A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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quarta-feira, 27 de março de 2024

O caracol e a borboleta. - Hirtis Lazarin

 




O caracol e a borboleta.

Hirtis Lazarin

 


O jardim estava festivo e cheirava a flor. Afinal de contas, já era primavera.

O caracol arrastava-se, cuidadosamente, na grama verde e bem cuidada em direção ao amontoado de folhas juntadas pelo jardineiro.

A fome era maior que tudo. Maior que a girafa, maior até que o elefante.

Mas não tinha pressa. Carregar uma casa nas costas exige calma e esforço, e a natureza sabe escolher os mais fortes para determinada missão. 

 Ele sentia muito orgulho de ser do jeito que era.

De repente, aparece uma borboleta. Suas asas eram um misturado de amarelo e azul. Linda de viver sob os raios de sol. 

Leve e ágil feito uma pluma, ela voava pra cá e pra lá entre tantas rosas e jasmins. Parecia uma dançarina. Escolhia as flores mais apetitosas. Era muito néctar pra uma borboleta só. 

Depois de tantos voos e já bem alimentada, viu o caracol e observou seus movimentos. A lentidão do molusco incomodou-a e, num ímpeto, gritou: 

— Caracol preguiçoso! Se continuar assim, não vai sobrar nada pra você. O mundo de hoje é muito competitivo. Vence o mais rápido, o mais esperto.

— Nasci assim. - Respondeu.  Não podemos alterar o que a natureza fez. — Resmungou o caracol. E continuou o seu caminho, bem tranquilo, sem se influenciar pelo comentário maldoso.

Não satisfeita, acrescentou:

— Sempre vence o mais rápido, o mais esperto. Eu voo pra todos os cantos e vejo coisas que você não vê.

— Ok, mas a democracia permite que cada um pense como quiser. Não se preocupe comigo.

A borboleta não se convenceu e continuou atormentando o pequeno molusco.

E ele seguiu cantando feliz da vida. Conhecia suas limitações, convivia com elas e sabia como lidar com todas.

Catarina, uma menina desastrosa, entrou correndo e, quando passa pelo jardim, deixa cair, pra todos os lados, um balde cheinho de água. 

Um desastre!

A borboleta, desprotegida e frágil, morreu afogada. Morreu sem saber o que aconteceu. 

E o caracol, rapidamente, encolheu o pescoço e se guardou dentro da sua concha.

 

MORAL DA HISTÓRIA: “Todos nós temos limitações e vale respeitar a limitação do outro”

 

 

 

 

Dody, o barquinho aventureiro - Vanessa Proteu

 



Dody, o barquinho aventureiro

Vanessa Proteu

 

Era uma vez um barquinho destemido que gostava do que lhe fizesse medo, do que fosse radical. Certa vez, numa madrugada fria, ele se soltou do píer e se lançou mar adentro. Para ele, era um desafio enfrentar as agruras do oceano bravio, ainda mais tendo a lua por testemunha.

Iupiiiii! 


Gritava o barquinho ao sentir o sabor gelado do vento. Tudo ia muito bem, até que de repente:

 Plaft! 


Bateu em algo que o deixou meio tonto.

— Dody, você está bem? - Perguntou a lua que, nesta madrugada, resolveu ficar mais próxima do mar para assistir ao balé das ondas e acompanhar de perto as peripécias desse travesso barco.

Dody sacode a cabeça para se recuperar do susto e, ao olhar à sua volta, se surpreende com um enorme chafariz.


Chuaaaa!!!


Era uma baleia imensa cujo barulho era assustador e ela tinha uma revolta que chegava a ser tão grande quanto o seu corpo.

Nosso amigo aventureiro, apesar de amar suas fugas pelo vasto oceano, desta vez sentiu medo e enquanto se esquivava dos violentos golpes, tentava entender o motivo do ataque, afinal já havia encontrado outras baleias em seus passeios noturnos.

— O que é isso, dona Baleia? Por que está me atacando?

— Meu nome é Lili. Estou apenas defendendo meus filhotes, Mel e Vick.

— Ohhh, não sabia que seus filhotes estavam por aqui. Desculpe-me, Lili.

— Vá embora e não volte mais aqui.

