançou sobre ela, e eu peguei uma arma na cozinha. Eu ia matar aquele infeliz naquele dia.  Devia ter feito isso.

Enquanto Matilde estava focada na leitura do Diário das Verdades, Flora ia complementando com informações que não estavam lá “Menina, não culpe sua mãe pelos atos dela. Ela era uma ótima mulher”.

— Eu não posso acreditar que minha mãe se envolveu com esse homem, que traiu meu pai! Ninguém sabia de nada?

— As fofoqueiras da cidade desconfiavam. Mas, eu sabia de tudo, via e ouvia tudo, mas ninguém acreditaria em mim, uma empregada da casa.  Eu seria desacreditada, perseguida e considerada louca. E, você me conhece, não sou de contar nada para ninguém.

À medida que Matilde avançava nas páginas do diário, mais revoltada ficava. “Como esse homem pode cometer tantas barbaridades e ficar impune”?

— Só uma resposta justificaria essa impunidade: o poder do dinheiro! O dinheiro que compra os políticos, os médicos e a polícia.

Matilde chorava mansinho, com dor, com sofrimento pela perda de seus pais, pela vida tão desgastada da mãe que se dava a um homem que não valia a pena, um assassino.

As duas estavam aos prantos.

— E agora, aquele capeta, agora quer interferir na sua vida, menina! Por que não matei ele antes de você nascer!?

Flora estava inconsolável. E Matilde, agarrada a ela, se desfazia em lágrimas.

— Ainda dá tempo, Matilde. Ainda o farei!

— Não, Flora, não manche suas mãos. Ele vai encontrar alguém que o odeie tanto quanto nós.

Se tem alguém aqui que tem mil motivos para acabar com ele, sou eu. Mas não o farei, tenho um filho para cuidar, e espero meu marido de volta. Preciso de você, Flora, acalme-se, precisamos caminhar juntas.

Flora respirou fundo, tinha descarregado os segredos que lhe doíam tanto guardar. Levantou-se, foi a cozinha, logo voltou com um bule de chá e bolinhos. E ambas passaram a falar do enxoval do bebê.

VINGANÇA A QUALQUER CUSTO

A VOLTA DE FRANCISCO

 

 

Àquela hora da madrugada o silêncio sombrio ensurdecia as portas cerradas. A noite estava fresca, mas a neblina densa impedia de se enxergar com clareza. De repente, um latido não muito distante dali: “Hummm! Parece que não estou sozinho! ”, concluiu de imediato. Consultou o relógio “Tenho que me apressar”. Havia pavor dentro dele, pavor e urgência. Na cintura o Colt 32 que lhe fazia companhia desde que saíra da cidade. Os passos desconexos desobedeciam sua pressa. Era um agosto quando a primavera empurra o inverno para entrar em cena, numa ruela de poucas casas, ao lado da estação ferroviária.

“Sei que muitas foram as perguntas que deixei. Nunca pude respondê-las. Sofri e fiz você sofrer. Mas, hei de reparar os danos! ”.

As lembranças continuavam a dominá-lo, ora doces, ora trágicas, agora ainda mais intensas por estar na sua cidade. Lembrava bem da quermesse, foi lá que conheceu Matilde.

Ele era um jovem maduro, bem-apessoado, vestia-se distintamente, chamando a atenção das mocinhas, mas encantou-se com uma linda ruiva que transitava sozinha entre as barracas.

Ali brotaria um forte sentimento de paixão que mudaria suas vidas para sempre.

“O coronel, sujeitinho repugnante! ” Pensou.

As lembranças clarearam mais quando se deparou com as casas emparelhadas.  Não posso permitir que o ódio me consuma, tenho que acabar com o Borges para resolver minha vida, preciso ter frieza e esperar o momento adequado de agir.

“A carta, contei tudo para ela naquela carta”.

No dia de sua partida enviou um manuscrito para Matilde. Era uma escrita tumultuada, alvoroçada como o momento em que vivia, quando seu coração confuso sofria tanto por não tomar outra atitude.

