A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Um olhar ao redor - Adelaide Dittmers

 


Um olhar ao redor

Adelaide Dittmers

 

Olho em volta e estremeço.  Uma sala branca, cujas paredes estão forradas de coroas de flores. Estou em um velório.  De quem será? Não me lembro de ter recebido a notícia da morte de alguém conhecido.

Tento me mexer, mas não posso. Minhas pernas e braços estão imóveis.  Meu Deus! Estou preso a um caixão.  Quero levantar e não consigo.  Percebo que meus olhos estão fechados, mas estou vendo tudo ao meu redor.  Estou morto?  Meu corpo se arrepia todo, mas morto não pode se arrepiar.

Meus olhos, ou sei lá o que estou usando para enxergar, divisam muitas pessoas no lugar.

Minha mulher está abraçada ao meu filho e os dois soluçam.  A tristeza me invade e sinto-me impotente diante dessa cena.

Um grupo de amigos conversa a um canto.  Parecem discutir sobre algo, política ou negócios. Não ouço o que dizem.  Falam em voz baixa.

Não acredito! Dona Maricota também está aqui.  Como sempre não pára de tagarelar. Ah não! Está se aproximando de mim com uma vizinha.  O olhar compungido tem uma sobra de sarcasmo. ¨Era um homem forte.  Como foi morrer assim de repente! Sabe, aqui entre nós, dizem por aí que era um mulherengo e traía dona Clara, descaradamente¨.

Miserável! Veio ao meu velório só para fofocar e falar mal de mim.  Se eu pudesse a expulsava daqui. Se estivesse vivo, estaria vermelho de raiva.

O Rafael acabou de entrar.  Cara de pau! Me deve um dinheirão e não atendeu mais aos meus telefonemas.  O rosto coberto de uma dor, que com certeza não sente.

O que o Leo está fazendo?  Abraçando Clara de um jeito suspeito e parece comê-la com os olhos.  Nem esfriei ainda...Meu melhor amigo! É difícil acreditar em tanta falsidade!

Ouço sons de risadas, que vêm de fora.  O grupo das piadas!  Não respeita o sofrimento alheio. Porém, tenho que admitir, participei disso muitas vezes.

Que surpresa! É a Gracinha chegando perto de mim! Linda, elegante e discreta.  Vivi grandes momentos com ela.  Seu rosto espelha uma grande tristeza e lentamente deposita uma rosa vermelha em meu peito.  Coloca a mão em cima das minhas, fecha os olhos e deve estar fazendo uma oração.  Discretamente afasta-se e sai, mas o rastro de seu perfume permanece como um bálsamo.

Fito Clara, que está recebendo vários abraços de condolências.  Graças a Deus não viu Gracinha.

Um padre aparece a começam as orações.  Todos baixam a cabeça para acompanhá-las.  Será que estão rezando por mim? Duvido.  Muitos devem estar pensando no que vão fazer depois.

Neste momento, resolvo me entregar a Deus e ao que vier. Estou só, como nunca estive.  Saímos deste mundo completamente sozinhos.  Não importa quantas pessoas estejam a nossa volta. Felizmente vivi plenamente. Não me arrependo de nada.  Aceito meu desenlace como aceitei a vida.

 

 

O homem da gaita - Adelaide Dittmers

 



O homem da gaita

Adelaide Dittmers

 

 

Passou por mim um homem,

Gaita na boca,

Tocando indiferente,

Imerso na melodia.

 

Gorro colorido, cabelos compridos,

Passou por mim,

Sua música e ele,

No seu mundo.

 

Nada via ao seu redor,

O homem e sua gaita,

Ele e sua música 

Passaram por mim.

 

A tarde de céu azul,

A calçada florida,

Mesclavam-se ao homem,

Eram parte dele e sua gaita,

 

Passou por mim um homem,

Tocando indiferente,

Passou rápido pela minha vida,

Não passei pela dele.