Assim, Dody voltou para o píer quando o dia já estava amanhecendo. No fim da tarde, porém, enquanto Dody admirava o pôr do sol, viu que um dos filhotes de Lili estava preso numa rede abandonada de pesca.  Não pensou duas vezes e lá foi nosso barquinho destemido para tentar ajudar. Empurrou de um lado para o outro e não conseguia soltar o Vick dos fios de nylon que o prendiam. O bebê-baleia chorava e Dody ficou desesperado, pois uma densa tempestade se aproximava. O vento soprava forte, vuuuuu! Dody era levado de um lado para o outro, não conseguia se manter inerte. E o oceano ficava cada vez mais bravo com os céus. Lili veio correndo, quer dizer, nadando rapidamente em direção a Dody, porém dessa vez, não para atacá-lo, mas sim para ajudar seu filhote que estava preso.

Ela pediu para o barquinho que jogasse a sua corda. Assim, ela envolveu o bebê-baleia e pediu para que Dody o puxasse, e a rede finalmente se desprendeu, libertando Vick.

Lili ficou muito grata pela ajuda de Dody e, a partir desse dia, ele ganhou novos parceiros de aventura.


ESTRELA-CADENTE. - Helio Salema.

 




ESTRELA-CADENTE.

Helio Salema.

 


Alexia é uma menina ativa, gosta de saber de tudo, perguntas não lhe faltam. Certa noite, enquanto aguardava a chegada do seu pai, estava muito ansiosa, mais do que o normal.

Assim que o pai entrou na sala, ela correu em sua direção, abraçou-o e já foi fazendo a pergunta que tanto lhe incomodava:

— Pai, o que é uma estrela-cadente?

O pai, embora cansado, logo respondeu:

— É uma estrela que cai do céu.

— É verdade que onde ela cai tem um tesouro cheio de ouro?

— Sim. Tem sim.

— Mas onde fica esse tesouro?

Surpreso com tantas perguntas, ficou um tempo a meditar:

— Você vai descobrir assim que for dormir.

 

Parecendo satisfeita, embora muito pensativa, permaneceu em silêncio enquanto o pai cuidava de outras coisas.

 

Logo após o jantar, foi escovar os dentes e se dirigiu para o quarto, desta vez, sem que ninguém ordenasse.

 

Na manhã seguinte, ao acordar, correu para o quarto dos pais, assustando-os com seus gritos:

— Pai… Pai, a estrela me mostrou o tesouro.

Ele esticou o braço e puxou a filha para junto de si:

— Conta pra mim, onde fica o tesouro.

— Atrás de uma parede. A estrela batia com suas pontas, Toc…Toc…Pum…Pum…. Até que fez um buraco. Quando ela parou, eu olhei lá dentro, estava cheio de ouro.

— E onde fica essa parede?

— No banco em que você trabalha!

 

CRISTINA! - Dinah Ribeiro de Amorim

 



CRISTINA!

Dinah Ribeiro de Amorim

 


Cristina abre os olhos. Acorda. Olha ao redor...

Onde estou, o que aconteceu?

Está numa cama, imóvel, mal consegue se mexer. Parece um hospital.

Alguém entra, uma enfermeira que se espanta ao vê-la acordada e sai rápido para chamar o doutor.

Cristina, mil perguntas lhe vêm à mente. Tenta emitir algum som, e lhe vem um som gutural incompreensível.

Um cirurgião entra no quarto e dirige-se, carinhosamente, a ela.

“Como se sente. Alguma dor? ”

Ela, num grande esforço, responde: “Mal consigo me mexer. O que aconteceu? ”

O Dr. Álvaro, responsável pelo caso, pergunta-lhe: “Não se lembra de nada? ”

— Sofreu um acidente antes de chegar em casa, quebrou várias costelas, teve forte batida na cabeça e esteve inconsciente por quatro dias. Só conseguimos avisar a família, os amigos, quando a polícia fez a busca através das placas do carro.  Tem lembrança do que aconteceu?

Cristina, atordoada, não consegue se lembrar...Nem do acidente, nem de quem é. Amigos, família, nomes, tudo estranho para ela.

O médico, experiente, responde que é normal o seu estado, pois mal acordou para o mundo. Sai, deixando-a descansar.

Ela fecha os olhos e nem percebe a enfermeira que lhe aplica uma injeção.

