A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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terça-feira, 17 de agosto de 2021

Por um triz - Adelaide Dittmers

 



Por um triz

Adelaide Dittmers

 

O jovem andava apressado. O rosto contraído e sério tinha uma expressão de desespero.  Não enxergava ninguém à sua frente. Esbarrava nas pessoas.  Parecia um autômato movimentando pela multidão. Pensamentos contraditórios chocavam-se em sua mente pela derrota que teve naquele concurso.  Tinha se esforçado tanto.  Atravessou várias madrugadas sem dormir.  Como iria contar isso ao pai, que sempre fora tão exigente e não admitia derrotas. Durante a infância e adolescência era cobrado a todo instante pelo seu desempenho.  Queria que o filho fosse seu espelho.  Um vencedor.

 Nunca quis cursar direito.  Nunca almejou chegar a ser desembargador ou ser, como nos sonhos mais insanos de seu pai, um juiz da Suprema Corte. Estava farto de tudo isso. Perdera a namorada, porque era inseguro e não conseguia tomar decisões.

Com esses sombrios pensamentos, chegou ao edifício da empresa do pai para lhe comunicar o acontecido, mas subitamente, um desejo premente de tomar ar antes de enfrentar a ira dele o levou ao terraço do último andar do prédio.

 Ao chegar lá, olhou a cidade, que se estendia embaixo, pontilhada por altos edifícios.  Quantas vidas atrás das muitas janelas, quantos dramas, quantas ambições, quantos fracassos, quantas vitórias.  A grande metrópole sempre lhe pareceu pulsar como um coração desvairado. 

Um helicóptero, que passou bem perto do terraço, o arrancou de seus pensamentos.  Respirou fundo e, de repente, uma vontade incontrolável de acabar com tudo apoderou-se dele.  Estava exausto da tirania e da vaidade do pai, de quem sempre recebeu minguados carinhos.

Olhou para baixo.  Tudo iria ser muito rápido.  Voaria para a liberdade.

Subiu na mureta e, quando se preparava para saltar, dois braços fortes o agarraram e o puxaram para trás.

— Moço, o que ia fazer?

O rapaz aturdido soltou-se do homem e caiu num choro convulsivo.

— Por que você me segurou?

— Um moço jovem como você, com a vida toda pela frente...

O moço olhou com atenção para o homem, que o impedira de se matar.  Era mais velho, vestia um macacão.  Devia ser um dos faxineiros da empresa.

— Minha vida não tem sentido. É um desfile de fracassos e desilusões. Disse, com as faces molhadas pelas lágrimas.

— Filho, disse o homem, ternamente. Não diga isso.  A vida é uma dádiva.  Um presente.  Você só tem que aprender a desembrulhá-lo.

— Fala isso para meu pai.

— Ah! Então é seu pai a causa do seu desespero. Livre-se da causa. Aprenda a fazer seu caminho.

Uma grande surpresa estampou-se no rosto lívido do jovem.  Como um homem tão simples podia lhe dar conselhos tão sábios.

— Como o senhor pode saber dessas coisas?

— Muitos anos vividos, filho.  Muitas lutas. Mas nunca desisti.  Nasci no sertão nordestino, onde o chão é seco, a gente planta e nada dá.  Menino ainda, andava muito longe para buscar água. Moço, vim para São Paulo, já com mulher e filhos.  A gente casa muito cedo por lá.  Como não conhecia as letras, só pude arranjar serviços muito simples.  Fui pedreiro, mas um dia caí de uma laje e tive sorte de não morrer. Quebrei as pernas.  Demorei a ficar bom e arranjei serviços de limpeza, que faço até hoje.

— Qual é a sua idade?

— Sessenta anos. Tenho muito orgulho que um filho meu fez faculdade e já tenho netos.

O rapaz olhou aquele homem, cuja pele enrugada pelo sol o fazia parecer bem mais velho.

— Quanta coragem! É o que me falta para realizar meus sonhos.  Exclamou mais calmo.

— E quais são os seus sonhos, moço?

— Ser escritor.  Gosto de escrever.  Tenho muita coisa escrita escondida na escrivaninha do meu quarto.

