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segunda-feira, 25 de outubro de 2021

APOSENTADO SEM ÂNGELA, COM ÂNGELA SEMPRE - Leon Vagliengo





APOSENTADO SEM ÂNGELA, COM ÂNGELA SEMPRE

 

Um conto que conta como e por que ele mesmo foi contado noutro conto.

Também, um conto do amor que ignora as fronteiras da morte.

 

Leon Vagliengo

 

Gustavo sempre foi um executivo de sucesso, graças a seu preparo e competência. Em sua brilhante carreira, desde muito cedo galgou cargos de chefia. Lider inconteste e sempre querido por seus funcionários, após mais de quarenta anos de bons serviços acostumara-se às vitórias, nunca havia sentido a decepção de um fracasso.

As fortes reprimendas que recebera de seu pai, quando não tirava notas altas na escola, ou quando cometia algum erro, foram muito úteis para o seu aprendizado e formação, mas deixaram marcas profundas em sua personalidade. Não suportava errar ou perder.

A aposentadoria lhe trouxe a oportunidade de realizar alguns sonhos, que antes ficavam fora de seu alcance por falta de tempo. Viúvo havia já três anos, sentia muita falta de sua Ângela, com quem desfrutara uma feliz cumplicidade por quase meio século.

Para fugir das recordações que tanto o machucavam e, também, para tornar mais cômoda a sua vida, agora ainda mais solitária, mudou-se para um pequeno apartamento, que mobiliou com muito cuidado para que lhe fosse confortável e de fácil manutenção, próximo ao parque da cidade, onde poderia encontrar distrações, fazer exercícios e, quem sabe, novos amigos.

        Enquanto ainda trabalhava, depois da viuvez, procurava alguma distração no lazer dos fins-de semana ou das férias, que sempre se restringia a distrações convencionais e momentosas por essência, como cinema, TV, espetáculos esportivos, almoços ou jantares em bons restaurantes, eventualmente alguma curta viagem; porém, nada que envolvesse compromisso ou continuidade. E sozinho, tudo ficava muito sem graça. Mas não era mais tempo para encontrar uma nova companheira, e nem queria. Ele e Ângela não tiveram filhos, e o seu coração ainda era todo para ela, que estava sempre presente em seu pensamento.

        Agora, com a aposentadoria, teria que escolher alguma atividade a que pudesse dedicar-se de verdade, em que pudesse colocar um pouco de si mesmo, liberar suas ideias, seu espírito; enfim, buscar alguma ocupação que lhe proporcionasse algum prazer pessoal para preencher o vazio que Ângela deixara. Esta nova condição de aposentado se afigurava para Gustavo um pouco assustadora, pela solidão que já pressentia. Tinha que encontrar o que fazer, como preencher o seu tempo. Com esse propósito, meticulosamente foi avaliando algumas possibilidades para organizar a sua nova vida.

Pensou na prática regular de esportes, por exemplo, mas aos setenta anos já não teria o vigor necessário para isso; em verdade, logo percebeu que seria muito conveniente adotar atividades físicas moderadas, que ajudassem a preservar o seu bem-estar, e, certamente, a idade já o aconselhava a não exagerar. Assim, optou por uma caminhada diária, entremeada por alguns exercícios adequados a suas condições de saúde.

        Viajar, também, seria uma ótima alternativa, especialmente para o início da nova fase. Mas impunha limites, especialmente os financeiros, e não poderia ser realizada em caráter permanente.

Ainda faltava encontrar uma atividade que ocupasse regularmente o longo tempo disponível de que agora dispunha.

Depois de muito cogitar, Gustavo pensou na possibilidade de dedicar-se a escrever. Seria uma maneira de ocupar o seu tempo e uma forma direta de exercer a sua criatividade, expor o seu pensamento, as suas emoções, os seus sentimentos. Um campo vasto, inesgotável, a ser explorado. Encantou-se com a ideia. “Quem sabe, um dia ainda escrevo as minhas memórias, escrevo sobre a saudade que sinto da Ângela, ou até um belo poema para ela”.

        Gustavo nunca havia antes se dedicado a escrever contos, histórias ou memórias, não tinha essa prática. No trabalho que deixara, até escrevia; dominava razoavelmente bem a gramática em suas concordâncias, na coerência de sua sintaxe, na lógica de suas frases e tudo mais, mas eram textos frios, correspondência comercial.