A PILHA - Leon A. Vagliengo

 

 


A PILHA

Incluindo a esperança de Liberdade, ainda que tardia.

Leon Alfonsin Vagliengo

       

Olho em volta de mim, tentando descobrir algo que me inspire para escrever uma boa história. Estou em meu pequeno escritório, onde se encontram muitos objetos apropriados para o local, como canetas, lápis, réguas, computador, livros, impressora etc., mas nada disso me parece sugestivo para a elaboração de algum texto interessante. Minha imaginação é uma noite escura, nenhuma ideia a ilumina.

        Finalmente, uma porta se abriu deixando entrar a luz do pensamento, quando meu olhar pousou sobre uma enorme pilha de papéis. Nela, documentos bem recentes, amontoados sobre outros, antigos, alguns até muito antigos, concorrem para produzir em mim um desalento crônico, uma impressão desagradável de que nunca me libertarei de seu jugo cruel. Encontrei a minha estrada, passo a percorrê-la.

        Alguns desses documentos representam pagamentos inadiáveis, exigindo total prioridade; são processados assim que chegam e imediatamente mudam de categoria, juntando-se a outros porque trazem informações para registros contábeis e elaboração de relatórios. Os piores, porém, são aqueles que representam problemas que precisam ser solucionados, mas parecem não ter solução. Estes ficam, ficam... e ficam.

Entre esses papéis, existe até uma folha com vinte selos postais, que deverão ser utilizados para o envio de cartas pessoais que não consegui tempo para escrever. Seriam várias, não escrevi nenhuma até agora. Um dia ainda as escreverei, e farão parte de um interessante e simpático treino de redação idealizado pela professora de escrita literária, com a utilização de um recurso que hoje já se tornou arcaico, mas assume, neste contexto, uma conotação saudosista quase poética.

Ah! A escrita literária!

Que vontade de retomar e completar cada um dos rascunhos de histórias que tenho acumulados em arquivos de meu computador! Ou, de escrever todos os textos semanais recomendados nas aulas! Mas não tem sido possível, o tempo é escasso, as preocupações rotineiras desviam os meus pensamentos, muitas vezes escravizam o meu cérebro.

Apesar de tudo, ainda tenho encontrado algum tempo para o prazer de escrever alguns textos. Não consigo fazer muitos, mas não desisto. Sempre sai algum, e assim vou levando.

        Porém, a grande pilha, simbolizando tantos afazeres de que não consigo dar conta, continua sempre lá, impiedosa e ostensivamente, para que eu a veja todos os dias.

No início, constatar o seu contínuo crescimento me desesperava. Com o passar do tempo, porém, a habitualidade em vê-la foi criando em mim uma espécie de calo mental, fui desenvolvendo naturalmente defesas psicológicas que me permitem, hoje, conviver tranquilamente com as suas pendências, sem mais pesar em minha consciência o fato de não conseguir extingui-la.

        Muitas vezes penso nisso e fico com a sensação de que me tornei um sem-vergonha.

OBJETO COMPANHIA - Hélio Fernando Salema

 


OBJETO COMPANHIA

Helio Fernando Salema

 

Minha garrafa d’água tem sido minha companheira há muitos anos, desde que a recebi de presente do meu filho. Inicialmente era usada nas viagens de carro, principalmente no verão. O conteúdo permanecia gelado durante todo o trajeto, o que facilitava a minha hidratação sem necessidade de parar o veículo e, melhor ainda, não ingerir água sem saber a procedência. Embora eu já não costumava adquirir em qualquer comércio, pois sempre ficava em dúvida não só a respeito da origem como também da qualidade.

 

Em casa, ela é figura permanente na minha mesa, faz parte do meu dia a dia, sempre olhando para mim e lembrando-me de que ela tem um presente necessário e agradável para me satisfazer.