“Naquele dia, eu deveria ter acabado com o infeliz! Mas eu estava com medo, aturdido, estava ferido e não queria que ela soubesse o que estava acontecendo. Foi uma partida sem despedida. Não, aquilo nem foi uma partida, foi uma fuga. Aquele maldito coronel! Disso me arrependo, deveria ter ficado e lutado pela mulher que amava. Não tive medo de morrer, meu medo sempre foi que algum mal fizessem à Matilde.”

 

 

DE VOLTA AO LAR

FRANCISCO RETORNA PARA A FAZENDA

 

 

Enquanto esteve fora, arranjou um bom emprego numa empresa de defensivos agrícolas, afinal tinha ótimas qualificações. O trabalho com o pai na roça de milho, estimulando a terra a novas culturas, tinha o levado aos estudos de Agronomia. Adquirira o dom de trabalhar a terra, passou a desempenhar sua profissão chegando a ter sua própria empresa de projetos de automação rural. Tinha herdado um recheado pé de meia, dinheiro não seria problema para ele. Frequentou o clube de tiro para melhorar sua qualificação, adquiriu um Colt 32 que planejava usar para resolver seu passado. Tinha pressa.

Não teve um dia que não desejasse voltar para Matilde, mas antes precisava se vingar do perverso Coronel, tirá-lo do caminho, e para isso teria que se impregnar da mesma maldade, do mesmo espírito daninho, planejar a vingança com sadismo.

Tudo é uma questão de oportunidade — pensava ele.

Embrenhou-se pela estrada vicinal a passos largos. De repente, se viu diante de sua casa, onde passou a infância e parte da adolescência. Foi ali que seu pai lhe ensinara a lidar com a terra, com as pessoas e com a vida. Não foi difícil transpor o portão. Um leve empurrão e ele se abriu devagar, rinchando nas dobradiças. Avançando por entre as gramíneas do jardim, chegou à varanda. “Que solidão, meu Deus! ” Através da vidraça das janelas se viam as molduras, retratos da família nas paredes. Seu pais estavam tão jovens e felizes naquela foto do casamento.

Francisco examinou o ambiente da estradinha, não havia ninguém, apenas um pio distante de uma ave solitária. Solitária como ele. Lembrou que quando menino, àquela hora seu pai o acordava para as ordenhas. Ouviu um mugido de vaca no curral mais próximo da casa. Arriscou uma olhadela através da cortina da cozinha, e percebeu que os animais estavam bem-tratados.  Esse Custódio é muito bom, manteve tudo em ordem sem minha ajuda – pensou.

Já começava a clarear, o dia já estava se abrindo, e as imagens já estavam nítidas, embora ainda sentisse o peso da alvorada silenciosa.   “Cá estou eu! Vim para concretizar meus planos. Vim em busca da minha felicidade. Mas, antes, acabo com aquele patife! Conseguirei viver com essa culpa, claro que vou! Porém, não conseguirei continuar vivendo com a culpa de ter sido obrigado a abandonar a mulher que amo, de ter me deixado escorraçar como um cão sarnento”.

Sentiu ferver o sangue nas veias e o pulsar do coração se avolumou.

Os olhos apertaram-se. Preciso encontrá-la! – E, de repente, pegou-se chorando. “Será que ela recebeu minha carta? E se não recebeu?!”. — Desesperou-se. “Se não recebeu, deve ter me odiado todos esses meses”… A cabeça parecia querer explodir.  Precisava ser frio, calcular cada passo de agora em diante para poder concluir sua meta. Tinha que ter cautela para não ser descoberto antes de concluir seu intento, as notícias correm… e, é bom que não saibam que voltei… mais do que nunca, precisava descobrir o paradeiro de Matilde.

Varreu com os olhos toda a sala. A casa toda tinha um aspecto tristonho, quase fúnebre.  Esta casa assim, desabitada, um colorido tristonho onde foi um ambiente tão feliz.

Enquanto, desolado, olhava aquele cenário vazio, se aquietou num silêncio profundo, deixando a alma mergulhada no pesadelo perturbador… E foi se acalmando, a tremedeira passou, e as ideias começaram a se organizar.