Adormece novamente.

Acorda, no dia seguinte, e acontece o mesmo ritual. Reconhece que está no hospital. Nada responde à enfermeira e ao médico sobre o que lhe aconteceu. Não sabe quem é, como vive, como se chama?

O Dr. Álvaro, preocupado, avisa-lhe que irá receber a visita de uma policial, mas que não se preocupasse, seriam perguntas rotineiras.

Entra no quarto uma senhora de meia idade, fardada, que se apresenta como Delegada Clara Sobral. Com delicadeza, pergunta-lhe se poderia responder algumas questões sobre o acidente que sofreu.

Cristina franze a testa, nervosa e afirma que não se recorda de nada. Soube do acidente através do médico. Sente-se melhor dos ferimentos, mas sua memória continua apagada.

A Delegada, compreensiva, pergunta-lhe se está em condições de ouvir como foi encontrada.

Cristina sente-se mal, mas responde sim, tem necessidade de saber quem é, o que lhe aconteceu, como era sua vida e o que será agora.

A Dra. Clara conta-lhe que vinha pela via Rodrigo Pereira, talvez em direção à sua casa, perdeu a direção do veículo, que se desviou e tombou à esquerda, lançando-a fora. Foi um verdadeiro milagre não ter perdido a vida. Estava desacordada, por sorte, foi socorrida a tempo por uma equipe de resgate que passava no local.

A delegada, com a desconfiança costumeira, continua: “ Já teve algum problema ao dirigir? Que se lembre? Não encontramos em seu organismo nenhum vestígio de álcool, droga ou outra substância. ”

Cristina permanece em silêncio e depois pergunta:

— Ia para casa? Era cedo ou tarde? Como sabe onde moro? Não consigo me lembrar! Tenho família? Com quem moro? O que faço?

Clara, compadecida, aceitando a amnésia temporária da moça, afirma-lhe que é uma mulher rica, a maior acionista de uma firma de Seguros, única herdeira do pai falecido. Mora em uma bela residência, acompanhada da tia, Antonieta, irmã de seu pai, de setenta e oito anos. Possuem uma auxiliar, Alice, que mora nos fundos da casa, com a família. Ao saber do acidente, procurou estudar o caso, principalmente quando encontraram seus pertences. Tudo indica que foi um acidente mesmo, mas... e a delegada, ao ver o rosto pálido de Cristina, sobrecarregada com tanta informação, para de falar e chama a enfermeira.

Cristina demonstra um cansaço e depressão súbita. O Dr. Álvaro tem que intervir e solicitar o fim da entrevista.

Passam alguns dias e o estado da moça melhora. Sente-se mais disposta, mais atenta, olhos mais abertos. O médico pergunta se está em condições de receber a tia, estava ansiosa para vê-la. Cristina responde sim, embora não se lembre de seu rosto, nem da sua existência.

Entra no quarto uma senhora de olhar simpático e amoroso, aflita para vê-la. É de uma simplicidade elegante, cabelos levemente azulados, presos num coque. Acompanha-a, Alice, a cuidadora da casa, mulher baixinha e robusta, que sorri feliz ao avistar a patroa acordada. Pensou que tinha morrido.

Abraçam Cristina com cuidado, temerosas de machucá-la, vendo-a ainda bastante enfaixada, mas demonstram muita alegria em poder vê-la. A tia Antonieta enxuga rapidamente uma lágrima, mal contida pela emoção que sente.

Ambas perguntam do seu estado, se já está em condições de voltar para casa.

Preferem cuidar dela pessoalmente, colocando uma enfermeira na residência.

Cristina alegra-se com a visita delas, com o carinho que demonstram, mas, no íntimo, tem medo, aflição, por não as reconhecer. Sabe que será difícil a volta para casa, sem memória de nada.

Ao término da visita, para ela exaustiva, o Dr. Álvaro entra no quarto e encontra-a aos soluços, chora copiosamente.

— A memória volta aos poucos, diz-lhe.

Sabe, no íntimo, que é arriscado, qualquer afirmação, cada caso é diferente, único. Melhor deixá-la descansar mais alguns dias. As fraturas se consolidam, mas a memória não.

