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segunda-feira, 10 de abril de 2023

Marcas que não se apagam - Adelaide Dittmers

 


Marcas que não se apagam

Adelaide Dittmers

 

Do pequeno barraco pendurado no morro despido de verde, gritos estridentes cortavam a noite escura.

Um menino de uns dez anos tampava ou ouvidos, acocorado atrás de uma pequena mesa feita de ripas de madeira sem cor.  Os olhos fechados e mudos de terror. O choro sacudia seu corpo franzino.

Na cama tosca encostada a uma parede precária, a mulher debatia-se tentando desvencilhar-se das pancadas e pontapés do companheiro bêbado.

De repente, a criança levantou-se e se jogou contra o pai, num assomo de desespero, socando-o com seus bracinhos frágeis. O homem o empurrou com violência e ele se estatelou no chão. A mulher soltou um berro e tentou acudir o filho, que chorava descontrolado, mas foi impedida pelo homem enlouquecido, que pegara uma faca e a ameaçava, encostando a arma  no peito da pobre mulher.

Nesse momento, a porta foi empurrada com força e dois homens entraram e seguraram o desvairado, tirando-lhe a faca das mãos.

— Você está louco, Severino!  Ia matar sua mulher!  Olha esse menino!

— Saiam daqui! Severino gritou com a voz enrolada pela bebida.

Os homens o jogaram em um banco.  De sua boca saia uma baba malcheirosa.  Os olhos vidrados não conseguiam se fixar nos invasores.

Josilene, que caíra sentada na cama, levantou-se devagar, atordoada,  tentando manter-se de pé. Os lábios sangravam. Vergões espalhavam-se pelo seu corpo. O olhar doído procurava o filho, sentado em um canto.  Com passos lentos e indecisos chegou até ele.  Os dois se abraçaram.  Um dos vizinhos disse:

— Vem Josilene.  Hoje você e Josué dormem em casa.

Ela acedeu com um movimento da cabeça e seguiu-o como uma sonâmbula, puxando o menino pela mão.

O pequeno lançou um olhar de medo e de raiva ao pai, que agora soluçava a bebedeira.

Deitado em um colchão velho, o pequeno custou a adormecer e foi sacudido por pesadelos a noite inteira. Uma manhã cinzenta acordou-o. Vozes alteradas chegaram-lhe aos ouvidos.  Reconheceu a voz do pai, que exigia a volta da mulher.  Apavorado, cobriu a cabeça com  o lençol velho e desbotado. A mãe dizia que nunca mais voltaria para casa.  Subitamente, a porta do barraco foi fechada com estrondo pela vizinha e amiga de Josilene.   Ele sentou-se e ouviu a mãe dizer, que iria embora dali, que estava cansada de apanhar e com medo de ser morta pelo companheiro.

 

Mais tarde, aproveitando a ausência do truculento Severino, mãe e filho retiraram do barraco os poucos pertences e deixaram o lugar.

Atravessaram a grande cidade até chegar a um subúrbio longínquo.  Lá vivia Joana, uma grande amiga, que viera com Josilene do Nordeste, muitos anos atrás.  Muitas vezes ela pedira à amiga para deixar o marido violento e vir morar com ela, que morava sozinha em uma casa simples, que conseguira com muito trabalho.  

Quando Joana abriu a porta, assustou-se com o estado da amiga.  O rosto inchado e os braços com grandes manchas roxas.

— De novo, Lene! Aquele miserável bateu em você!

— Foi a última vez, Jo. Vim morar com você, se você ainda quiser! Respondeu com a voz embargada, acrescentando: Ele quase me furou com uma faca! 

E o choro explodiu de dentro dela.  Joana a abraçou e tentava consolá-la.  Eram como irmãs e lá estaria segura, pois sempre escondeu de Severino, onde a amiga morava.

Agarrado à mãe, Josué baixou os olhos.  Estava confuso e amedrontado. 

Joana olhou para ele e percebeu a angústia do menino.  Colocando a mão nas costas dele, levou-o delicadamente para dentro.

— Graças a Deus que você largou aquele homem! Venham, sentem aí para descansar. Vou fazer um café.  Depois arrumamos suas coisas.

Ainda com lágrimas, que lhe salgavam a língua, Josilene derramou o sofrimento que lhe feria a alma. O menino ouvia com um olhar perdido, digerindo com dificuldade o desabafo da mãe.

A preocupação com o trabalho aflorou na conversa.  Tinha que abandonar as casas em que faxinava.  Joana então lhe prometeu que iria lhe ajudar a arrumar um emprego mais perto.  Não muito longe dali havia um condomínio de gente de posses, e não faltaria lugar para a amiga trabalhar.