Lentamente, ele voltou à infância naquela propriedade conquistada com o suor de seu pai. Viu-se correndo por entre a plantação e os animais. Uma vistosa plantação de milho dividia as terras com algumas cabeças de gado. O gosto pela vida no campo, o prazer de cuidar do milharal, de ordenhar as vacas e de ajudar o pai nas tarefas tantas que a fazenda exigia, tudo veio à sua memória.

A família Fagundes não era rica, mas podia viver sem dívidas, ter certo conforto. “Que bons tempos foram aqueles! ” Viviam com simplicidade, mas o essencial não lhes faltava.  Estudara ali mesmo na cidade, e mais tarde em BH. Tornou-se Engenheiro Agrônomo.

De repente, o rosto contraiu-se ao lembrar-se da morte súbita do pai e da responsabilidade de levar a vida adiante com a mãe, quando ele era ainda recém-formado.  Foram anos de muito trabalho na lida da terra e trato dos animais, a mãe sempre frágil, adoentada.

Seus pensamentos voaram para o dia em que conheceu Matilde na festa da igreja “jamais esquecerei aquele dia”. Lembrou bem da paixão que os envolveu.  Franziu de novo a testa quando se lembrou do virulento Borges e sua falsa amizade. Borges se revelaria um odioso bandido ao ameaçá-lo de morte e expulsá-lo da cidade. 

Aos borbotões, essas memórias desfilavam pela sua mente. O ódio ao Borges o transformou num homem vingativo.

De repente a fome o incomodou…  Abriu os armários, não havia nada ali. “Preciso comer alguma coisa”. Levantou-se devagar.  As pernas dormentes de tanto tempo sentado e esquecido de seu corpo.  Caminhou meio trôpego até a garagem. Abriu a porta com esforço, olhando de um lado para outro para não ser surpreendido por ninguém. 

Ouviu passos vindo em sua direção, postou-se atrás da porta.

 

CUSTÓDIO – O BRAÇO DIREITO DE FRANCISCO

 

 

— Quem está aí? – Perguntou uma voz rouca.

Era o Custódio, o gerente da fazenda. Francisco se apresentou e o abraçou como se fizesse anos que não se viam.

— Mas, o que aconteceu que o senhor sumiu da cidade?

— Vou te contar tudo, Custódio, mas antes preciso comer alguma coisa, estou faminto.

— Vem, vamos lá em casa, Maria fez um pão, está quentinho. Vamos tomar um café.

E ambos seguiram por dentro da trilha do pasto. Francisco foi contando tudo que passara nos últimos meses.

— Ahn... A dona Matilde veio aqui um par de vezes procurar o senhor. Ela está na casa dela, está grávida. Dizem que é um menino.

— Grávida!

O sangue de Francisco, agora mais do nunca se embolava nas veias, precisava resolver tudo o quanto antes, precisava ter de volta sua vida.

— Mas, por que o senhor não veio aqui conversar com a gente? Arrumava uma turma e dava uma coça naquele velho, e nos guardinhas dele.

— Não é assim, o Coronel Borges tem as costas quente. Aqui nesta cidade ele é protegido.

— E o que o senhor pretende fazer?

— Olha, Custódio, eu estou decidido a matá-lo. Deus que me livre, mas sou capaz de fazer isso para ter a minha Matilde de volta.

— E como vai fazer isso? Se ele é assim como o senhor diz, ele está sempre guardado por aqueles capangas dele.

— Sim, menos quando vai pescar. Aos sábados ele fica o dia todo no rio, naquele ponto em que o rio fica mais largo, naquela pedra grande. Conhece?

— Conheço sim, senhor. Eu se fosse o senhor, não sujava minha mão com sangue daquele lazarento.

— Eu preciso acabar com ele, Custódio. Só assim vou poder viver de verdade.

— Seu Francisco, o senhor é moço, vai ser pai daqui a pouco, não vale a pena fazer uma coisa dessa e viver com a culpa remoendo sua cabeça. Vai atrapalhar sua vida.

Francisco balançava a cabeça positivamente, mas logo empinava o rosto:

— Mas aquele desgraçado precisa morrer. Senão, ele não me deixará viver em paz. Neste mundo não cabe nós dois, só cabe eu ou ele.

