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segunda-feira, 6 de maio de 2024

As Meninas da Casa Verde – CAITANA - Adelaide Dittmers

 


As Meninas da Casa Verde – CAITANA

Adelaide Dittmers

 

Caitana, a mais velha das meninas da Casa Verde, muito religiosa e sóbria, era respeitada pelas irmãs.  Ditava as regras de conduta e influenciava o comportamento delas.  Muitos segredos eram trocados entre as meninas sem o conhecimento dela.

Os passeios pela São Paulo do fim do século XVIII eram sempre alegres e esperados pelas jovens, que se divertiam umas com as outras.  Sempre juntas, parecia um bando de pássaros, gorjeando pelas ruas estreitas da cidade e se deliciando com os olhares cobiçosos dos rapazes, escondendo com as mãos enluvadas os sorrisos arteiros, que esses olhares despertavam. Caitana as censurava com um olhar penetrante, mas no íntimo se enternecia ao ver as irmãs felizes ao atraírem a atenção e muitas vezes os sorrisos galanteadores dos jovens, que tiravam as cartolas para as cumprimentar.

Ao voltarem para casa, cochichavam e riam do interesse que despertavam por onde passavam. Caitana fingia que não percebia o entusiasmo das irmãs, mas se preocupava com os desejos de romances tão marcantes nessa idade.

Muito ricas, Caitana temia que muitos pudessem se aproximar delas movidos por interesses financeiros, mas havia um motivo mais forte, que a levava a esse temor.

Certa tarde, em que uma chuva de verão cobria a cidade, ela sentou-se no terraço, os olhos perdidos vagando ao redor sem realmente ver alguma coisa.  Lágrimas discretas brilhavam nos belos olhos castanhos. Os pensamentos e o coração estavam em outro lugar da cidade, onde habitava seu segredo.  As irmãs sentadas à volta de uma mesa faziam seus jogos favoritos, gritando umas com as outras.

Hipnotizada pelo tamborilar da chuva no telhado, as lembranças inundaram-na como uma avalanche. Os dias em que passava no sítio do irmão José Arouche, muito conceituado e conhecido na São Paulo daquela época. O cafezal, que cercava a casa grande, o arrozal um pouco mais distante, as longas cavalgadas pela região e os banhos nas águas cristalinas do rio Tietê.

Uma lágrima teimosa despencou pelo seu rosto, quando se recordou de um dia quente de verão, em que as jovens se deliciavam com um refresco no grande terraço da casa da fazenda, quando um bonito corcel negro se aproximou a galope, trazendo na garupa um elegante rapaz.  Curiosas e surpresas levantaram os olhos dos copos. Quem seria ele? As meninas mais novas, crianças ainda, correram alvoroçadas para chamar o irmão, que apareceu, e ao ver o cavaleiro, seu rosto se iluminou com um grande sorriso.

— Amadeu, meu amigo! Que surpresa! Até que enfim está cumprindo sua promessa!

O viajante apeou e veio de encontro do amigo.  Abraçaram-se e apertaram as mãos. 

— Como prometi, vim passar uns tempos com você para relembrar os bons tempos, que passamos juntos.

Amadeu morava no interior de São Paulo, onde seu pai era um grande e poderoso fazendeiro de café.

Subiram as escadas juntos e ao chegarem ao terraço, o moço cumprimentou as meninas, baixando a cabeça respeitosamente, mas seu olhar se deteve em Caitana, que, aos dezoito anos, exalava uma beleza delicada e graciosa.  A jovem baixou os olhos, sentindo um calor subir-lhe as faces.

Os dois amigos passaram o dia conversando e José conduziu Amadeu pelo cafezal, enquanto as meninas caminhavam pelas margens do rio, rindo e comentando a chegada do hóspede.

Caitana seguia-as sem prestar atenção ao falatório delas.  O olhar intenso do rapaz a atingira com uma intensidade que nunca sentira.

No dia seguinte, ele aproximou-se da moça e começaram a conversar, ela, porém, mal conseguia encará-lo.  A timidez ruborizou seu bonito rosto. Aos poucos se deixou levar pelos assuntos leves e divertidos de Amadeu, que ao saber que ela gostava de cavalgar, combinou de saírem para um passeio no fim da tarde.