 

Nos dias quentes, abastece-me de água gelada ou água de coco enquanto assisto ao futebol pela TV. Também quando estou na varanda apreciando a bela paisagem e o céu que muito me encanta. Às vezes, chegou a acreditar que ela também se encanta como eu.

 

Nas noites frias é ela que ajuda no aquecimento do meu corpo com chá quente preservado durante toda a madrugada, mostrando sua resistência a oscilação da temperatura, o que me da uma tremenda força para encarar os rigores do inverno.

 

Quando saboreio o seu conteúdo o som que ouço parece me dizer:

—“Guardei com carinho só para você “

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

AO ENCONTRO DA FELICIDADE - Henrique Schnaider




 AO ENCONTRO DA FELICIDADE

Henrique Schnaider

 

Décio era um senhor já nos seus cinquenta anos, viúvo desde quando tinha quarenta. Levava uma vida pacata sem muito brilho, já estava perto de se aposentar. Era funcionário público, trabalhava numa função monótona, na qual sequer tinha alguma chance de se destacar. Era todo dia a mesma coisa, verificação de papeis carimbar e despachar.

Ele tinha poucos amigos no trabalho. Já era um sujeito de pouca conversa e assim não dava abertura para que os colegas tentassem uma aproximação, puxar um papo e tentar saber algo de sua vida.

De segunda a sexta feira era a mesma rotina ele sempre desanimado, saia do trabalho e passava num parque que havia a caminho de sua casa. Era o único momento de lazer na vida dele. Caminhava pelas veredas à sombra de enormes jequitibás e de manacás de um perfume inebriante. O canto dos passarinhos dominava o Parque, sabiás laranjeiras com seu canto sem muita alegria. Bem-te-vis tinham um canto forte querendo aparecer mais que todos.

Os bandos de periquitos Tuim e as maritacas, faziam a maior arruaça encantando ao Décio, que se sentava num banco no meio de todo aquele alvoroço. Sempre existe um dia na nossa vida que nos dá uma oportunidade e para ele aquele dia chegou. Uma porta se abriu na vida daquele homem triste e daquela porta sai uma bela mulher que se sentou ali ao seu lado no banco. Ele logo reparou que ela tinha uns olhos azuis, coisas de boneca.

A mulher olhou para Décio e logo puxou conversa, além de bonita, era comunicativa deixando-o com mil campainhas tocando no coração. Ela perguntou a ele qual era o seu nome e ele respondeu:

— Meu nome é Décio, minha mãe adorava este nome, que tinha sido do meu avô, eu não gosto muito do nome, prefiro ser chamado de Dé, mas como é uma homenagem ao meu avô eu aceito. E o seu nome qual é?

— Eu me chamo Monalisa, meu pai adorava este quadro e resolveu fazer uma homenagem ao pintor dele, Leonardo da Vinci. Eu gosto do meu nome e acho muito bonito e charmoso.

Enquanto ela falava, Décio não cansava de olhar para aqueles lindos olhos azuis e falou:

— Você sabe Monalisa, que tem lindos olhos azuis, me encantei com eles. Ela corou, baixou os olhos envergonhada, tomou um folego e respondeu:

— Obrigado pelo elogio, você também é um homem muito atraente e eu simpatizei com você.

Décio sentiu que a eterna noite que era sua vida, naquele momento viu que o sol estava nascendo, depois de tantos anos de viuvez no seu coração e timidamente tomou as mãos de Monalisa e lhe disse:

— Acho que os anjos enviaram você aqui hoje para mudar minha vida para sempre.

E Monalisa se aproximou de Décio ficando bem próxima a ele e assim permaneceram por horas aproveitando aquele momento que era só deles.

Os dois não perderam tempo, descompromissados que eram, depois de pouco tempo foram viver juntos, pois sentiram que foram feitos um para o outro e iriam ser felizes por muitos e muitos anos. 

 

A PORTA - Adelaide Dittmers

 


A PORTA

Adelaide Dittmers

 

Diante de mim há uma porta.  Há uma porta diante de mim.