— Sabe, patrãozinho, eu tenho uma dívida impagável com o senhor seu pai. Ele salvou minha família, a gente estava morando na rua, meu pai trabalhava em Indaiá, na fazenda do Coronel Borges, e meu pai morreu num mangue que tem no pé do morro, então ele colocou nós tudo na rua. Minha mãe estava muito doente, e eu entrei em pânico. Um dia seu pai apareceu na loja de ferragens, eu estava sentado no chão na frente da loja, e eu fui pedir ajuda para ele. Sabe o que aconteceu? Ele mandou buscar eu e minha família, e colocou a gente para morar naquela casinha branca onde eu moro até hoje. Minha mãe precisava de médico e de remédios, coitadinha, e seu pai não economizou. Cuidou dela como se fosse a mãe dele. Tenho uma gratidão impagável com sua família. Eu cresci entre esses pastos, conversava com as vacas, e assistia tudo que seu pai te ensinava. Aprendi de tabela, e quando o senhor foi estudar fora, ele me ensinou a ser gerente. Casei quando o senhor foi para BH estudar engenharia. Seu pai foi um pai para mim. E eu não vou negar ajuda para você, que tenho como irmão.

— Mas, o que está me dizendo, Custódio? Não estou entendendo.

— Proponho que o senhor coma, tome um banho e vá descansar. A Maria vai lá arrumar seu quarto, trocar a roupa de cama, e o senhor vai dormir um pouco. Aproveita o sábado para colocar seus sentimentos em dia. Agir assim, no alvoroço do sentimento de ódio, sempre acaba não dando certo. A vingança é algo que precisa ser maturada, patrãozinho. Amanhã, o senhor vai procurar a dona Matilde, e pergunta pra ela o que ela quer que o senhor faça. As mulheres são muito inteligentes, o senhor vai ficar surpreso como elas resolvem as coisas, parece que elas têm a magia nas mãos. E, de repente, tudo vai parecer tão pouco....

Francisco sorriu, um gesto de ternura e agradecimento para aquele que cresceu com ele na fazenda.

— Hummmm que café cheiroso, Maria!

Devorou o pão de aveia que a Maria lhe serviu, e quando voltou para casa, observou que tudo já estava limpo e em ordem. Abriu a geladeira, e viu uma garrafa de água, um pedaço do pão, uma garrafa de leite, e café sobre a mesa.

Realmente, elas têm a magia nas mãos – Pensou enquanto ligava o chuveiro. Depois adormeceu profundamente. Quando acordou já passava das 6 da tarde. Levantou-se num supetão. Sobre a mesa já estava seu jantar. Era uma carne com legumes e um arroz branquinho.

Eis outra magia das mulheres, elas sabem do que precisamos...

 

 

VINGANÇA EXECUTADA

O CORONEL APARECE MORTO

 

 

Ao terminar o jantar, ouviu batida suave à porta, e deu com Custódio.

— O que houve, Custódio? Que cara é essa?

— Fui à cidade buscar umas coisinhas para sua casa, e lá corre a história que o Coronel Borges morreu com um golpe de foice ou algo assim. Quase arrancaram a cabeça do verme.

Francisco ficou teso com os pensamentos revoltos na cabeça.

— Quem fez isso, Custódio? Disseram quem fez?

— Olha, Seu Francisco, não tem uma pessoa nesta cidade que não tenha motivo para acabar com aquele bandido. Até os capangas dele podem ter feito isso. Fiquei sabendo que o delegado, que sempre foi emparelhado com o Borges, estava bravo com o coronel. Imagine o senhor que o Borges estava dando em cima da esposa dele. Tem um capanga dele que perdeu um filho faz um mês, e o coronel não deixou nem o pai ir no enterro. Qualquer um pode ter matado aquele infeliz.

— Preciso ter certeza disso. Se não o fizeram, eu farei.

— O senhor vai ficar aqui bem quieto. Na surdina. Na segunda-feira eu vou na estação “buscar o senhor” que vai chegar de viagem. Ninguém precisa desconfiar do senhor, mesmo porque o senhor nem estava na cidade. Entendeu, patrãozinho?

— Mas, e a Matilde? Estou fugindo de novo?

