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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

FOI POR UM TRIZ – AS AVENTURAS DO LEOZINHO Leon Vagliengo

 

FOI POR UM TRIZ – AS AVENTURAS DO LEOZINHO

Leon Vagliengo

 

Você tem sonhos espontâneos quando dorme; acordado, sonha também quando a sua mente divaga por ideias e pensamentos felizes; tem fantasias, quando se imagina realizando sonhos; é místico, quando crê em Entidades sobrenaturais; e conhece o fantástico quando Elas te socorrem.



Quando eu nasci, alguém me presenteou com uma medalha de prata do Anjo da Guarda. Infelizmente já não me recordo de quem recebi esse carinho, mas lhe sou muito grato e conservo a medalha com muito amor e devoção até hoje, mais de setenta anos depois.

 

Tantos momentos perigosos, dramáticos, que vivenciei e superei incólume ao longo de minha vida, fizeram com que eu desenvolvesse uma grande fé na proteção recebida de meu Anjo da Guarda.  E não apenas isso, muita proteção recebi, também, para superar as minhas limitações e dificuldades, em situações que foram decisivas para o meu destino.

 

Alguns acontecimentos de minha infância e juventude ficaram gravados de forma indelével em minha memória pela gravidade das circunstâncias em que ocorreram, e ainda permanecem vívidos, nunca se apagam, como estes que passo a situar e narrar.


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I – Recordações de uma viagem.






Estive em Mongaguá pela primeira vez em mil novecentos e cinquenta e um, e tive o privilégio de conhecê-la como era então: uma pequena, distante, tranquila, deliciosa localidade à beira da Praia Grande, subordinada ao município de Itanhaém, no litoral sul de São Paulo. É cortada ao meio pelo Rio Mongaguá, o maior dos que cruzam a praia antes de Itanhaém, que impedia a passagem dos veículos que na época transitavam pelas areias da praia. A linha férrea de Santos a Juquiá servia a toda a região, e nessa oportunidade lá chegamos de trem.

 

Dessa minha primeira viagem restaram muitas lembranças.

 

Quase todas as ruas de Mongaguá eram de areia, sem calçamento, mal definidas, com uma rala vegetação rasteira que se espalhava pelo solo, produzindo pequenos ouriços que grudavam dolorosamente espetados nos pés de quem os pisasse descalço. Depois que pisei alguns, os meus pais me compraram um par de alpargatas, daquelas feitas de brim, com aquele estranho solado de corda. A estação ferroviária, o hotel, uma igrejinha do outro lado do rio em relação ao hotel, uma pequena ponte para viabilizar a passagem dos veículos, já longe da praia, mais para dentro da cidade, algumas casas e muitos terrenos vazios, além da praia e do mar, eram os elementos que compunham um cenário silencioso e encantador.

 

O Hotel Club Marinho, em Mongaguá, pertencia a um casal já idoso quando os conheci, muito simpático e carinhoso com seus hóspedes, especialmente, posso dizer, com um menino de apenas quatro anos, que era eu nessa primeira vez em que lá nos hospedamos. A filha deles, a senhora Chiquita, colega do meu pai, trabalhava no setor de pessoal do Banco do Brasil, em São Paulo, e eventualmente intermediava as reservas e hospedagens para os colegas interessados. Foi ela quem tomou algumas das providências e orientou a nossa viagem.

 

Instalado num prédio à beira mar, com dois andares além do térreo, o hotel era muito agradável e acolhedor. Passados setenta anos, lembro-me bem, ainda, de seu agradável cheiro de asseio, de suas escadas com degraus escuros e sonoros, em madeira, e das refeições deliciosas preparadas em sua cozinha, degustadas no refeitório próprio, bem instalado, mesas com toalhas branquinhas e lindos talheres que incluíam as facas especiais para peixes, pouco comuns, que lá conheci.

 

Logo fiz um amigo, um solitário senhor alemão de meia idade, que me dedicava muita paciência e atenção. Conversava comigo num português meio atrapalhado e era hóspede do hotel. Fez amizade com meus pais e ficou algumas vezes conosco na praia, conversando com eles e brincando comigo, me ensinando a manusear a areia molhada para fazer pequenos castelos e estradinhas com túneis, onde passávamos os carrinhos de brinquedo.