Para onde me levará? Tenho que abri-la para descobrir.

O medo me avassala. 

E se abrir para uma noite escura? Onde sombras assustadoras aparecerão...

Ou ao abrir me deparar com um dia ensolarado e céu azul...

O que me espera do outro lado, afinal?

Tenho que ter coragem.  Faz parte da caminhada.

Seja o que for que encontrarei, tenho que enfrentar ou me comprazer.

Empurro a porta abre devagar.  O espanto me paralisa.  Diante de mim há caminhos entrelaçados e tortuosos.  Passo a passo, sigo lentamente.  Atordoada, percebo que têm forma de neurônios e se ligam uns aos outros em grande velocidade.

De súbito, uma espécie de nuvem afeta minha visão e sinto um vento forte me carregando. Surpreendida avisto uma bela paisagem, que surge aos poucos no meio da névoa.  Meus pulmões enchem-se de ar puro.  Um sentimento de gratidão inunda meus sentidos. Mais abaixo, um mar verde e límpido lambe a areia branca.  Corro para ele. Mas nesse momento sou arrancada dali e me deparo com homens caçando, vestidos de peles de animais. Os rostos têm feições rudes, as mãos grossas carregam machados feitos de pedra.

Levada outra vez por aquela força estranha, vou parar em outros tempos e lugares.  À minha frente, homens com lanças lutam com ferocidade. Tento fugir dali.  O sangue de um guerreiro espirra em meu rosto.  Desfaleço de susto e volto a mim em uma estreita estrada de terra, onde um homem sentado em uma pedra, fala sobre amor e respeito ao próximo para doze embevecidos ouvintes.  A paz aninha-se em minha alma.  Fecho os olhos para absorver aquele momento.  Quando volto a abri-los, estou em um prédio escuro, com paredes de pedra, onde homens confabulam sob uma tocha, que mal ilumina o aposento.  Olhos ferinos me dizem que lá ódio e não compaixão.  É um lugar lúgubre e amedrontador.  Esforço-me em sair.

Sou jogada em uma praça e ao levantar os olhos, fico horrorizada ao ver pessoas sendo queimadas em fogueiras.  Tampo os ouvidos para não ouvir seus gritos lancinantes.

Sou de novo transportada, impotente que estou de sair desse caleidoscópio de lugares e épocas.  Um campo está sendo lavrado por pessoas pobremente vestidas.  Uma mulher está à sombra de uma árvore amamentando uma criança.  O olhar perdido demonstra desesperança.  Ao longe, um grande castelo ergue-se majestoso.

Novamente, aquela força inexplicável me deposita em um ambiente claro e quando tento entender onde estou, tampo a boca para não gritar de espanto.  Diante de mim, nascendo da pedra bruta, translúcida e pura do mármore, está uma mãe segurando o filho morto.  Fico extasiada! Sento-me no chão frio e admiro comovida o grande mestre executar sua obra. Quis permanecer ali por mais tempo, mas nessa louca viagem não sou dona da minha vontade.

Uma rua estreita e imunda, cercada de pequenas casas é minha próxima parada.  No chão de pedras irrregulares jazem pessoas, cujos corpos estão cobertos de enormes bolhas.  A peste negra.  Dou um passo para trás.  O terror se apodera de mim.

E continuo nesse caminho insano.  Passo por muitas batalhas.  Homens com poderes absolutos, revoluções, mulheres oprimidas, escravos açoitados sem piedade desfilam sob os meus aturdidos olhos.

 De repente, estou em um lugar hostil.  Homens e crianças magérrimos estão sendo empurrados com violência para uma sala totalmente vedada.  Um arrepio percorre-me inteira.  Sinto-me exausta. Viro a cabeça.  Quero sair dali.  O arrependimento de ter aberto aquela porta toma todos os meus sentidos.