— Não, não está fugindo, está buscando sua vida de volta, e sua vida recomeça na segunda-feira quando o senhor vai lá encontrar sua mulher.

— Meu filho! Você mandou avisar que estou aqui!

— Claro que não. As mulheres são inteligentes demais, mas são, primeiramente, muito sensíveis. Ela viria correndo aqui, e aí a coisa ia ficar feia pro seu lado.

— Ela recebeu minha carta, sabia que fui escorraçado da cidade pelo Borges?

— Um dia encontrei o guarda da estação e ele me entregou a carta, pediu pra eu levar para a dona Matilde, e eu levei. Naqueles dias o coronel estava cortejando sua mulher, mas dona Matilde mostrou pra ele o caminho da rua. Ah, ela disse que se eu o encontrasse, era para dizer que ela e o bebê estão bem.  E que nasce o mês que vem.

Francisco estava aturdido com tanta notícia boa. Estava ansioso para vê-la. Mas achou que Custódio tinha razão. Esperaria até segunda.

Custódio, no dia seguinte foi à cidade e passou pelo velório. Olhou bem na cara do falecido, e disse para si mesmo: “Vá para o inferno, capeta!”. E saiu como quem não quer nada,

Ao chegar em casa, Maria disse que estava preocupada, tinha medo de ter exagerado na dose do sonífero que colocou no café e na água do doutorzinho.

— Colocou mais hoje? Isso mesmo, ele precisa dormir até segunda-feira.  Fui lá ver o patife do coronel. Está mesmo mortinho, mortinho.

— Mas, Custódio, não vai ficar se vangloriando por aí. Erva daninha a gente arranca mesmo, mas nem conta pra ninguém, não faz falta, só atrapalha.

Ele acenou com a cabeça. Realmente as mulheres são inteligentes e muito sensíveis.

Na manhã seguinte:

— Tá cheiroso o café, Maria!

— Foi coado agorinha, patrãozinho.

— Nunca dormi tanto em toda minha vida! Parece que fui drogado. Que estranho.

— O senhor estava esbaforido, cansado, nervoso, e quando deitou na sua cama, relaxou. Mas, hoje é segunda-feira, e...

— Hoje é segunda? Mas, o enterro do coronel?

— Foi ontem, doutor. O Custódio foi ver a cara do animal. Diz ele que estava mortinho, mortinho. Acho bom o senhor comer logo, o trem que vem de BH vai chegar às 11 horas. Custódio tá arrumando o carro para ir te buscar na estação.

— Esse meu irmão! – Falou e sorriu para Maria, enquanto devorava mais uma fatia do pão de aveia.

Ele levou o olhar para o pasto, precisava se recompor, estaria de volta à vida nas próximas horas.  Já não pensava no coronel, pensava na esposa.

— Eu preciso comprar um presente para a Matilde, flores por exemplo.

— O Custódio já comprou, tá lá no carro.

Nesse instante, Francisco sentiu que vida estava retornando para suas mãos. Viu Custódio limpando as rodas do automóvel.  Lembrou da história de seu pai ter acolhido e protegido toda a família dele. “Meu pai nunca se vangloriou disso, ele sempre fazia por amor”... Custódio tem um bom coração, vamos seguir juntos nossas estradas.

— Vamos, Francisco, não podemos perder o trem. – E riram.

Custódio pensou em tudo, no carro, uma mala de roupas e um ramalhete de rosas vermelhas.

— Viu as flores? O senhor trouxe de viagem para sua Matilde – Riram de novo.

 

 

UM AMOR MAIOR QUE O ÓDIO

 

 

Custódio foi até Indaiá, estação que antecedia sua cidade, e lá deixou Francisco com malas e flores, em tempo de pegar o trem de BH. De lá, ele seguiu para sua cidade, conversou com muita gente, disse que o patrão estava chegando da capital. E quando o trem parou na plataforma, Custódio tratou de fazer uma algazarra para que todos o vissem desembarcar.

Francisco ainda parou no café da estação e comprou uma água gelada.

— Estou muito cansado. Mas que calor está fazendo aqui, hein, Custódio!