 

Gostei de pisar descalço e brincar na areia, mas fiquei muito assustado quando os meus pais me levaram para o primeiro banho de mar. Fugi do mar, desesperado, e chorei com medo das ondas, enquanto meu pai e minha mãe tentavam me convencer a voltar para a água. Medo maior passei, porém, quando, ingenuamente, fui ver de perto uma galinha com ninhada no quintal do hotel e ela avançou para mim, ameaçadora; percebi o perigo, corri, meu pai me socorreu, mas não deu tempo: tomei uma bela bicada no traseiro. Aí doeu, chorei de novo.

 

Mais do que tudo, lembro-me do barulho das ondas no quebra-mar, que ouvíamos durante toda a noite, devido à proximidade e ao silêncio absoluto existente além do som do mar, e que, ao invés de perturbar nosso sono, tornava-o delicioso e relaxante. Para um menino, tudo era novo, simples, encantador, memórias maravilhosas da vida começando...




Muitos anos depois passei por lá e vi, com triste saudade, que o velho prédio que foi a sede do Hotel, reformado e expandido, passou a abrigar a Prefeitura Municipal.

 

E aqui começa a narração da primeira aventura anunciada no início, ocorrida no ano de mil novecentos e cinquenta e cinco, quatro anos depois da primeira ocasião em que lá nos hospedamos:

 

O valente Citroën preto modelo onze ligeiro, ano mil novecentos e cinquenta e um, seguia corajoso, em velocidade apenas moderada devido aos cuidados impostos ao motorista, meu pai, pela forte chuva que caia no litoral de São Paulo naquele fim de tarde. Já havíamos passado a Ponte Pênsil de São Vicente em direção à Praia Grande, que ainda nem era um município, e o destino final seria o Hotel Club Marinho, trinta quilômetros ao sul, que teriam que ser percorridos pelas areias da praia, pois naqueles idos dos anos cinquenta não havia autoestrada que fizesse essa ligação. Não era a primeira ocasião em que fazíamos essa viagem.

 

Nesta vez, porém, a chuva incessante alagava a estradinha estreita, e fortes jatos de água saltavam longe, para os lados, a cada buraco ou depressão do asfalto precário atingido pelas rodas do carro. Enquanto eram vencidos os cinco quilômetros da pequena estrada, da ponte até a praia, a chuva foi aumentando, transformando-se em forte tempestade.

 

Dentro do carro crescia um clima de silenciosa tensão, à medida em que nos aproximávamos da praia. Minha mãe, habitualmente medrosa durante as viagens, desta vez estava perceptivelmente apavorada; mas tinha razão quando disse a meu pai que voltasse, que não seria possível chegar a Mongaguá naquelas condições. Eu tinha apenas oito anos e também estava com medo, pois já sabia que teríamos que atravessar os muitos riachos que cortam as areias, os quais estariam transbordando com as águas daquela tempestade. Seriam trinta quilômetros de praia deserta, pois raras eram as casas em toda a praia. Não haveria socorro em caso de uma eventual necessidade, que já se afigurava muito provável. Para completar a situação, alguns trovões começaram a ser ouvidos.

 

Meu pai, porém, aos quarenta anos, era um motorista destemido e adorava desafios ao dirigir. Naquele momento, muito atento ao que fazia, parecia imperturbável.  Ao final da estrada entrou na praia conduzindo o carro vagarosamente, buscando orientar-se para direcionar o carro paralelamente ao mar e seguir viagem em direção ao Sul.

 

À beira-mar o cenário era assustador. O tempo, já bastante escuro pelo entardecer e também devido às pesadas nuvens, pouco nos permitia enxergar; a água, torrencialmente vertida pela tempestade, praticamente encharcava toda a orla, tornando impossível definir onde terminava a faixa de areia e começava o mar. Nesse momento eu tive a exata sensação de que o meu pai não direcionara o carro corretamente, e dirigia-se quase frontalmente em direção ao mar. Felizmente ia muito devagar, devido às dificuldades causadas pela tempestade. Apavorados, eu e minha mãe, mal respirávamos.

 

Creio que a entrada pela praia durou menos de um minuto, mas, na perspectiva de um menino de oito anos, foi o minuto mais longo e sofrido de minha existência. Subitamente não mais suportei a incerteza e, desesperado, gritei para meu pai: “vira mais o carro, estamos indo para o mar!”.