Imaginando que seria fácil a adaptação para a ficção, de início tentou. Tinha boas ideias, mas sentiu a dificuldade quando procurava colocá-las num texto: em suma, demorava muito para conseguir organizá-las numa sequência lógica e no final ficavam sem graça. Analisando os seus escritos, logo percebeu que neles faltava a emoção, faltavam os sentimentos. Eram, praticamente, descrições frias e pouco interessantes, como as cartas comerciais que escrevia quando trabalhava. Não produzia nada parecido com as peças que lia de bons autores. Nem de longe, como se diz. Mas não poderia desistir, isso era muito importante para ele. Precisaria de ajuda.

Após algumas pesquisas, encontrou um grupo que se reunia semanalmente para aulas de orientação sobre escrita literária. “É disso mesmo que eu preciso. Ângela me apoiaria, com certeza”, pensou emocionado.

Fez a inscrição.

Assim, Gustavo passou a frequentar aulas de escrita literária, em busca de noções e dicas que lhe proporcionassem o conhecimento básico para tentar realizar-se como escritor.

Não imaginava, porém, como seria desafiador. Constatou, na prática, que, a cada aula, após algumas boas dicas e orientações, a Professora dava um tema ao aluno e, como exercício de aula, a tarefa de encontrar uma história sobre esse tema em algum lugar do seu cérebro para escrevê-la em cerca de meia hora e apresentá-la, em leitura, à Professora e aos colegas. Esse era o método, que se completava com os contos escritos em casa para a avaliação, crítica e correção pela Professora.

O problema todo, para Gustavo, eram esses exercícios rápidos, em que se expunha no momento da leitura. Aula após aula, a muito custo, Gustavo rabiscava algumas palavras, mas nada que parecesse uma história, por simples que fosse, pelo menos em sua própria e exigente concepção. Ouvia as histórias escritas por seus colegas, algumas muito boas, considerando a exiguidade do tempo em que eram concebidas. Via que os outros conseguiam, ele não. Estava acostumado a vitórias sempre, mas agora sentia-se derrotado. E isso não cabia em sua personalidade.

Essa situação foi deixando Gustavo cada vez mais tenso. Sempre fora um vencedor, agora sentia-se um fracassado. Mesmo com o incentivo da Professora, que tentava tranquilizá-lo dizendo que aos poucos ele conseguiria, que seria só uma questão de dedicação e treino, não adiantava. Intimamente, já estava se considerando um fiasco em sua aspiração a escritor.

E a tensão só foi crescendo, dificultando ainda mais o seu desempenho. Até que, após uma das aulas em que não conseguiu fazer o exercício, chegou ao seu limite: “Que vergonha, todos estão percebendo que eu não consigo. Ângela ficaria decepcionada comigo, se soubesse os vexames que tenho passado”. Em verdade, vexames que só estavam em sua cabeça, mas esse pensamento mexeu profundamente com ele, dormiu muito mal naquela noite.

Em pesadelo, viu-se no palco de um auditório, havia acabado de ler a história que escreveu no exercício de aula. Com insuportável constrangimento via que os seus colegas, alguns de amizades tão antigas, e até a Professora, riam muito, riam sem parar, zombavam dele, porque a sua história era ridícula. Na porta desse auditório surgiram, então, várias pessoas que também riam e faziam coro com aquela monstruosa zombaria. Eram os Deputados... os Deputados!? Sim, os Deputados! Ele, a Professora, seus colegas e essas pessoas estavam todos no prédio da Assembleia Legislativa! Que vergonha!

De repente, fez-se um silêncio sepulcral. Todos se calaram apavorados quando apareceu aquele vulto etéreo, deslizando suavemente no ar. Era a sua Ângela, vestida toda de branco e chorando muito, um choro convulsivo, entrecortado por gemidos que pareciam vir do Além, porque ele, o seu amor eterno, estava sendo humilhado. Nesse momento Gustavo acordou assustado, agitado, com o coração batendo muito e forte, chorando pela vergonha que passara no sonho.

Aos poucos foi se acalmando, retomou vagamente a percepção de que estava em seu quarto, e viu que Ângela não estava lá, tivera um sonho ruim em que ela veio protegê-lo; mas “... será que ela não estava mesmo?...parecia tão real...” pensou, ainda em dúvida.