 

As cavalgadas tornaram-se constantes.  Os dois passavam horas pelos caminhos, apeavam para passear pelos campos ou pela beira do rio, onde tiravam as botas para refrescarem os pés na água gelada e transparente.

Aos poucos, uma paixão incendiou o coração dos dois, que disfarçavam o que estava acontecendo, diante da família.  Junto às meninas brincavam e escondiam os sorrisos cúmplices do namoro, que acontecia entre os pés de café, nas grandes cavalgadas ou em um pequeno barraco, onde eram guardados utensílios para a lavoura.

O tempo foi passando e um vento fresco anunciou a chegada do outono. Uma manhã iluminada pelo sol chegou vestida de cores suaves. Na grande sala, o café farto foi servido.  As meninas não paravam de tagarelar ao programar o dia.  Caitana e Amadeu, no entanto, estavam mais calados.  Ele tinha que voltar à fazenda da família.  Na noite anterior, tinham se comprometido a se corresponder até ele voltar, quando então contariam para todos sobre o amor que os unia. Preocupado disse a Caitana, que tinha que conversar com o pai, que era muito rígido, sobre o namoro. Ela notou uma certa reticência ao lhe falar sobre isso, mas presumiu que era a emoção pela despedida que se aproximava.

De volta à casa verde da cidade, a rotina as envolveu.  Dois meses passaram e apesar de ter enviado várias cartas para o namorado, não recebeu nenhuma letra dele. O abatimento e o olhar triste apagavam a vivacidade do seu rosto.  Não conseguia entender o comportamento de Amadeu.

Começou a sentir-se indisposta.  Não suportava o cheiro da comida, que a nauseava.  Os vestidos a apertavam.

Estava distante e ansiosa, sempre perguntando para Tiana, a mucama das meninas, se não chegara nada para ela. 

A escrava estava assustada, principalmente porque percebeu a falta de regras da moça. Então, em uma tarde que estavam a sós em casa, armou-se de coragem e com voz trêmula perguntou:

— Nhazinha, o que vosmecê andô fazendo?

Caitana arregalou os olhos:

— Por que está me perguntando isso, Tiana?

— Porque a sinhazinha vive enjoada e as regras pararam.  Vive nervosa esperando alguma coisa, que num sei o que é.

— O que isso quer dizer?

—Vosmecê teve com algum home?

Caitana prendeu a respiração.  De repente, jogou-se no corpo macio da mucama, que a abraçou.  Quantas vezes acalentara aquela menina, que viu nascer e a quem amamentara.  As lágrimas das duas se misturaram. 

— Como você sabe, Tiana?

— Vosmecê tá esperando um fio.

Os soluços sacudiram a jovem e de repente ela desfaleceu.  A escrava a amparou, levando-a para um sofá.  Rapidamente foi a procura de sais.  Caitana foi voltando devagar.  O olhar pálido fitou Tiana procurando ajuda.

— Vão me apontar o dedo como uma mulher sem caráter. Vou me tornar uma excluída na sociedade. Meu irmão ficará furioso e não vai aceitar e se ainda descobrir quem é o pai, poderá acontecer uma desgraça. O que vai ser de mim?

—Vamo escondê isso.  Ninguém vai sabê.

— Como? Lágrimas amargas inundaram o seu rosto.

— Os vestidos das meninas são bem armados.  Mais armações vão escondê sua barriga

— E quando a criança nascer? Disse com a voz entrecortada pelo choro.

— A menina não pode ficá com ela.  Tem o convento de freiras, que muita moça deixa crianças. Levo lá.

A moça inclinou-se, as mãos encobrindo os olhos.

— Não sei se vou conseguir abandonar um filho!

— Não vamos deixá na roda.  Falo com as freiras de quem é a criança.  Elas sabem guardá segredo. Podemos ir vê ele sem ninguém sabê.

A jovem abraçou novamente a mucama, buscando refúgio nos braços fortes dela.

Os dias cinzentos do inverno chegaram com ventos gelados e uma garoa que salpicava a cidade com suas gotas finas. As sete irmãs ficaram aconchegadas dentro de casa. Espalhadas pela grande sala e armadas de bastidores, passavam os dias bordando e tagarelando.  Caitana as observava, disfarçando a tristeza e o medo de ser descoberta.

