
Era  desnecessário sofrer  tanto
Hirtis Lazarin
 
      
 Charles era filho único de pais mais idosos.  Amor e carinho nunca
lhe faltaram, mas sempre acompanhados de normas bem rígidas.  Estudar
muito, não perder tempo e encarar a vida com responsabilidade.  O
resultado chegou na forma de um rapaz competente, seguro e aberto a novas
ideias.  Um líder nato.  Por mérito tornou-se o responsável por um
escritório contábil e mais quatro jovens promissores.  Duas lentes grossas
escondiam olhos pequenos e observadores.  Capazes de controlar cada
movimento de seus subordinados.  Embora cobrasse deles eficiência, atenção
e raciocínio rápido, era paciente e não se importava em gastar o tempo que
fosse necessário para treiná-los até que se sentissem seguros.  Charles
tinha coração de ouro: repartia conhecimentos, distribuía entusiasmo e doava
boa vontade.  
     Entretanto, algumas manias o
incomodavam e aos outros também.  Maníaco por arrumação e limpeza. 
Não tolerava nada que estivesse fora do lugar por ele definido.  As
gavetas sempre fechadas porque abertas denunciavam nossas defeitos, documentos
e pastas bem organizados ao lado do computador.  Celular, nem pensar. 
Uma caixa na entrada recolhia-os desligados. 
      A organização de sua mesa era o
exagero do primor, meio afeminada para um homem de um metro e oitenta, de
jeito educado e fino, mas viril.  Ao centro da mesa o computador imóvel
como se colado fosse com super bonder, à esquerda um porta-retratos dos pais, à
direita um vaso solitário de cristal que oferecia todos os dias uma rosa branca
à Nossa Senhora.  Sobre outra mesinha colada à sua, uma bandeja de prata
ornamentada com toalhinha de renda da Ilha da Madeira, presente da avó, um
copo, uma xícara e um pires de porcelana.
     No escritório não se podia
pronunciar a palavra ”problema” porque junto dela vinha uma série de
tropeços e muito azar.  Se Charles estivesse em pé, parado no mesmo lugar,
olhar perdido, mexendo nervoso nos botões da camisa, a ponto de arrancá-los,
era sinal vermelho.  Era fácil saber que algo o incomodava, difícil era
descobrir onde estava o erro.
     Era sexta-feira, primeira
reunião do ano no escritório central.  Charles chegou mais tarde ao
trabalho trazendo novidades e distribuindo bom humor.  Seria um príncipe,
não fossem as marcas profundas no rosto deixadas por um batalhão de espinhas que
o atormentaram tanto na adolescência.  Um sofrimento reprimido que lhe
presenteou com complexo de inferioridade somado à introspecção.  Ele
vestia um terno marinho bem talhado, camisa azul bem clarinho e gravata
vermelha.  Um executivo.  Luciana, a menina debochada, não se conteve
e gritou: "os sapatos!"  Os olhares num coro mudo convergiram
para os pés do chefe.  Uma confraternização de gargalhadas.  Era a
primeira vez que Charles colocava a cabeça fora da concha.  Nos minutos
próximos, escondeu-a novamente, todo desajeitado.
     Os funcionários chegaram às oito
e trinta, como todos os dias.  A porta não estava trancada e a sala
silenciosa na escuridão.  Estava estranho.  Charles chegava sempre
mais cedo, abria a porta, acendia as luzes, abria a cortina e o dia de trabalho
começava.  Chamaram a polícia e dois deles entraram armados.  A sala
estava um deserto revirado de ponta cabeça.  As cadeiras no chão, as
pastas e documentos espalhados, a cortina rasgada.  O estrago maior estava
na mesa de Charles.  O porta-retratos espatifado no chão, o vaso em cacos
sobre a mesa, a água escorria vagarosa danificando documentos e a rosa branca
desfolhada, não teve tempo de pedir socorro e morreu em paz.
     No banheiro, encontraram Charles
sentado no chão, sem camisa, pernas flexionadas e rosto enterrado entre os
joelhos.  Chorava e soluçava baixinho.  Muito lentamente levantou a
cabeça, rosto branco esverdeado, tremia tanto que demorou um século para
soletrar a primeira palavra: ba - ra - tas.  Baratas causavam-lhe
pânico.  Era medo, dor, muito sofrimento.  Tinha coragem para
enfrentar um animal selvagem, mas baratas ”NÃO”, “NUNCA".
     Charles nunca mais voltou ao
trabalho.