Durante a estadia no hospital, aparecem alguns senhores que trabalham com Cristina e procuram o Dr. Álvaro para saber do seu estado. Qual é o diagnóstico e quando terá alta. Parecem bastante preocupados, estão sob a sua direção na empresa e não sabem como agir. 

O médico sente-se na obrigação de revelar que sua falta de memória o está preocupando, acha um pouco cedo a alta.

Os senhores olharam-se espantados e decidiram voltar nos próximos dias. Quem sabe, ao vê-los, conversar sobre o trabalho, a ajude a lembrar-se.

Um deles, o mais jovem, afirma ser primo de Cristina, do lado materno, Osvaldo. Deixa um cartão com o médico para ser avisado. Aparenta maior preocupação que os outros e o médico acha que é o parentesco.

Mais uns dias de hospital e Cristina quer ter alta, voltar para casa. Habitua-se com as visitas da tia e pede ao médico para explicar-lhe o seu estado. Sente que ela e Alice a ajudariam a lembrar-se, aos poucos, de tudo.

O Dr. Álvaro consente, mas antes da alta, a delegada Clara pede para vê-la mais uma vez e, talvez, encerrar o caso.

A moça, aborrecida, esforçando-se para retomar a vida, recebe de má vontade mais uma visita da polícia.

Clara, mais simpática que de costume, cumprimenta-a pelo restabelecimento e pergunta se a memória sobre o acidente voltou.

— Sinto decepcioná-la, doutora, mas, ainda não consigo me lembrar do passado. Vou tentar viver com isso. Só sei como foi o acidente pelo que me contou. Não lembro nem do carro que tinha.

A delegada entrega-lhe um cartão com telefone particular e promete atendê-la, se precisar, em alguma emergência. Mostra-se solícita e conta-lhe que se preocupou com algumas fotos do carro que viu, por isso insistiu em falar-lhe, mas, diante da situação atual, deseja-lhe sucesso e sorte. Dará o encerramento do caso.

Cristina suspira, aliviada e, esperançosa, aguarda a tia Antonieta e Jonas, o filho de Alice, que virão buscá-la. Uma enfermeira do hospital, Helena, é contratada para ir junto.

A calma aparente de Cristina convence Dr. Álvaro a dar-lhe alta. Só ela sabe o esforço que terá à frente, no novo ambiente, sua antiga moradia.

Jonas dirige devagar e explica a Cristina todas as variações do trajeto. Cuidadosamente, evita passar pelo lugar do acidente.

Cristina percebe que se afastam do bairro central do hospital e entram numa região de ruas mais calmas, com residências maiores e bonitas. Espanta-se quando o rapaz abre os portões automáticos da maior delas e para na entrada.

— Chegamos, afirma a tia Antonieta, pedindo a Helena para ajudá-la a sair. Lembra-se um pouco da casa, minha filha? Foi tão do seu gosto! Cada detalhe tem sua escolha. Aos poucos irá se refazer e lembrar de tudo.

Para Cristina, muita beleza, conforto, mas novidade. Parece entrar numa casa nova. As salas, a cozinha, os jardins, nada desperta a memória. Helena sobe com ela ao quarto, cheio de flores. Falam que é a sua predileta, margarida. Ela agradece, acha-as bonitas, só que não se lembra de tê-las visto. Chama sua atenção uma foto, em cima da cômoda. São dois idosos, sorridentes, sentados num banco do jardim. Tem a impressão que olham para ela. Pergunta à tia:

— Quem são?

— Seus pais, minha filha. Sua mãe morreu cedo, aos setenta anos. Que Deus a tenha! Seu pai, querido irmão, viveu dez anos viúvo, teve um infarto, há dois anos. Deixou todos os bens para você.  

— Não tive irmãos? Pergunta Cristina.

— Não, responde a tia. Parece que sua mãe não podia mais ter filhos. Só você. Mas teve outra criança na casa, o filho de uma irmã de sua mãe que seu pai ajudou a criar, adotou-o quase como filho. Você gostava dele como se fosse irmão. Viviam juntos. Deve aparecer para vê-la. Chama-se Osvaldo e trabalha também na firma.

Cristina sente-se cansada. É muita informação. Quer deitar e dormir. Continuariam a conversa mais tarde. Desconhece tudo e ao falar no trabalho, a preocupação aumenta. Diretora de uma empresa grande, com vários funcionários?