 Mais acordado, Gustavo levantou-se, foi ao banheiro, lavou o rosto; foi até a cozinha, bebeu um copo de água, acalmou-se de vez; então, já inteiramente consciente, reconheceu o estresse que as aulas provocavam nele, devido ao desafio do exercício. Não era do seu feitio, mas já havia alguns dias que estava pensando em desistir, não estava aguentando mais aquela tensão. Tentava não pensar nisso porque significaria o encerramento de seu sonho de escrever. Mas sofria. Sentia-se em divergência consigo mesmo perante a luta renhida travada entre o razoável, que eram as suas dificuldades como aluno iniciante, e as despóticas exigências de sua personalidade, que não tolerava insucessos. Precisava reagir.

Não era à toa que Gustavo conquistara o prestígio de vencedor. A sua tenacidade, a sua perseverança, a sua garra, sempre o mantiveram em combate até a vitória. Resolveu continuar, enfrentar aquele martírio.

As aulas se sucederam, os temores se sucederam, os exercícios se sucederam, e Gustavo, até em homenagem à memória de Ângela, continuou lá, na luta, mesmo com aquele sofrimento crescente devido a sua sensação de insegurança e incompetência. Em verdade, a batalha não terminara. Cada exercício feito era um grande tormento, mas também era um treino. Um dia esse esforço ainda lhe traria frutos.

Naquela tarde, uma nova aula. Desde algumas horas antes, a tensão já tomava conta de Gustavo. Era uma inquietação incômoda e persistente, um misto de temor, ansiedade e angústia, que ele buscava disfarçar, não poderia revelar. Sentia que não seria compreendido, achava que aquele sentimento era apenas seu, devido ao seu modo de ser.

A aula transcorreu normalmente, como sempre. E quando veio o exercício, inesperadamente veio também uma inspiração. Gustavo resolveu escrever sobre um aluno de escrita literária que tinha um temor crescente pelos exercícios de aula, porque não conseguia fazê-los e ficava, a cada insucesso, com mais vergonha da Professora e dos colegas. Contou tudo, até o pesadelo. Era ele mesmo, era a sua história. Como a conhecia bem e sabia toda a sua sequência, desta vez não foi tão difícil escrevê-la, o que fez rapidamente, no prazo estipulado.

Depois de ler o seu trabalho para a Professora e seus colegas, descobriu, pelos comentários solidários que ouviu, que ele não era o único a temer os exercícios de aula; eles também os temiam e sentiam-se inseguros, a sua história criou uma oportunidade para a revelação.  E a boa receptividade que os seus companheiros tiveram ao escutá-la, foi, para ele, o incentivo definitivo.

No sorriso divertido e carinhoso da Professora, finalmente o atestado de uma vitória.

Gustavo, tal como um menino, sentiu-se aliviado, entusiasmou-se com esse primeiro sucesso, renovou a sua autoconfiança e não teve mais dúvidas em continuar. “Ainda serei, sim, um escritor. Lá no Céu, Ângela, certamente, ficará orgulhosa de mim, como sempre”, pensou, feliz e sonhador.

Ninguém entendeu quando o ouviram dizer, sorrindo, desligado de tudo e absorto em seus pensamentos, sem nem perceber que estava falando sozinho:

Imagine, então, quando eu fizer um poema para ela!

 



Assalto ao Metrô - Adelaide Dittmers

 


Assalto ao Metrô

Adelaide Dittmers

 

As pessoas com ar cansado lotavam a plataforma da estação do metrô.  Depois de um exaustivo dia de trabalho não viam a hora de chegar em casa.    

Na boca do túnel subterrâneo, a luzinha do trem apareceu e todos aglomeraram-se em diversos pontos para conseguirem entrar e talvez arrumar um lugar para sentar.

Quando o metrô parou e as portas automáticas abriram-se  foi aquele avanço.  A gentileza e a educação jogada no lixo.  Os vagões ficaram cheios.  O trem saiu da estação na disparada costumeira e entrou pelo escuro túnel.  Alguns passageiros de pé, deitavam a cabeça sobre os ombros, outros empunhavam com uma das mãos os celulares.  O balanço do trem desequilibrava alguns mais desprevenidos.

De repente, um homem gritou:

— Isto é um assalto.  Joguem os celulares e carteiras no chão e nem pensem em se mexer.  Qualquer movimento, atiramos.