Em uma madrugada fresca de outubro, sob um céu estrelado e uma lua cheia, que prateava a cidade e o aroma das flores noturnas da primavera espalhava-se pelo ar, Caitana acordou com fortes dores.  Sentou-se na cama e um líquido escorreu pelas suas pernas.  Com uma das mãos tapou a boca para impedir que um grito de dor acordasse uma das irmãs, com quem dividia o quarto.  Com dificuldade, arrastando os pés, saiu de mansinho pelo comprido corredor, que levava até o quarto da mucama, que ficava no fundo da casa. No meio do caminho, parou, segurando a barriga e contraindo-se, pela dor lancinante que atravessou seu corpo. Bateu à porta e a sombra da fiel negra apareceu.

— Chegou a hora.  Vou morrer.  É muita dor!

Calada, Tiana a conduziu a sua cama e fez com que se deitasse. Acendeu uma vela, que colocou ao lado dela.

— Vou buscar um candelabro e Justina, que já trouxe muitos meninos a este mundo.  Calma, fia!

Tiana e Justina trouxeram água quente e ficaram ao lado dela, acalmando-a e incentivando-a, quando as fortes contrações a contorciam.  Depois de algumas horas, o choro do bebê encheu o pequeno aposento. Tiana o embrulhou em várias mantas.  Caitana pediu para segurá-lo.  Um menino rosado fazia careta, mexendo a boquinha.  Ela o apertou junto ao peito, molhando o pequeno com suas lágrimas.

Tiana e Justina se entreolharam.  Sabiam o que ela estava sentindo, a dor de ter filhos arrancados de seus braços.

— Sinhazinha, tenho que levá a criança.  Daqui a pouco o dia chega.

Delicadamente tirou o bebê dos braços de Caitana e virando-se para Justina, disse, indicando uma cadeira.

— Ponha essa camisola limpa nela e leve ela para o quarto.  Vai muito devagar para não acordá Maria Rosa. E voltando-se para Caitana:

— Amanhã a sinhazinha fica na cama. Pra todas, vai tá doente.

Saiu pela porta afora com passos rápidos.  Atravessou as ruas vazias do fim da madrugada quase correndo.  Alcançou o convento e tocou o sino da porta.  Uma freira sonolenta apareceu já acordada para as orações matinais.  Como combinado, entregou a criança, dizendo de quem era e que o segredo tinha que ser mantido. Viria visitá-lo sempre que pudesse.  Entregou uma bolsa de pano com muito dinheiro, recomendando que ele fosse bem cuidado.  Deveria ser batizado com o nome Joaquim. A freira mandou-a entrar e chamou a madre superiora a quem contou o que estava acontecendo.  A superiora olhou com piedade para a criança e prometeu que nada faltaria ao menino.

Caitana permaneceu alguns dias na cama, mas se levantou antes do fim do resguardo.  Não queria muitas perguntas sobre sua doença.  Disfarçava, com sorrisos, a tristeza que lhe comprimia o coração.  Daquele dia em diante, redobrou os cuidados com as irmãs, sendo mais rígida com o comportamento delas, pois não queria que uma das meninas tivesse o mesmo destino dela. 

Em algumas noites, enquanto a casa dormia, ela e Tiana sorrateiramente iam até o convento para ver o menino.  A jovem passava as mãos pelos cabelos dele, já adormecido e o beijava ternamente.

Cinco anos haviam passado.

Envolvida em suas lembranças, assustou-se quando uma das irmãs a chamou:

— Caitana, vosmecê está no mundo da lua.  No que está tão concentrada e distante?

Ela sacudiu a cabeça e os pensamentos.

— O que foi, Pulquéria?

— Estamos combinando a nossa ida para a fazenda, amanhã. Esqueceu que o José vai receber a visita daquele moço, Amadeu, de quem vosmecê ficou tão amiga.

Caitana estremeceu.  Claro que lembrava, essa visita é que a fez recordar de tudo o que tinha acontecido. Como ela iria encará-lo?  Fora enganada, mas tinha que ter forças para encobrir os sentimentos de decepção e mesmo de raiva, que tinha por ele.  Uma certeza ela tinha, que iria lhe contar sobre a existência do filho.