Não é capaz!

Com o tempo, ela se acostuma e aprende a gostar da casa como uma turista que vai a um bom hotel. Bem tratada, de aparência saudável, o amor da tia e empregados fazem milagres. Está quase pronta a receber seus funcionários e retomar a função. Continua sem lembranças, mas disposta a aprender e começar de novo.

Numa tarde, seu primo Osvaldo aparece. Esforça-se para recebê-lo e acha-o carinhoso, simpático, principalmente quando conversam sobre o escritório. Sente que o rapaz será um bom aliado à sua volta, explicando-lhe tudo o que fazia.

A tia Antonieta, que escuta um pouco a conversa, tem a ligeira impressão de que Osvaldo a investiga, a estuda, para saber o quanto se lembra do assunto. Mas, Cristina, ao ouvi-la, não dá importância. Sabe que não se lembra de nada!

Na manhã seguinte, Osvaldo aparece para levá-la ao escritório. Cristina, elegante, em seu terninho sóbrio, como convém a uma diretora, depara-se com um prédio majestoso, arquitetura moderna, e sobem até o último andar, onde ficam as dependências da Diretoria.

Procura aparentar calma e desembaraço, cumprimenta todos, com a indicação do primo. Recebe palavras gentis de boas vindas e dirige-se à sua sala, acompanhada de Irene, a secretária, e Osvaldo que irá inteirá-la da situação. Devido ao acidente, a firma caiu em leve descrédito, perdeu mais do que lucrou.

Cristina soube, então, o principal trabalho que fazia. Estabelecer o crédito. Aumentar as vantagens de cada cliente assegurado e arrecadar futuros sócios. Os diplomas em Comunicação e Administração teriam que lhe valer agora, mas, e a memória? Estudar tudo de novo? Por enquanto, representa.

Para conhecer o assunto, pede a Osvaldo que a leve até a Contabilidade da firma. A responsabilidade é presente na realidade atual.

Osvaldo tenta impedi-la, afirma que é cedo para se incomodar com o trabalho, mas diante da insistência, a acompanha.

Meio contrariado, apresenta-a a Osmar, o contador chefe, trocando com ele olhares significativos. Cristina, que após o que lhe ocorreu, aprende a observar tudo, percebe que há entre os dois um certo tipo de entendimento.

Osmar, após os cumprimentos de praxe, preocupa-se em mostrar-lhe que houve realmente uma queda no faturamento mensal da firma, mas nada que indique falência. Com sua volta, acredita na normalização de tudo. Não haverá necessidade da venda de algum imóvel ou ações, como pensou.

Cristina se espanta e preocupa-se muito.

— Como chegamos a essa situação tão rápido? Pergunta aflita. Não fiquei tanto tempo fora, hospitalizada. Já havíamos discutido sobre isso, antes? E olha para o primo, interrogando-o.

— Na verdade, sim. - Osvaldo responde. Talvez esse aborrecimento tenha lhe causado o acidente. 

A moça vai para casa, no final do dia, repleta de papéis sobre a contabilidade, disposta a ler com calma e estudar, no escritório do pai junto aos seus livros.

Tia Antonieta, ao vê-la, se assombra, teme que possa passar mal. Liga ao médico e pergunta se o excesso de trabalho pode piorar a falta de memória. O Dr. Álvaro tranquiliza-a. Pode ser que ajude a se lembrar aos poucos o que esqueceu.

Na verdade, Cristina, ao estudar a situação da firma, começa a pensar friamente no assunto e comparar as entradas e saídas mensais, olhando os números. Felizmente, a leitura, a escrita, o aumento e a diminuição dos ganhos, para ela, é de um entendimento mecânico, consegue entender. Acontecimentos do passado estão apagados, mas como realizar determinadas ações, no presente, tem domínio.

Suas idas e vindas ao escritório, conversas com os empresários experientes, discussões sobre a situação atual, dão ânimo e otimismo aos funcionários que a tratam com o antigo respeito.

Osvaldo, o primo, não a deixa dirigir o carro. Funciona como secretário, chofer, auxiliar, preocupado e amigo, solícito em qualquer acontecimento imprevisto. Cristina deposita nele a confiança e a amizade que necessita nessa fase da vida, contrário à tia Antonieta que desaprova tanta intimidade.