Para minha surpresa, vejo-me então em um hospital.  Olho em volta.  Uma mulher geme ao se esforçar em dar vida a um novo ser.  Aproximo-me dela.  Paro estática. È minha mãe. Quero chegar mais perto, mas não consigo.  O choro de uma criança ecoa na sala. ¨Uma menina¨, diz o médico sorrindo.  Atônita, percebo que sou eu, que estou nascendo.  Viro-me, e à minha frente está a mesma porta. Respiro fundo e baixando a maçaneta, entro...                      

AS PORTAS DA VIDA - Helio Fernando Salema

 



AS PORTAS  DA VIDA

Helio Fernando Salema

 

Creio que das primeiras portas pelas quais passamos, ao entrarmos neste mundo, nós não nos recordamos. Mas já nos primeiros anos sentimos a presença, muitas vezes fortíssimas, das portas invisíveis. Não … Eu disse que Não… Aí você não pode … E assim por diante...

Em alguns momentos, a porta se abre e, aquele simples objeto conquistado se torna um presente, é permitido brincar livremente, mas se for levado à boca, a porta se fecha com alto e bom som… NÃO.

Assim prossegue com o “porteiro” insistindo do mesmo modo, acreditando que a criança vai entender o significado rápido e facilmente. Talvez o porteiro não saiba outra maneira de explicar ou de se fazer entender. A sua própria porta para o conhecimento pode ainda estar fechada.

Com o passar dos anos vamos percebendo que há muitas portas abertas, e outras, embora fechadas, nos permitem abri-las. Assim a juventude se torna um período de expansão do espaço físico e social. A todo momento nos deparamos com portas fechadas, que abrimos com as mãos e outras, simplesmente as ignoramos, dando meia-volta. Obviamente ambas com suas consequências.

Mesmo na vida adulta, há momentos em que não sabemos o que nos espera após transpormos certos limites, principalmente os ainda desconhecidos. Avançando vamos aprendendo com as nossas próprias experiências e, também, com as dos outros. Quando percebemos alguém tropeçando ou escorregando, podemos pensar porque não evitou? Mas, certamente será muito difícil escaparmos dos nossos próprios tropeços e escorregões.

Provavelmente seja por isso que há tantas portas fechadas a sete chaves, dificultando o nosso caminhar consciente e isso, explica a existência da “ORAÇÃO  DAS TRÊS CHAVES DE SÃO PEDRO”, embora pouco conhecida. A primeira, de ferro, que abre e fechas as portas da existência terrena, a segunda, de prata, as portas da sabedoria e, a terceira, de ouro, as portas da vida eterna.

É na adolescência que começa a nossa percepção das dificuldades e facilidades com as portas, principalmente as invisíveis. Mas é no período adulto que estas mais nos afligem e, muitas vezes, temos que usar a chave de ferro para os problemas mais comuns. A de prata para os que nos perturbam intensamente e, a terceira, de ouro ao sentimos que o fim, neste mundo, está próximo. É quando para nós o sol já não brilha tão intensamente e a sabedoria acumulada nos anos, mais o conhecimento adquirido com as portas e seus caminhos, nos ajudam a transpor a derradeira desde mundo.

O REGATO DA VIDA - Helio Fernando Salema

 


O REGATO DA VIDA

Helio Fernando Salema

 

A águas mansas do rio que vejo, são como os meus sonhos e desejos a serem realizados. Seguem para o destino que os aguarda, calmamente, com surpresas e decepções.

Chuvas de verão trazem assombros diversos, além da quantidade exorbitante de águas, vêm junto pedaços de objetos, galhos de árvores de todos os tamanhos e uma infinidade de outras coisas de que não necessitamos. Provocam algumas mudanças semelhantes às dos anos anteriores e que, sem dúvida, se repetiram nos próximos.

Mas o que seria de nós sem as chuvas?