Sol e uma temperatura agradável receberam o dia que nascia, envolto por um céu colorido pelos tons suaves do amanhecer. Na casa verde, as meninas se vestiam alvoroçadas e apressadas para irem à fazenda do irmão.   Estavam ansiosas para rever Amadeu, de quem tinham boas recordações. A inquietude de Caitana estava espelhada no seu olhar distante e distraído.

Perto das dez horas da manhã chegaram à fazenda.  A algazarra ecoava nas paredes da sala, com todas querendo falar ao mesmo tempo.  A irmã mais velha era a única, que conversava com José com voz baixa sobre assuntos da fazenda.

Quando o sol estava a pino, uma nuvem de poeira anunciou a aproximação de uma charrete, puxada por dois cavalos e dirigida por um cocheiro negro.  Nela um casal e uma criança eram sacudidos pelos desníveis da estrada.

As seis meninas e o dono da casa apareceram no terraço atraídos pelo trotar dos belos animais.  As jovens acenaram para os viajantes, dando-lhes as boas vindas. Mais atrás, com passos lentos, Caitana chegou até eles.  A palidez encobria o belo rosto, o coração quase escapava pelo peito, que subia e descia sem controle.

O cocheiro puxou as rédeas com força e parou em frente à casa.  Todos, com exceção de Caitana, desceram para receber os visitantes. A moça apertou as mãos na grade do terraço ao ver Amadeu chegar acompanhado.  Tudo girou à sua volta.  Respirando fundo, conseguiu se controlar.

Amadeu subiu as escadas com a menina no colo.  Ao se deparar com ela, seu rosto foi coberto por uma nuvem de tristeza. Os dois de cumprimentaram com um baixar de cabeças. Ele constrangido e ela secamente.

O almoço transcorreu alegre, somente Caitana se manteve silenciosa.  Sorrisos apagados surgiam no seu rosto.  O olhar triste pousou algumas vezes na esposa de Amadeu.  Não era uma mulher bonita.  Pouco falava e a atenção era dirigida à filha ao seu lado.  Em certo momento, os olhares de Amadeu e Caitana se cruzaram e ela baixou os olhos.

Depois do almoço, todos foram para o terraço.  Caitana se desculpou, dizendo que estava com dor de cabeça e se retirou para o quarto.  No fim da tarde, as meninas e Amadeu resolveram encilhar os cavalos e dar uma volta pelas redondezas, enquanto José e o capataz inspecionavam a plantação.  A mulher do visitante levou a menina para ver os animais da fazenda.  Ela não gostava de cavalos.  Bordar era sua atividade preferida. Calma e introvertida parecia uma sombra quando estava ao lado do exuberante marido.

Caitana apareceu, quando o dia  já se despedia vestido das cores prateadas do anoitecer.  Amadeu se aproximou dela, perguntando-lhe se estava melhor.  Balançando a cabeça, ela respondeu que sim e fixando os olhos nele, disse em voz baixa e firme:

— Precisamos conversar.  Amanhã vou esperar vosmecê perto do barraco dos utensílios da lavoura.

E se afastou.  O moço engoliu seco. A determinação dela o assustou.  O que podia esperar dela. O arrependimento de ter aceitado o convite do amigo enrugou seu rosto. Ele sabia o tamanho do erro, que tinha cometido contra ela.

Naquela noite nenhum dos dois conseguiu dormir.  Ele, na expectativa do que viria da parte dela. E ela pela gravidade do que iria lhe contar.

Logo, após o café, Caitana saiu a cavalo.  Meia hora depois, Amadeu disse que iria dar um passeio e saiu a pé para disfarçar o encontro.  Tinha que andar uma longa distância para chegar ao lugar marcado e precisava de tempo para enfrentar aquela conversa, porém, não podia fugir a essa situação, devia isso a ela.