— Escondida! Por quê?

— Meu pai não acha que seja uma profissão séria e que dá dinheiro.

— É que ele não sabe o que a gente sente quando não sabe escrever e ler.  Meu filho, quando era estudante, lia para mim as histórias dos livros da escola. Aprendi muita coisa com ele.  Que coisa mais linda de ver.  Até me ensinou a escrever e a ler alguma coisa.  Foi o maior presente que recebi, conhecer um pouco as letras.

O rapaz comoveu-se e admirou mais ainda aquele homem, que lhe atravessou o caminho para o salvar, não só da morte, como da vida que não tinha.

Em um gesto súbito, pegou as mãos ásperas e calejadas do seu salvador e apertou-as entre as suas.

— Obrigado! O senhor me salvou hoje por duas vezes e nem sei seu nome.

— Sebastião! E o seu?

— Rodrigo!

Os dois levantaram-se.  Sebastião fixou seus olhos carinhosamente em Rodrigo e disse com um sorriso:

— Vá Rodrigo! Siga a vida que você quer. Não olhe para trás.

— Nunca vou me esquecer do senhor. Mais uma vez obrigado, e o abraçou fortemente, entregando-lhe um cartão de visitas.

— Meu cartão.  Me ligue quando puder, e se precisar de alguma coisa. Vou ficar muito feliz de tornar a vê-lo.

Sebastião acompanhou-o com um olhar feliz, ao vê-lo sair.  Tinha salvado uma vida.

Rodrigo acenou da porta e saiu do terraço.  Desceu diretamente para a rua. Não passou pelo escritório do pai. 

Decidiu que ia sair de casa e seguir um novo caminho. Ia viver, finalmente.

O LÁPIS DE COR - Alberto Landi

 




O LÁPIS DE COR

Alberto Landi

 

Havia uma caixa de lápis, de cores maravilhosas! Mas um deles se sentia muito triste, era o de cor preta.

Ele se sentia o pior de todos. Pois ele era a ausência de outras cores. Às vezes ele estava de bom humor. Ficava até “lúdico” com as crianças que o utilizavam para desenhar. As vezes se mostrava “matreiro”. Deixando sua ponta grossa só para desagradar as crianças.

As pessoas só o escolhiam para desenhar ou pintar coisas sem muita importância. Mas ele fazia tudo para se destacar. Se mostrar útil e “preciso” apesar de suas limitações.

Os outros percebiam que o lápis preto se destacava dando um sombreado mais nítido em tudo, e tentavam agradá-lo.

O Amarelo desenhava caricaturas para que se divertisse.  O Vermelho enchia o papel de corações, mostrando quanto o amava. O Azul o levava às profundezas do mar proporcionando fantástica viagem ao mundo de cores azuladas. O Verde o colocava em uma imensa floresta misteriosa. O Laranja lhe mostrava o brilho do sol com seus raios brilhantes e reluzentes.

Mas, ele continuava triste. Foi então que ele percebeu que lá no fundo da caixa, havia um lápis bem quietinho, totalmente sem uso, abandonado.

Era o Branco.  Curioso ele perguntou:

— Por que você está tão só?

O lápis Branco respondeu:

— Estou aqui pensando que nem sempre a ausência de cor é tão ruim.

— Como assim? Indagou o lápis preto

— Eu só posso ser utilizado em um fundo colorido.

— Tive uma ideia, falou o lápis preto pensativo. Que tal ficarmos juntos?  É simples, eu posso colorir o fundo do papel e você o desenha, assim um ajuda o outro.

Os dois ficaram felizes.  Pois, nunca imaginaram que duas cores tão diferentes, combinariam tão bem. E dessa forma, saíram fazendo arte com as crianças.

Afinal de contas, “é preto no branco”!

A oportunidade - Adelaide Dittmers

 



A oportunidade

Adelaide Dittmers

 

Era uma noite quente e seca.  O menino estava com sede e a fome lhe corroía o estômago.  Desamparado, percorria as ruas, estendendo as mãozinhas, para pedir uns trocados às pessoas, que passavam indiferentes e apressadas.