O tempo passa, a atuação no trabalho melhora e Cristina sente, às vezes, algumas lembranças repentinas sobre determinados assuntos, como se já os conhecesse ou já os tivesse visto.

Costuma estudar todas as noites e refazer a Contabilidade da firma até altas horas, não se preocupando muito com a situação presente, mas com os meses passados.

Numa dessas madrugadas, nota que, em determinado mês, do ano anterior, consta a retirada de uma quantia em dinheiro, sem indicação ou recibo do destino. Após isso, a mesma quantia é sempre retirada, sem explicação ao que se refere. Preocupada, pensa em deixar os papéis numa pasta e discutir, no dia seguinte, com Osmar e a Diretoria.

Osvaldo, ao buscá-la, nota seu olhar triste e preocupado e pergunta, aflito, se está bem?

— Tenho trabalhado muito e preciso tirar umas dúvidas na Contabilidade, responde ela. Nada de anormal, por enquanto.

O primo observa-a, mas não acredita que a saúde mental mude. Que a prima volte a ser o que era, hábil e inteligente, diretora de todos. Na verdade, ambiciona uma nova eleição e ser o Diretor Geral da Seguradora. Com ela ao seu lado, claro.

Conversando com Osmar, Cristina apresenta os papéis antigos e ele não sabe responder sobre essa quantia retirada. Pode ser erro de digitação da secretária Irene.

— Mas como não influiu essa retirada no lucro do mês? Responde ela.

— Acho melhor falar com Irene, doutora. Deve ter feito algo errado.

Irene é chamada e, muito pálida, limita-se a responder que não é contadora, só digita o que mandam. Nunca reparou direito nos números.

O boato no escritório chega até a Diretoria e todos, admirados, se entreolham, preocupados.

Cristina ouve, entre eles, a conversa:

— Como uma mulher, doente, sem memória, descobre uma coisa dessa? É preciso averiguar. Todos nós temos responsabilidade nisso. Ficamos prejudicados. Quase à falência.

Cristina tranca-se em sua sala e não recebe ninguém. Estuda como resolver a situação. Parece caso de uma investigação profunda, policial. Mas envolver o nome da Seguradora, do seu pai, de algum inocente. Como fazê-los acreditar nela, recém-saída de um hospital? Pedir ajuda a quem?

Osvaldo bate insistentemente à sua porta. Nem a ele quer atender.

Como insiste muito, atende-o e afirma que está bem. Logo irá para casa. Não precisa esperar por ela.

Anoitece, e ela decide dirigir o carro sozinha, dispensa até o motorista.

No trajeto para casa, já o conhece bem, não percebe que é seguida por outro carro. Quando entra na via Rodrigo Pereira, vem à memória o seu acidente e, instintivamente, olha para o espelho retrovisor. Percebe um carro escuro, atrás dela, quase colado, que vai empurrá-la fora da estrada. Desvia rápido, e o outro foge em disparada.

Trêmula, retoma a direção e consegue chegar em casa.

Tia Antonieta e Alice, alertadas por Osvaldo, esperam sua chegada, à porta. Passa rápido por elas e se dirige ao quarto, queixando-se de cansaço.

Preocupadas, querem chamar o médico, mas ela afirma que não precisa. Quer só dormir!

Com o choque, Cristina recupera a memória. Conhece o carro escuro, mas não lembra de onde. Abre a bolsa para pegar um cigarro e acha o cartão da delegada que esteve no hospital, Dra. Clara Sobral.

Telefona para ela e pergunta se pode atendê-la. Diante de tantos casos, Clara não a identifica, mas quando cita que havia perdido a memória e agora lembra, a delegada se põe à disposição.

A delegada Clara vai até a casa de Cristina, na manhã seguinte. Inteirada dos acontecimentos, confessa que o acidente anterior sempre lhe deixou com suspeitas, mas como não havia nenhuma prova, nenhuma queixa, arquivou o caso. Na batida, as fotos do carro mostravam um afundamento da parte traseira, o que aparentou ter sido empurrado para que ela se desviasse e tombasse. Com certeza, a sua vida deve estar em perigo, outra vez. Precisará de um policial para sua segurança e colocar a empresa sob auxílio de um perito em investigação contábil, também de conhecimento policial. Ela se encarregará de providenciar tudo. Por enquanto, deve se comportar normalmente e ocultar de todos a volta da memória. 