Muito assustados, deixaram cair os celulares e as carteiras no chão.  Ao procurar de onde vinha a voz, depararam-se com cinco homens com armas apontadas para eles.  Um estava em uma extremidade do vagão, dois no meio deles e outros dois na outra extremidade.

O medo tomou conta de todos. Ficaram tão imóveis, que nem pareciam respirar.  As faces empalideceram e os  olhos cheios de terror.   Uma mulher, com uma criança no colo, apertou-a contra o peito.

O homem gritou novamente:

— Quando o trem parar na próxima estação.  Fiquem bem quietos.  Ninguém sai.

Dois dos assaltantes começaram a recolher os objetos do chão e colocá-los em grandes sacolas de plástico. 

A composição chegou à estação e como o vagão estava lotado, só um homem forçou a entrada e logo foi rendido. Seguindo caminho, o trem pegou sua velocidade normal.

Rapidamente, os assaltantes colocaram o resto dos objetos roubados nas sacolas.

Os passageiros pareciam congelados pelo pavor. Apenas olhavam uns para os outros, como se procurassem, em silêncio, apoio mútuo.

Na estação seguinte, os ladrões desceram e caminharam calmamente para não despertar suspeitas.

Um homem então gritou:

— Não entreguei meu celular.  Disfarcei e coloquei ele dentro da calça, caso eles revistassem meus bolsos.  Estou ligando para a polícia, informando a estação em que desceram.  Esses bandidos vão pagar!

As pessoas começaram a falar todas ao mesmo tempo.  A revolta explodiu pelo vagão. Uma mulher chorava: o salário de doméstica estava na carteira.  A criança percebeu a tensão e também começou a chorar alto. A confusão se espalhou por todo o lado.  O homem do celular então gritou:

— Calma pessoal! Vamos descer na próxima estação, vamos ficar juntos.  Vou avisar a polícia onde estamos!

Enquanto isso, os assaltantes subiam pelas escadas rolantes da grande estação, que tinha três andares.  A satisfação pelo sucesso do roubo brilhava em seus olhares.  Estavam tranqüilos.  Ao chegar ao andar, que os conduziria à saída, tiveram que percorrer um corredor comprido, com várias lojinhas ao redor.  Um deles parou para comprar cigarros.  Devagar seguiram seu caminho, conversando com naturalidade.

No entanto, quando chegaram próximos a escadaria que dava para fora foram surpreendidos por um grande número de policiais, que olhavam atentamente para a multidão que se encaminhava para a saída.  Um deles viu as grandes sacolas e chamou a atenção dos outros.

 Os ladrões perceberam o movimento e sentindo o perigo correram na direção oposta. Os policiais correram atrás deles. Uma grande e perigosa caçada começou.  As pessoas, ao ver isso, encolhiam-se pelo corredor. 

Um dos assaltantes olhou para trás e atirou.  Os policiais reagiram e um perigoso tiroteio ecoou pelo lugar.  As pessoas refugiaram-se nas pequenas lojas e os policiais gritaram para elas:

— Abaixem, um policial gritou,

Aturdidas e confusas, encolhiam-se, não acreditando no que estava acontecendo.

Um dos bandidos foi atingido e caiu morto.  Um policial foi ferido.

A polícia desceu pelas escadas, numa corrida desabalada e conseguiu cercar os quatro homens.  Um dos policiais saltou por cima da mureta e caiu de pé na escada rolante, alcançando-os por trás.   Encostou o revólver nas costas de um dos ladrões.

— Levantem as mãos e larguem as armas!  Ordenou.

Os homens muito nervosos obedeceram.

Ao pé da escada, os outros policiais estavam esperando. 

— Mãos na cabeça.  Gritaram e os agarraram.

Muita gente curiosa parou para ver a rendição dos bandidos.  Os guardas, porém, os dispersavam, mandando seguirem seus caminhos.

Os criminosos, então, foram levados para a delegacia.  Lá foram revistados, interrogados e depois de várias verificações, o delegado chocado descobriu que dois deles faziam parte da corporação.

Honesto e sério, sempre ficava furioso ao se deparar com esse lado podre da polícia.  Não se conformava de que homens que tinham o dever de proteger os cidadãos, passassem para o lado do crime.

Cansado pela longa jornada, levantou-se, vestiu o casaco e foi para casa.  Mais um dia tempestuoso vencido, pensou.  Como seria o dia seguinte.  A grande cidade era imprevisível e desafiadora.

 

 

 

 

 

 

 

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