Com o passar dos dias o leito do rio vai aos poucos voltando ao seu normal. No outono poucos vão lembrar-se do que a chuva fez e talvez comecem a sentir a falta que a chuva nos faz. Porém, o rio segue seu curso normal oferecendo suas águas e alimentos.

Arnaldo pega, pacientemente, seus apetrechos de pesca e vai em direção ao rio. O caminho é o mesmo há mais de dez anos. Passa por algumas ruas, todas de terra batida com poucas casas e algumas crianças brincando. Cumprimenta os mais conhecidos. Perto da beira do rio para em frente a um portão de madeira e chama pelo seu amigo Everaldo, que lá de dentro responde que já vem.

Dona Felícia chega à porta e pergunta se ele aceita um cafezinho. Muito educado responde “obrigado, já tomei em casa”. Tudo ocorria, exatamente como todas as vezes, até que na pequena janela chega uma jovem de semblante triste, olha e, demonstrando estar envergonhada, se afasta.

Não era o que Arnaldo esperava, sabia muito bem que ali morava apenas seu amigo com a mãe viúva. Everaldo chega e os dois vão caminhando e conversando sobre os dias em que não foram pescar devido ao temporal.

Everaldo logo comenta que ficou sabendo que as águas do rio estavam quase normais, bem mais clara que no dia anterior, além de ter baixado e, deixando o lugar preferido deles para pescar, em ótimas condições.  Arnaldo ouve tudo sem dizer uma palavra sequer, seus pensamentos estavam naqueles olhos tristes na pequena janela.

Leva um tremendo susto quando Everaldo pergunta se ele tem alguma novidade. Instintivamente diz que não, mas não convence o amigo que olha diretamente nos seus olhos. Arnaldo sente vontade de perguntar quem era aquela moça, mas muda de ideia, pois fica em dúvida se era mesmo uma jovem ou apenas uma visão. Então resolve devolver a pergunta. De súbito tem a mesma resposta. Um silêncio domina os próximos minutos.

Chegando ao local de sempre, o assunto passa a ser as condições do rio e a possibilidade de uma boa pescaria. Contudo, Arnaldo não consegue se concentrar no assunto do amigo e nem em outro qualquer. Olhando as águas um pouco barrentas, que o assustavam e, ainda corriam mais aceleradas do que o normal, sentia que naquele instante sua vida parecia, também, estar mais rápida do que sempre foi. As águas um pouco turvas seriam por causa da chuva ou dos seus olhos que o deixara em dúvida sobre o que vira há pouco? Também seu coração, de que até então ele nunca havia percebido as batidas, passou a exibir sua participação dentro do seu peito.

Um pouco abaixo do local em eles se encontravam, as lavadeiras já estavam, há muito tempo, trabalhando duramente num local cheio de pedras, porém bastante raso. Elas conversavam sobre seus problemas diários e muitas vezes cantavam para espantar suas angústias. Embora algumas músicas relembrassem bons momentos vividos num passado não muito recente.

Ao mesmo tempo, os dois amigos conseguiram alguns peixes de bom tamanho e comemoram como em outras pescarias. Ainda assim, Arnaldo continuava observando cada detalhe do rio, como se fosse a primeira vez. O mesmo em relação ao local, a árvore que lhes dava sombra na hora do sol mais forte, a pedra em que ficavam sentados de maneira muito segura e confortável.

Chamou sua atenção um trecho de uma das canções que as lavadeiras cantadoras entonaram, “ as águas doces do rio vão trazer o meu amor, que foi e não voltou”.

Sua cabeça fervia… O coração acelerava… O pensamento zanzava.

Na volta para a casa, o silêncio incomodou tremendamente seu companheiro Everaldo, que em vários momentos falou sobre o êxito da pescaria, apesar das condições das águas não serem aquelas tão esperadas. Arnaldo mantinha o seu silêncio.