O rosto exprimia cansaço e desalento.  O olhar refletia um desamparo, que parecia envolver seu corpo frágil. Roupas nada limpas e um par de tênis, que devia ter passado por muitos pés,  mostravam a penúria em que vivia.

Subitamente, reparou que uma senhora estava tirando a carteira da bolsa, em frente a uma banca de jornal.  Um pensamento lhe atravessou a cabeça como um raio e sem resistir, passou por ela correndo e arrancou a carteira de suas mãos,

— Pega ladrão, gritaram as pessoas que viram o roubo.

E o menino, apesar da fraqueza, serpenteou pelos transeuntes, tentando fugir com o que tinha roubado.  Na sua consciência não havia culpa.  A única preocupação era escapar, sentir-se seguro e comprar algo para saciar a fome, que lhe roía as entranhas.

Como um animalzinho que escapa de seu predador, continuou a sua desabalada corrida.  Quando estava longe, parou sob uma árvore, abriu a carteira e contou o dinheiro.  Duzentos reais.  Quanta grana, pensou.  Tivera sorte.  Jogou fora a carteira e enfiou o dinheiro nos bolsos da surrada calça.

Mais adiante, entrou em um boteco e pediu um prato feito.  O dono o olhou com desconfiança, ao que ele lhe mostrou algumas notas, que tirou do bolso.

O homem trouxe, então, um prato cheio de arroz, feijão e carne,  que o menino devorou, como se nunca tivesse comido nada em sua vida.  Pediu um copo de água, que bebeu de um gole só.

Satisfeito e alimentado, continuou sua caminhada pela cidade, que sempre lhe parecia indiferente a sua miséria e solidão.  Depois de muito andar, chegou a um viaduto.  Embaixo, amontoadas, muitas pessoas dividiam um espaço precário.  Fogareiros improvisados, sacolas de alimentos e roupas deixadas por boas almas, que por ali passavam, espalhavam-se pela estreita calçada.  Um mundo diferente e sórdido na cidade rica.

Josué aproximou-se de uma das famílias e logo uma mulher sem os dentes frontais veio ao seu encontro.  Estava barriguda, prenha de mais um filho.

— E aí, você conseguiu alguma coisa?

O menino olhou-a com raiva.  Era sua madrasta, que só pensava em explorá-lo, mandando-o a mendigar nas ruas.  Sua mãe morrera, quando tinha sete anos e há quase quatro anos convivia com ela, irmãos e o pai bêbados.  Os seus onze anos de vida eram marcados por abandono, desesperança e maus-tratos.

— Consegui.  E tirou do bolso trinta reais, que estendeu a ela.

— Só isso? Perguntou a madrasta com uma careta de desprezo.

— Só! Respondeu bruscamente. Virou-se e foi se sentar encostado à parede do hostil viaduto.  Nunca que iria dar mais dinheiro àquela bruxa, pensou,  e um ódio silencioso espalhou-se pelo seu olhar.

Ajeitou a cabeça na parede dura e começou a imaginar o que faria com sua pequena fortuna. Foi a primeira vez que roubou.  Não era o que queria fazer, mas talvez o único caminho. Pedir não lhe rendia quase nada, apenas uns parcos trocados.  Roubar era arriscado, mas não fora difícil tirar a carteira da mulher.  Se conseguisse mais dinheiro, poderia fugir dali, talvez alugar um quarto em uma favela e livrar-se do pai inútil e da madrasta exploradora.

Aos poucos, dormiu embalado pelo sonho de se libertar daquela miséria e pelo menos ter o que comer e uma cama, mesmo que tosca, onde descansar.  Um sorriso puro de criança aflorou em seu rosto adormecido.  Talvez o último sorriso inocente da triste e perdida infância, porque, quando acordasse no outro dia seria um outro menino, que seguiria por um caminho tortuoso e perigoso.

O cãozinho aventureiro - Alberto Landi

    O cãozinho aventureiro Alberto Landi                                       Era uma vez um cãozinho da raça Shih Tzu, quando ele chegou p...