 

Dos Céus, imediatamente, veio o socorro. Inesquecível!

 

Assim que gritei, um raio enorme, absurdo, apareceu sobre o mar, bem próximo à praia, iluminando espetacularmente, por alguns instantes, todo aquele cenário, como se fosse um dia ensolarado, explodindo segundos depois com forte estrondo. Sem nenhum exagero, creio que foi o maior raio que vi em toda a minha vida. O resplendor produzido pelo raio nos permitiu perceber claramente que eu tinha razão:  o carro estava de frente para o mar, apenas um tanto enviesado, e pouco faltava para invadi-lo, já a poucos metros das primeiras ondas; nem o valente Citroën se manteria em funcionamento para sair das águas, se nelas entrasse.

 

Ante a clara visão proporcionada pelo raio, a reação de meu pai foi imediata, esterçando rapidamente a direção para voltar à estrada, em retorno à Ponte Pênsil.

 

Foi por um triz que não entramos no mar com o carro.

 

Voltamos a São Vicente, pernoitamos numa pensão e no dia seguinte seguimos para nossas férias em Mongaguá. Durante o longo percurso pela praia, um belo dia de sol e o cheiro salgado do mar predominavam em nossas sensações.

 

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II – A caminho da escola







Os Citroëns, como o do meu pai, foram carros muito admirados e cobiçados, desde o final dos anos quarenta, pelo menos – e o são até hoje, por alguns colecionadores –, por várias características que os diferenciavam dos demais carros. Praticamente todos pretos com rodas claras amareladas em contraste, eram, naqueles tempos, os únicos carros com as vantagens da tração dianteira; bastante velozes e ágeis, tinham a merecida fama de não capotar, entre outras boas características.

 

Porém, as portas do motorista e do passageiro ao seu lado eram consideradas perigosas porque abriam-se para a frente e, em trânsito, numa eventual falha da fechadura, poderiam escancarar-se repentinamente pela ação do vento, oferecendo grave risco a esses ocupantes, mesmo porque, naquele tempo, os carros não eram equipados com cinto de segurança.

 

Pois é...!

 

Eu ainda era aluno do curso primário, aos dez anos de idade. Num dia de mil novecentos e cinquenta e sete, logo após o almoço, o meu pai me levava para a escola em nosso Citroën. A escola era o Instituto Dom Bosco, no Bom Retiro, bairro central de São Paulo. Na então recém inaugurada avenida Santos Dumont, continuação da Avenida Tiradentes, o asfalto novinho era um paraíso para ele, que deliciava-se dirigindo velozmente, sentindo o carro, como dizia e fazia, sempre que possível, mesmo na cidade. 

 

Na ausência de minha mãe, eu ia sentado no banco da frente. Num dado momento, já próximos da escola, resolvi abrir e bater a minha porta porque a sua primeira trava escapou e ela ficou mal fechada, fazendo algum barulho e ameaçando abrir-se. Muitas vezes eu já fizera isso com a porta traseira, quando sentado no meu lugar habitual de criança, sem nenhum problema, pois a força do vento, com o carro em movimento, até ajudava a bater aquela porta, que abria para trás.

 

No mesmo instante em que eu, ingenuamente, acionei a maçaneta, a porta se abriu de uma vez, me puxando para fora do carro. Meu pai, num rápido e incrível reflexo, me agarrou pelas pernas como pôde, sem soltar o volante, e eu fiquei seguro por ele e pendurado, com a mão segurando na maçaneta, o corpo fora do carro a partir da cintura, vendo o asfalto passar velozmente a uns vinte centímetros do meu nariz, até que ele conseguiu dominar a situação e me trouxe de volta para dentro do carro.

 

Incólume, mas foi por um triz.

 

O Citroën era mesmo um carro emocionante, especialmente quando guiado por meu pai: ousado, mas muito habilidoso e competente na direção. 

 

No Citroën aprendi a dirigir aos doze anos, justamente na Praia Grande, com a orientação de meu pai. Por isso, também, a minha decepção foi profunda quando ele o vendeu, em mil novecentos e sessenta, após dez anos de uso diário e intenso, para substituí-lo por um Volkswagen.

 

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III – A curva fechada e o mistério.