Com o passar do tempo, a vida foi se acomodando.  O emprego foi conseguido.  Josué entrou em uma escola próxima.  Uma tranquilidade há muito não sentida encheu o coração de Josilene.  As marcas físicas e morais foram desaparecendo e no lugar da fragilidade e do medo, surgiu uma mulher forte e decidida.

O menino, no entanto, não conseguiu superar o medo.  Muitas vezes acordava de madrugada, banhado de suor após pesadelos, em que o pai os surrava e os ameaçava. A mãe o acalmava com carinho e conversava com ele.

Na escola, era muito quieto e tímido e se afastava dos coleguinhas. Em casa era obediente e cooperativo, mas muito fechado em si.

A mãe sofria com a dor do filho.  Então, certo fim de tarde, após voltar do trabalho, ela o chamou para conversar.  Sentaram-se em um banco no pequeno quintal da casa, onde uma velha jabuticabeira estava vestida das pequenas e deliciosas frutinhas.  Lançou um olhar para a árvore e depois para o menino e disse com voz calma e carinhosa:

— Josué, você não pode continuar assim.  Fechando toda essa tristeza dentro de você. Você cresceu com medo, é verdade, só viu coisas ruins, mas passou, ficou tudo lá atrás.  Agora estamos seguros.

Os olhos do menino pousaram na mãe e as palavras jorraram com a intensidade de uma enxurrada lamacenta.

 — Tenho raiva e vergonha de ter nascido daquele pai.  Surras e mais surras em você e em mim. E se ele nos encontrar... tenho muito medo...

— Não, filho, ele não sabe onde estamos.  Fique tranquilo.  Jogue fora a raiva, a vergonha, o medo.  Você não tem culpa do que passamos.

E continuou com uma voz mansa e calorosa.

— Tá vendo essa jabuticabeira carregada.  Não é bonita e forte? Ela carrega tudo. Parece feliz de nos dar suas frutas.  Um dia ela foi pequena, vergou com ventos.  Foi cortada para crescer mais forte. E está aí, alta, dando para nós sombra e as tão gostosas jabuticabas e nada recebe de nós em troca. Nós também passamos por muita coisa triste, mas temos que seguir e aprender a crescer como ela.

— Eu não sou árvore, mãe.  Sou gente!

— A árvore não é gente, mas pode nos ensinar muita coisa. Você vai crescer como ela. Na escola vai aprender um monte de coisas, que eu nunca aprendi.  Quero que tenha uma vida melhor que a minha.  Só tem que abrir seu coração, seguir em frente e descobrir o caminho.

Joana, que tinha chegado devagarzinho, ficou admirada com a sabedoria da amiga. O sofrimento é nosso professor, pensou emocionada.

— O menino abraçou a mãe e desabou dele um choro que parecia lavar a tristeza e o medo dentro dele.

Daquele dia em diante, tentou ser outro menino, mais aberto.  Colocava suas emoções para fora e quando a memória o levava para o passado dolorido.  Sacudia a cabeça e pensava nas árvores, que também passam por desafios para crescer.

Tornou-se um adulto responsável e trabalhador.  Sempre se desviava de disputas e brigas.  Vozes alteradas ainda o atingiam.  Fugia delas. 

Fez um curso técnico de mecânica de automóveis e se tornou um ótimo profissional, disputado por muitas oficinas. Às vezes, as ferramentas caiam de suas mãos ao lembrar o passado, um arrepio lhe percorria o corpo, mas logo voltava ao presente e agradecia intimamente às duas mães que o guiaram nos momentos difíceis.

Uma noite em que estava no centro da cidade, voltando para casa, cruzou com um homem maltrapilho e completamente embriagado.  Seus músculos se retesaram.  Com os olhos assustados fixou o olhar no homem e para seu espanto, atrás da barba comprida e suja, reconheceu seu pai, mais velho, mais enrugado, mas era ele. O coração disparou. A palidez cobriu seu rosto.  O homem estendeu-lhe a mão encardida e pediu-lhe dinheiro.  Ele recuou, o ódio misturou-se a um inesperado sentimento de piedade, diante daquele trapo humano.

Ele negou e se afastou mais, mas o pai o segurou insistindo na esmola. Dentro dele surgiu a imagem da faca e dos gritos da mãe.  Fora de si, ele o empurrou com força para se desvencilhar.  Cambaleando e soltando palavrões, Severino desceu da calçada.  Ouviu-se uma brecada forte, mas o carro não conseguiu parar e o atirou longe. O motorista desceu desesperado para socorrê-lo.  Várias pessoas pararam para ajudar.  Estava morto. 

Josué assistiu petrificado a tudo.  Não conseguia sair do lugar.  De repente, virou as costas e seguiu seu caminho sem olhar para trás.  Dos olhos caiu uma lágrima confusa.

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

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