— Continue a aparentar dúvidas sobre as atividades do escritório. Nenhum suspeito deve saber que consultou a polícia.

Cristina, mais aliviada, arruma-se para ir ao escritório e aguarda o policial disfarçado, Tomás, que será o novo chofer e secretário. Para todos, um novo funcionário ou atendente hospitalar, nos momentos atuais.

Tia Antonieta preocupa-se com seu abatimento e nervosismo, acha melhor não trabalhar por uns tempos. Cristina quer mesmo afastar-se, sua vontade é sumir de todos os problemas, fazer uma longa viagem, mas, agora, necessita estar atenta, salvar sua vida e resolver a situação da empresa, descobrir o culpado, o causador de tudo. Lembra-se de seu pai. Repete o que lhe dizia: Coragem!

Continua a trabalhar, normalmente, escutando vários boatos, inclusive sobre a presença de novo funcionário na firma, maior gasto, principalmente se for mesmo auxiliar hospitalar. Uma prova de sua incompetência para lidar com os assuntos. A necessidade de votarem em pessoas mais hábeis e pedirem seu afastamento, torna-se urgente.

Osvaldo anima-se com isso, mas Cristina disfarçada, apresenta-se cada vez mais ativa e inteligente, principalmente quando contrata o fiscal para a contabilidade, a mando de Clara, Dr. Josué.

Semanas vão passando e Josué é bastante hábil em suas atividades. Faz uma investigação de todos os funcionários, dos diretores da firma, todos que se relacionam com as atividades comerciais. Apresenta a Cristina que o sumiço do dinheiro, todo mês, não entrava nas declarações mensais. Era retirado com autorização, grande soma, mas ainda não sabia como.

Após os dados de cada um, descobre que a maioria, entre eles, enfrentou dificuldades, sendo Osmar e Osvaldo os que mais deviam dinheiro a estranhos, dívidas de jogo. Irene, a secretária, era amante de Osmar.

Cristina, muito espantada, nunca desconfiou do primo, jogador e devedor de grandes quantias. Sempre achou que era a única pessoa que podia confiar. Quase lhe conta tudo a respeito da conversa com Clara.

Faltava a prova final, o destino do caminho desse dinheiro.

Josué obriga Irene, que sempre nega as digitações falsas, a confessar para onde vai o depósito desse dinheiro? Descobre que é para uma conta temporária, em determinado banco, em nome sempre de um estranho, disposto a aceitá-la, em troca de uma parte.

Cristina e Josué se espantam da habilidade deles. E ninguém percebia. Ou a maioria sabia?

Osvaldo e Osmar não aparecem para trabalhar, assim que sabem que Irene está sob investigação.

Cristina, muito aborrecida e nervosa, resolve ir para casa mais cedo, sob a segurança de Tomás.

Tomás recebe um chamado urgente e, embora estranhe, vai atender, deixando-a guiar sozinha.

Quando entra na via que a leva para casa, nota novamente o carro escuro que a segue e, quando vai encostar nela, para atirá-la longe, lembra-se que aquele carro é de Osvaldo, seu primo. Ele quer matá-la e ser o dono de tudo. Sua herança iria para ele.

Impressionada, tenta um desvio, mas sente que ele a impede. Quando acha que será seu fim, ouve sirenes de polícia de vários lados, que o impedem, e, apavorado, inicia uma fuga desvairada. Perde a direção e joga o carro num barranco, caindo morto em lugar dela. Teve ele o fim que desejou a ela.

 

 

Muita movimentação, muitos dias de averiguação e inquérito, muitas modificações na empresa, sendo Irene e Osmar levados a julgamento e Cristina tentando levantar a Seguradora do pai, auxiliada por Diretores competentes, que permaneceram.

Os dias voltam a ser normais e tranquilos, podendo Dra. Clara Sobral, dar, finalmente, encerramento ao caso que sempre lhe despertou suspeitas.

Cristina, mais feliz, recuperada de seu apagão mental, planeja, agora, uma linda viagem ao redor do mundo, sonho antigo da Tia Antonieta e seu, ambas loucas para viverem aventuras diferentes.

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