 

Com o advento da era Volkswagen em nossa família, as coisas mudaram. Agora o meu pai trocava o carro a cada um ou dois anos, mas sempre por outro Volkswagen. Carro prático, relativamente barato, econômico, mecânica simples, assistência técnica farta, o Volkswagen logo conquistou o gosto popular.

 

Quando eu me interessei pelo Volkswagen, porém, não foi em razão de suas virtudes técnicas. Já adolescente, sentia mesmo muita vontade de dirigir, mas ainda não tinha idade para isso, e meu pai, corretamente, não o permitia. A única solução era “sair fora da lei” e pegar o carro escondido para dar umas voltas sem destino pelo bairro, aguentando a bronca depois. Vários amigos faziam o mesmo, e alimentávamos, uns aos outros, a nossa ousadia, com o exemplo e o relato envaidecido de cada aventura realizada.

 

Nessa época morávamos no Jardim São Bento, na Zona Norte de São Paulo, um bairro muito convidativo para essas perigosas travessuras, em razão de suas ruas asfaltadas e dos pouquíssimos veículos que por elas transitavam. Travessuras perigosas porque, apesar da habilidade que muitos do grupo desenvolveram, nas primeiras aventuras não a tinham, mas não resistiam à tentação de fazer manobras arriscadas, estimulados pelos amigos: andar em velocidade, derrapar nas curvas, dar cavalos-de-pau, eram as mais comuns; acelerar forte no meio das curvas para “grudar” o carro no chão, era preceito básico.

Numa tarde de sábado consegui pegar o Volkswagen do meu pai e saí com dois ou três amigos, tão irresponsáveis quanto eu, para dar umas voltas sem destino pelo bairro. Depois de dirigir algum tempo a esmo, subi a Rua Dom Domingo de Silos, entrei na Rua São Mauro e, em seguida, entrei à direita, na Rua Padre Ângelo Siqueira.

 

A Rua Padre Ângelo Siqueira é uma rua relativamente curta, mas sinuosa. Era asfaltada como as outras do bairro, mas com muitos buracos e irregularidades no asfalto em suas curvas e entre elas, o que prejudicava a estabilidade dos carros. Começava com uma descida de uns oitenta metros, vinha uma curva fechada à esquerda e, uns cinquenta metros e vários buracos depois, outra curva, também fechada, à direita, formando um “s” e iniciando uma subida de menor extensão que a descida. Ao lado esquerdo dessa subida, logo além da guia, pois não havia calçada, uma longa e perigosa ribanceira.

 

Desci a rua acelerando o carro, as manobras teriam que ser feitas com rapidez. Fiz a primeira curva, para a esquerda, num instante passei pelos cinquenta metros esburacados, e comecei a esterçar a direção, já acelerando forte no meio da curva para a direita para “grudar” o carro ao chão, quando um forte solavanco provocado por algum buraco fez com que as minhas mãos escapassem do volante, e a força centrífuga gerada pela curva brusca jogou o meu corpo sobre a porta do carro, onde fiquei grudado, por um átimo, devido à pressão sofrida. No meio da curva perdi completamente o controle do carro, que estava acelerado.

 

Num movimento reflexo e desesperado, tão rápido quanto pude, me reequilibrei e retomei a posição ao volante, já certo de que não teria mais como evitar que o carro pulasse a guia e rolasse a ribanceira. Então, não entendi como, mas, inacreditavelmente, vi que o carro estava perfeitamente alinhado com a rua, como se nada de anormal houvesse acontecido.

 

Foi por um triz, o susto foi apavorante. Acabou-se o passeio, voltei mansinho para casa.

 

Mas...ainda no caminho de casa, ainda com o coração disparado, veio a estranheza: Como foi possível o carro ter ficado tão bem alinhado com a rua, naquelas circunstâncias? Quem conduziu o carro naqueles instantes em que estava completamente à solta? Até hoje, para mim, que vivi o momento, é um mistério.

 

Ou não?

 

Mais tarde, já em casa e passado o susto, tentando entender, lembrei e desconfiei, pela primeira vez, do Anjo da minha medalhinha...


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IV – De repente, uma menina.