Ao chegar ao portão da casa do Everaldo, Arnaldo ficou com o olhar fixo na janela que estava aberta. Parado… estático e em silêncio. Por instantes seu amigo, bastante assustado, ficou só observando. Até que resolveu arriscar:

— O que está acontecendo? Alguma coisa está incomodando você?

— Alguma coisa me prende àquela janela.  Hoje cedo, antes de você chegar, vi uma jovem com um olhar estranho por apenas alguns segundos.

— Nunca lhe falei a respeito, mas isso ocorre quase sempre depois do temporal. Dentro da casa não percebemos nada, mas do lado de fora, sim.  O padre já veio e rezou. Um espírita também e, comentou que era de uma moça que num temporal foi arrastada pelas águas do rio e nunca foi encontrada. Arnaldo despediu-se do amigo e, muito pensativo, foi para sua casa.

Naquela noite mais um forte temporal. No dia seguinte Arnaldo sumiu, e seu corpo jamais foi localizado.

 

 

 

No meio do percurso… - Hirtis Lazarin

 



No meio do percurso…

Hirtis Lazarin

 

Caminhava eu feliz e confortável por uma estrada larga e promissora. A sombra do verde que a ladeava protegia-me do calor escaldante do sol e das tempestades que, inesperadamente, chegavam. Os troncos resistentes das árvores eram a minha segurança; agarrava-me a eles quando a ventania tentava me arrastar.

A lua observava-me silenciosa e sua luminosidade tênue não permitia que eu me desviasse do caminho. Punhado de estrelas inspirava-me a fazer poesia.

O amanhecer, com suas cores, aromas e brilho, rejuvenescia-me e enchia-me de energia. Aprendi a reconhecer cada pássaro pela melodia do seu canto. Em voo livre, sem medo e sem direção, fizeram-me valorizar a liberdade. 

Aprendi a exercitar o silêncio. O silêncio não comete erros, não magoa ninguém e acalenta nossos sonhos. É no silêncio que encontramos respostas às nossas dúvidas tão frequentes e comuns.

Mas… Eu não sabia que existia a palavra “MAS”…

Fui pego de surpresa. Uma porta enorme, feita de ferro pesado, caiu do nada, a minha frente, e interrompeu minha andança. Dei um pulo atrás para que meu pé não fosse dividido em dois. Foi tudo tão rápido que não deu tempo pra eu ver como foi plantada ali, bem pertinho de mim. Cair do céu ela não caiu. Um mistério.

Tentei arrumar explicações várias; primeiro, utilizando meus conhecimentos de física e matemática, mas todos passaram por ingênuos e descartáveis. Examinei-a, cuidadosamente. Era compacta. Alguém poderia estar escondido?  Nenhum rastro, nenhum ruído diferente, nada que indicasse a presença de um estranho.

Cheguei até a pensar em bruxaria ou coisas do outro mundo. Joguei esse pensamento longe, pois não era o momento para superstição.

Senti raiva, gritei palavrões e perdi o autocontrole quando, inexplicavelmente, o dia virou noite. Não enxergava mais nada. Chutei e esmurrei a porta, por quantas vezes não sei. Só parei quando o sangue escorria pelas minhas mãos e pés.

Atônito e sem saber o que fazer, joguei-me ao chão. Senti muita… muita dor. Espinhos, que a relva fresca escondia, feriram-me o rosto e, pela primeira vez, chorei. Chorei até à exaustão.

Adormeci. Sonhei com monstros que devoravam cada pedacinho de mim. Só restava meu coração para que a morte me engolisse.

Não sei quanto tempo se passou…

Acordei com o toque de uma varinha mágica. Abri os olhos e tudo continuava escuro. Ouvi palavras macias e acolhedoras. Conselhos de mãe.

Levantei-me sem pressa. Depois de algumas flexões, senti os músculos enrijecidos.

Sem nada enxergar, arrastei os pés até a porta que permanecia desafiadora. Tateei-a, detalhadamente, sem pressa nem alvoroço. Era uniforme e não tinha fechadura. 