E assim seguiram direto para a casa de Matilde.

No portão, Francisco chamou-a pelo nome, e gritou:

— Eu voltei, minha querida!

Matilde saiu em desembalada carreira, e se jogou em seus braços. Ela chorava e ele enxugava as lágrimas. Depois, as flores, o beijo, os olhares, a cumplicidade.

Lá de dentro saiu Flora e tratou de cumprimentar Francisco com um abraço apertado.

— Sabem da novidade, disse ela. Acabei de ouvir no rádio. Encontraram o coronel morto no rio neste sábado. Alguém atacou ele com um cutelo.

Todos mostraram-se perplexos. Menos Custódio que tratou de corrigi-la, não foi cutelo, foi uma foice...

— Como você sabe? Ela quis saber.

— Estive no velório dele, e esse era o assunto. Ninguém sabe quem foi. Pode ser qualquer um desta cidade....

Flora concordou com ele.

E todos entraram para apreciar o almoço que Flora acabara de servir.

Francisco e Matilde tinham muito que conversar.

A emoção do dia foi tanta que o bebê deu sinais de querer nascer ali mesmo durante o almoço. Num instante, estavam na Santa Casa. Flora estava enlouquecida de alegria. Enfim, a família estava unida.

Francisco e Custódio estavam ansiosos.

— Seu pai estaria muito orgulhoso de um neto, Francisco.

Logo chegou Maria, todos torcendo para um parto feliz.

Flora abraçou Francisco com muita ternura:

— Agora, vamos esquecer o passado. Temos um futuro de muitas alegrias pela frente. Quero estar viva para ver a casa cheia de crianças, hein!

E amor venceu o ódio..

 


EPÍLOGO

 

O ETERNO CORONEL BORGES


Aquele local afastado da cidade me assegurava uma grande tranquilidade e o isolamento que eu gostava de ter quando queria pescar. Apenas um leve rumor das águas do rio embelezava o silêncio que dominava aquele ambiente. Eu escolhia as tardes de temperatura amena, preparava minhas tralhas de pesca, e me sentava sempre à beira da mesma barranca do rio. Ali era um trecho em que as águas eram bem profundas, bastante piscosas. Lançava o anzol e deixava o tempo passar enquanto pensava na vida. De vez em quando um puxão na linha anunciava mais uma pequena vitória. Eu girava a carretilha e logo me regozijava em ver minha nova vítima, debatendo-se em desespero. Isso me trazia um sádico prazer.

Na última vez em que eu estava num desses momentos, esquecido de tudo, esquecido até da Matilde que me irritava com a sua insistência em querer procriar, ouvi um ruído atrás de mim. Não deu tempo de me voltar e já senti um golpe que quase arrancou o meu braço. Nem vi quem foi. Desequilibrado, despenquei da barranca e caí no rio, bati a cabeça numa pedra, perdi os sentidos e afundei. Não sei quanto tempo fiquei no fundo do rio, até que uma mão muito forte me agarrou e me içou para um barco.

Acomodado no barco, à minha frente um homem enorme, de aspecto grotesco, me dizia: Meu nome é Caronte, e o meu serviço é transportar pessoas como você para o destino que escolheram.

Em pouco tempo chegamos à margem. Inúmeras figuras nuas e repugnantes, em atordoante algazarra, cercaram o barco e me empurraram para o portal do inferno. Seus corpos de cor cinza-chumbo exalavam um forte cheiro de enxofre, seus chifres e rabos não me deixaram mais nenhuma dúvida. E então aqueles diabinhos me disseram que o fogo não destruiria a minha alma, apenas a faria arder para sempre, numa eterna purificação.

E zombaram de mim quando lhes disse “sou o Coronel Borges”.

Faço este relato póstumo para que sirva de alerta aos leitores de que, assim assim como acontecia comigo, também vivem como quem não acredita na condenação eterna...

2 comentários:

  1. Ficou muito boa a história. Acho que não precisa mexer em nada. Adelaide

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    Respostas
    1. As alterações foram muito boas, alterando a ordem dos capítulos e incluindo mais um personagem importante (Custódio), ao final resolvendo as pendências e dando uma boa sequência para a história.

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