Já fazia cerca de um ano que eu estava dirigindo habilitado. Menos imaturo e bastante treinado ao volante com as peripécias praticadas, eu sentia que dominava muito bem o carro. Aos dezenove anos, para mim, dirigir era um delicioso prazer, um verdadeiro esporte em que eu me propunha desafios, os mais diversos, que serviam para aperfeiçoar o meu domínio da direção, mas que, agora, deveriam sempre ser realizados em segurança, conforme eu a entendia.

 

Em rotatórias ou curvas mais largas, por exemplo, o desafio era percorrê-las com perfeição, respeitando em todo o contorno uma faixa imaginária, pois na época as pistas da cidade de São Paulo não eram demarcadas. À noite, ao voltar do namoro, me propunha outros desafios: ora tentava fazer o percurso de uns vinte quilômetros, da casa da namorada até a minha, em menor tempo a cada dia, ora tentava fazer todo o percurso sem usar os freios, controlando a velocidade com o câmbio manual. Nunca consegui fazer todo o percurso sem frear nem uma vez, mas adquiri um bom controle do carro e até a calcular os tempos dos semáforos por onde passava habitualmente.

 

Andar em velocidade, porém era a prática mais comum. Não podia deixar que outro carro ultrapassasse o meu, a disputa no trânsito era permanente. Sempre fiel ao preceito de acelerar no meio das curvas para assegurar a estabilidade do carro, princípio básico especialmente para carros de tração traseira, como o Volkswagen, eu dificilmente dirigia devagar, mesmo porque, na época, quase não havia fiscalização para o cumprimento das regras de trânsito.

 

Apesar de tanto empenho, porém, eu ainda tinha muitas coisas para aprender sobre riscos do trânsito; e um dia o perigo se revelou, o susto aconteceu.

 

Eu vinha conduzindo o meu Volkswagen pela avenida Caetano Álvares e entrei com alguma velocidade na Rua Mariquinha Vianna, em direção à Avenida Água Fria, na Zona Norte de São Paulo; essa rua, naquela época, admitia duas mãos de direção e tinha, por calçamento, os escorregadios paralelepípedos, então muito comuns nas vias públicas de São Paulo.

 

Muitos carros estacionados ao lado direito, de entre deles saiu, de repente, uma menina de uns sete ou oito anos, correndo para atravessar a rua. Senti, com certeza, que não haveria tempo para frear o carro.

 

Ela logo percebeu o perigo a que se expusera e, tentando parar a sua corrida, passou a pular de lado, numa perna só, reduzindo um pouco a distância que percorreria, cena que gravei para sempre. Como eu não teria tempo para deter o carro antes do impacto, desviei dela rapidamente, passando muito perto da menina e da guia à minha esquerda, completamente contramão. Meu carro, mesmo com a súbita guinada, incrivelmente não derrapou nos paralelepípedos; e também não vinha nenhum outro no sentido contrário ao meu.

 

 Nada aconteceu, foi por um triz.

 

Sorte ou milagre?

 

Mais uma vez, senti a presença do Anjo da Guarda. Creio que desta vez eram dois.

 

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V – Enxergando ao longe, entendendo muito de perto.







O ano de mil novecentos e sessenta e seis veio cheio de novidades para mim. Pela primeira vez, após oito anos de convívio, eu não mais encontraria diariamente os meus colegas do Colégio Estadual Doutor Octávio Mendes - CEDOM, pois havia completado o curso colegial no ano anterior. Era, também, o meu primeiro ano como aluno de faculdade, e eu já pensava em procurar um emprego. Foi nesse ano que o meu pai me avisou que seria realizado o primeiro concurso público para o recém-criado Banco Central da República do Brasil, hoje Banco Central do Brasil.

 

Confirmei que me interessava, sim, ao ler o Edital; fiz a minha inscrição e me preparei como pude para as provas, que foram realizadas exclusivamente na cidade do Rio de Janeiro. A estadia foi uma boa oportunidade para um rápido convívio com os meus tios Magda e Eduardo, que carinhosamente nos acolheram em seu apartamento no Leblon, a mim e a meu pai, que me acompanhou em duas das três oportunidades em que lá estive, quando foram realizadas as provas de conhecimentos, datilografia e aptidão, física e psicológica.