Mas… Outro “MAS”… apareceu.

À esquerda, bem lá no topo da porta, senti um pontinho saliente, perdido no negro inabalável. Ensaiei várias vezes até tocá-lo levemente. Nada aconteceu. Criei coragem e, sobre ele, pressionei o dedo indicador com toda força que eu tinha.

A porta deslizou sobre os trilhos, silenciosa e macia. Tão macia quanto o levantar voo de um cisne.

Não podia perder tempo nem a oportunidade. Corri para o outro lado. Venci o obstáculo.

Sem olhar para trás, continuei minha caminhada.

Reconectado à esperança… 

SILÊNCIO QUE CHORA - Hirtis Lazarin



SILÊNCIO QUE CHORA 

Hirtis Lazarin  

                  

                       Dois de Novembro


Dia de silêncio, de verdade.

                                 Reflexão

                                 Saudade

Daqueles que não mais estão.



             Dois de Novembro de 2022

Dia sombrio, escuro

Silhuetas de negro, eretas

Trazem a constituição

                        rasgada

                        alterada.

                        Cadê a explicação?



Bandeira verde-amarelo 

A meio-pau hasteada

Esconde seu flagelo.                                                                                                                                                                                                                                                        

                                                  Grilhões enferrujados

                                                  De fogo e de nós

                                                  Sufocam-lhe a voz.

          

                                   

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Tornei-me um rio - Adelaide Dittmers

 


Tornei-me um rio

Adelaide Dittmers

 

Em um momento inesperado, minha vida se transformou em um rio caudaloso, onde pedras pontiagudas feriam meus pés. Lutava eu contra os obstáculos e o medo diante do desconhecido, mas a corrente me empurrava.  Não conseguia detê-la.  Assustada, percebi que me tornara parte da água turbulenta.  Desmanchei-me em brancas espumas.  Esbarrei em um barranco, onde havia um tronco perdido.  Era um redemoinho de emoções. 

Subitamente desabei com uma força intensa.  A sensação de perder o controle me agarrou por inteira.  O que estava acontecendo? Onde estaria eu despencando.  Cai com estrondo em águas revoltas.  Achei que fui empurrada para o fundo do rio e me tornaria aquela areia lamacenta do leito.

Aos poucos, senti ser puxada para cima e que a turbulência ia ficando cada vez mais fraca.  O rio se acalmara, correndo com suavidade e parecia se deleitar em sua caminhada.   Deixei-me deslizar, aproveitando com plenitude a conquista daquela paz reconquistada.

Entendi, então, que a vida nos traz momentos incontroláveis, em que nos sentimos impotentes diante de difíceis desafios e que temos que saber como conduzir a constante mudança, a que o nosso viver nos leva.

Compreendi que a sabedoria é não lutar.  Com paciência, esperança e superação podemos ultrapassar as dificuldades e, a cada instante, aprender a conduzir as surpresas e mudanças que serão parte de nosso caminho, que também é repleto de belas paisagens e águas mansas e límpidas.

Caminhando eu vou… - Hirtis Lazarin

 


Caminhando eu vou…

Hirtis Lazarin

 

O rio da minha vida caminhava sereno e abundante.

Cantarolava feliz acompanhando a melodia dos pássaros e superando obstáculos. Colhia e espalhava o cheiro do mato e alegrava o pescador que se fartava dos meus frutos.

Inesperadamente, a chuva desapareceu e a seca prolongada e impiedosa me atingiu.

O verde das árvores amarelou e, ressequido, foi levado pelo vento.

As águas diminuíram, pedras de todos os tamanhos emergiram e o meu âmago ficou exposto ao sol abrasador.

Pensei que seria o meu fim.

Mas agarrado à esperança, caminhando eu vou

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

    O cãozinho aventureiro Alberto Landi                                       Era uma vez um cãozinho da raça Shih Tzu, quando ele chegou p...