Avistou-a sentada na relva, que descia como um tapete verde até o rio.  Suspirou fundo e se aproximou.  Ela se virou devagar, mas não se levantou.  O olhar frio o atingiu como um punhal. Ele sentou-se ao lado dela e ela disparou:

—Como vosmecê ousou fazer isso comigo, sendo amigo do meu irmão, traindo sua confiança e me enredando em uma teia de falsidades.  Eu acreditei no seu amor e me deixei levar pela sua lábia.  Não respondeu às minhas cartas, tratando-me como uma qualquer, que tivesse encontrado por aí e não como uma moça de boa família.

Ao terminar todo seu corpo tremia.  O moço baixou a cabeça, a mão nervosa revolvendo a relva.  Um pesado silêncio se abateu sobre os dois.  Vagarosamente levantou os olhos para ela:

— Não foi minha intenção desrespeitá-la e magoá-la. Eu me apaixonei por vosmecê. Nunca senti nada assim por ninguém.  Meu erro foi me ter deixado levar por esse amor. Estava comprometido a casar com uma jovem, que hoje é a minha esposa. Nunca a amei e não a amo, apenas a respeito. Só aceitei essa união obrigado pelo meu pai.   Você não o conhece, é um homem rígido e de temperamento forte.  Não admite ser contrariado.  Arrumou esse casamento com a filha de um grande fazendeiro da região pela ambição de que no futuro eu iria ter terras a perder de vista.  Mas eu não queria me casar com ela e vim para cá para fugir às imposições dele e deixar o assunto esfriar.

Ele respirou fundo e calou por um momento para se recuperar.  A jovem olhou para ele surpresa com o desabafo.  E ele, com o olhar perdido no horizonte, continuou:

Quando voltei daquela temporada que passei aqui, contei a ele que tinha conhecido a moça dos meus sonhos e que não iria me unir a escolhida por ele. Ficou furioso, disse que só se eu passasse por cima do seu cadáver.  Que palavra dada era palavra cumprida.  Ele conhecia sua família, mas mesmo assim não quis ceder. Começou a ter dores no peito e fiquei com medo que tivesse um ataque de coração. O pavor disso me acovardou.  Fui um fraco.  Perdoe-me.  Por isso não respondi as suas cartas.  Não sabia o que iria lhe dizer.  Não suportava lhe contar tudo isso.

— Então não devia ter me iludido.  Deveria ter me contado sobre tudo isso.  Disse friamente e acrescentou com uma voz trêmula.  Não o chamei para esta conversa só para despejar minha indignação contra vosmecê e sua covardia.  Tenho algo muito mais importante para revelar.

O rapaz olhou-a assustado.

— Tive um filho seu, que ninguém sabe de sua existência, só minha mucama, que é como uma mãe para mim e outra escrava. A voz de Caitana era como uma lâmina que cortou o ar.

Amadeu recuou como se tivesse levado uma bofetada. O choque paralisou seus movimentos e as palavras ficaram presas em sua garganta.

— Não lhe escrevi sobre minha gravidez, porque já não esperava mais nada de vosmecê, depois de seu silêncio.

Ele balançou a cabeça de um lado para outro.

— Mas se tivesse contado, talvez tudo tivesse sido diferente. A voz soou como uma rajada de vento.

O que foi feito da criança? É menino ou menina?

— Menino.  Tem cinco anos e foi entregue a um convento. Tanto a mucama como eu o visitamos, sempre que possível, sem que ninguém perceba e quando o fazemos levamos dinheiro para ajudar as freiras para ele ser bem cuidado, se bem que todas elas se afeiçoaram a ele.

 

Lágrimas toldaram a visão de Caitana.   Amadeu segurou as mãos da moça, tentando conter a emoção, que o tomou por inteiro.

 

— Perdoe-me pelo sofrimento que lhe causei!

 

— Não estou revelando tudo isso por nada.  Quero lhe pedir para tomá-lo como filho.  Ele merece um lar e uma boa educação.  Sei que vai ser difícil aparecer com uma criança diante de sua mulher...

 

Ele a interrompeu: 

 

— Há muitos casos assim por aí.  Posso inventar que foi um deslize com uma moça qualquer daqui.  Minha mulher não manda nada e tem uma boa índole e meu pai deseja muito um herdeiro homem e vai aceitar, ainda mais que minha mulher teve um parto muito difícil e não  pode ter mais filhos.

 

— Então vosmecê aceita ficar com ele. Sentimentos contraditórios a possuíram nesse momento.