 

Na véspera da prova de datilografia, justamente aquela para a qual eu estava menos preparado, a minha tia me deu um alerta curioso, que foi muito importante: “Ao iniciar a prova os candidatos estarão tensos pela expectativa e vão romper o silêncio de repente, todos ao mesmo tempo, apressados para concluir o teste no prazo; vai fazer um grande barulho. Alguns deles vão se assustar e enfiar os dedos no teclado, enganchando os tipos da máquina e até borrando a folha. Ao sinal, espere alguns segundos e respire fundo antes de começar”.

 

 Foi como ela disse, fiz como ela disse. Deu certo: consegui fazer todo o texto sem erros, inclusive com a margem direita perfeitamente retificada, como era exigido na época. Isso me ajudou muito para conseguir a aprovação no concurso que definiu a minha atividade profissional por mais de quarenta e um anos, a partir de janeiro de mil novecentos e sessenta e sete, quando tomei posse.

 

Minha história poderia ter sido bem mais curta.

 

Naquele ano, a Rodovia Presidente Dutra estava em obras para duplicação de suas pistas. Eu e meu pai retornávamos a São Paulo de uma dessas viagens para o concurso, e eu ia dirigindo o Volkswagen por uma longa reta, ainda na baixada fluminense. À nossa esquerda, separada por um largo canteiro de mato, a pista de mão contrária, poucos carros em trânsito. Ao nosso lado, na faixa da direita, um grande carro preto americano, daqueles antigos, bem alto, por algum tempo atrapalhava a nossa visão de placas de sinalização que porventura houvesse.

 

Bem ao longe vi um grande caminhão que vinha em sentido contrário e comentei com o meu pai que ele parecia estar na mesma pista em que estávamos. A grande distância que ainda nos separava e a pouca probabilidade de que isso estivesse ocorrendo, prejudicavam a minha certeza..., mas...parecia mesmo! Cismado, fixei a vista no caminhão ainda distante, mas nos aproximávamos rapidamente, a cerca de duzentos quilômetros por hora, somadas as velocidades. E tudo aconteceu muito rapidamente.

 

A cada instante mais focado em observar e tentar entender a posição do caminhão, por pouco não percebi a existência de um pequeno acesso para a pista paralela que ele deveria tomar, saindo da mão dupla que percorria; foi apenas com o rabo dos olhos que vi aquela entrada quando passei por ela e imediatamente lembrei-me de que a rodovia estava em obras de duplicação, compreendendo que o caminhão, já bem próximo, estava realmente na mesma pista e faixa que nós; sem contar que eu havia ficado na contramão, depois daquele acesso!

 

Desesperador! O Volkswagen não era potente e o carro preto continuava ao nosso lado.

 

Pisei no acelerador até o fundo para acabar de ultrapassar o carro preto, avançando de frente para o caminhão até o limite possível da segurança, e mudei o carro para a faixa de rolamento da direita sem sequer ter a certeza de que já havia ultrapassado o outro carro. Calculei que sim, mas eu nem poderia olhar porque estava controlando a rápida aproximação do caminhão.

 

Só deu tempo de mudar de faixa. O enorme veículo passou ao nosso lado balançando o Volkswagen com o deslocamento de ar e fazendo um barulho de ferragens duro e ensurdecedor, que retorna martelando os meus ouvidos, por manobras da mente, todas as vezes em que me lembro desse episódio. Acredito que o motorista do carro preto tenha diminuído a velocidade, mas o do caminhão não o fez; talvez nem tenha percebido que eu estava em apuros. E nem conseguiria segurar o seu pesado veículo no último momento. Se o acesso estivesse alguns metros adiante de onde o vi, eu não teria tido tempo para reagir. Apareceu para mim de repente, no momento extremo, como aquele raio...

 

Mais uma vez, foi por um triz. E que triz!

 

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Estas são apenas algumas de minhas histórias, na forma como ocorreram, talvez as mais dramáticas que vivenciei, nas quais precisei de uma proteção instantânea; e ela veio: estranha, invisível, sobrenatural, inesperada.

 

Muitas outras situações aconteceram, no plano pessoal ou profissional, em que também me senti amparado de uma maneira especial. Seriam mesmo intervenções do meu Anjo da Guarda? O que fiz para merecê-las? Deixo essas perguntas aos leitores, para que as interpretem de acordo com a sua crença.

 

        Por tudo o que contei e muito mais, eu sou profundamente agradecido.

 

 



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