 

— Sim, é meu dever para com ele e vosmecê.

 

— A única coisa que lhe peço é que sempre me envie notícias.  Por favor, jure que vai fazer isso.

 

— Não preciso jurar.  Prometo. É uma enorme dívida que tenho em relação a vosmecê.  E pode não acreditar, mas vosmecê foi e será sempre o amor de minha vida. Dizendo isso a abraçou, comovido. Ela o afastou delicadamente.

 

No começo da tarde, dizendo que tinha negócios a tratar na cidade, foi até ao convento ver o filho e pedir sua guarda.  As freiras ficaram felizes ao saber que o menino iria ter um lar e que ele era o pai da criança. Na volta conversou com a esposa sobre ter tido um filho antes de casar e sem muitas explicações disse que o levaria para criá-lo e que não queria que ninguém da família de José soubesse disso. A mulher recebeu a notícia com tristeza e resignação.

 

Depois da difícil conversa, Caitana resolveu voltar para a Casa Verde.  As irmãs se revoltaram.  Queriam aproveitar mais os passeios e a companhia das visitas.  Ela aceitou que ficassem, mas que precisava resolver assuntos importantes na cidade.

 

Ao chegar procurou Tiana e contou-lhe sobre o encontro com Amadeu e o que tinha sido resolvido. Elas se abraçaram chorando de tristeza e de alegria ao mesmo tempo, porque Joaquim teria finalmente uma família.

 

Quinze anos passaram, Caitana perambulava pelo cafezal deserto àquela hora do dia.  Abatida, quase arrastava os pés pelo chão.  Tinha perdido mais uma irmã para a tuberculose.  Sentia-se como tivessem lhe arrancado mais uma parte do corpo.

 

De repente, José veio ao seu encalço.

 

— Caitana, temos uma visita.

 

— Não desejo ver visitas.  Por favor, deixe-me só.

 

— Entendo sua dor.  Também não queria ver ninguém, mas é o filho de Amadeu, meu grande amigo.  Está só passando por aqui.  Viaja amanhã para Santos para pegar um barco para Portugal. Estudará em Coimbra.

 

Caitana estacou, disfarçando a emoção, que lhe amoleceu o corpo.  Respirou fundo e devagar.

 

Tempos a tempos, notícias sobre Joaquim eram enviadas a ela, mas não sabia que ele iria para Portugal.

 

— Vosmecê está bem?

 

Estou.  É que não estou preparada para receber visitas.  Respirou fundo novamente.  Mas vamos ver o jovem.

 

À frente da casa, o rapaz admirava o jardim e as árvores, de onde pendiam mangas e jabuticabas.  Quando sentiu a aproximação dos dois, virou-se e foi ao encontro deles. Estendeu a mão para Caitana e um olhar intenso a atingiu.  Ele sabe, ela pensou emocionada.  Instintivamente prendeu a mão do jovem com as mãos trêmulas.

 

— Meu pai pediu-me para conhecer seu grande amigo e família antes de embarcar.  Estou apenas de passagem.  Tenho que descer a serra, mas estou feliz em conhecê-la, Sra. Caitana.  Há pouco tempo, meu pai falou-me sobre a senhora e a amizade entre vosmecês. Posso lhe dar um abraço.

 

A comoção paralisou-a por um momento e ela concordou com um leve balançar de cabeça.  O choro veio manso e contido.  José disse rindo:

 

— Minha irmã sempre se queixou de não ter casado e ter sido mãe. E reclama até hoje das regras rígidas de nossos tempos em que os filhos têm que fazer casamentos arranjados pelos pais.

 

Mãe e filho se entreolharam e um sorriso terno iluminou suas faces.  O seu segredo estava ali diante dela e não poderia ser revelado.  Colocando as mãos no rosto de Joaquim e derramando um doce e significativo olhar, disse devagar:

 

— Verdade, meu irmão. Bem que eu gostaria muito que este belo moço fosse meu filho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Corda Bamba - Adelaide Dittmers

    Corda Bamba Adelaide Dittmers   Antonio recostou-se na espreguiçadeira do hotel.   Os olhos perdidos na imensidão do oceano.   Sen...