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quarta-feira, 7 de julho de 2021

A escolha - Adelaide Dittmers

 


A escolha

Adelaide Dittmers

 

Silas olhava pela janela perdido em pensamentos. A chuva tamborilava na vidraça.  Sempre adorava sentir o barulho das águas, que desciam como bênçãos do céu, acalmando-o e deixando-o entorpecido.  Hoje, porém, não conseguia amenizar sua ansiedade e preocupações.  Acabara de se aposentar e sua renda não cobria as despesas rotineiras.  Dívidas estavam se acumulando.  Além disso, o casamento de mais de trinta anos desmoronava-se a cada dia.  Sua esposa adorava fazer compras e viagens, acusando-o de ser um fracassado.  A separação pioraria ainda mais sua situação.

O toque do celular assustou-o e despertou-o da absorção. Número desconhecido, e se fosse uma cobrança, mas ponderou que seria melhor saber do que se tratava.

Do outro lado da linha, uma voz masculina, de maneira muito educada o convidou para uma reunião no dia seguinte, que seria muito importante para ele.

Admirado e impulsionado por uma grande curiosidade, porque o homem sabia tudo sobre suas dificuldades, ele aceitou ir ao encontro.

Às três horas da tarde do outro dia, chegou ao lugar indicado. Uma construção de arquitetura arrojada erguia-se à sua frente. Entrou com passos lentos e indecisos, e deparou-se com um amplo saguão, onde se viam câmeras e telas com várias informações. Não havia recepcionistas, mas uma voz robotizada perguntou o seu nome e o orientou o caminho a seguir para a sala de reunião.

Espantado e confuso seguiu a indicação daquela voz.  Percorreu um corredor e ao fundo um homem de jaleco branco já o esperava.  Cumprimentaram-se secamente e entraram em uma sala, que parecia um laboratório, com balcões cobertos por frascos e paredes forradas de prateleiras repletas de livros.  O homem convidou-o a sentar-se à frente de uma escrivaninha branca, coberta por um vidro e com vários aparelhos estranhos.  Curioso, observou-o atentamente, tinha cabelos grisalhos, óculos e olhar intenso, nem a sombra de um sorriso se projetava em sua face.

Com uma voz pausada, começou a explicar-lhe o que queriam dele.  Apresentou-se como cientista chefe da organização, que era um laboratório de pesquisas avançadas e vanguardistas, onde realizavam experiências tão impactantes, que não podiam ser do conhecimento público. 

Explicou-lhe que o escolheram porque sabiam de seus problemas e que esse conhecimento fazia parte dos recursos tecnológicos de que dispunham.

Silas estava cada vez mais assustado e aturdido com tudo o que ouvia.  O que será que queriam dele?

O homem de jaleco branco chamou, então, por um comunicador uma pessoa e uma bela mulher entrou na sala e o cumprimentou, sentando-se em uma cadeira próxima ao chefe.

Nesse momento, o cientista começou a explicar o motivo do convite a Silas àquela reunião.

Estavam desenvolvendo uma pesquisa ultra-secreta, em que rejuvenesceriam o físico da pessoa em cerca de trinta anos.  A memória, no entanto, permaneceria e era uma mudança irreversível.  Essa pessoa seria monitorada e era proibida de contar a alguém ao que estava se submetendo.  Forjariam a morte dela para disfarçar seu desaparecimento repentino.  O prêmio seria cem milhões de dólares, uma mansão equipada, um avião particular e carros a escolher, e seria servido por empregados particulares.  Se ele não aceitasse o que lhe estavam oferecendo, teria que manter segredo pelo resto da vida e tinha três dias para dar uma resposta.

Silas estava atordoado, não conseguia articular uma palavra.  Sua expressão era de uma completa confusão.  Seria isso um sonho ou um pesadelo?

A moça permaneceu em silêncio e no fim da explicação, sorriu-lhe simpaticamente. Pareceu-lhe que ela era mais humana que o chefe.

Silas levantou-se com dificuldade e como um autômato despediu-se dos dois com apertos de mãos.

Naquela noite, não conseguiu pregar o olho.  Levantou-se e foi até a sala.  Olhou cada detalhe, cada quadro, cada objeto.  O que faria? Ficar trinta anos mais jovem, milionário e livrar-se de seus problemas pessoais não era uma má idéia. Seu coração galopava no peito, enquanto passeava pelo cômodo.  

Na manhã seguinte telefonou ao seu único filho e marcou um almoço.  Quando o filho chegou ao restaurante, foi surpreendido por um forte e afetuoso abraço do pai. Era um bonito rapaz de trinta anos, de olhar meigo e tranqüilo.  Muito parecido com ele nessa idade.

-Aconteceu alguma coisa, pai?  Você está bem?

- Estou.  De repente fiquei com saudades de você.

- Nos vimos há dois dias. Você está doente?

- Não. Fique tranquilo. Coisas de um velho de sessenta anos.

- Mas ter sessenta anos não significa velhice.

Sentaram-se à mesa, conversando e rindo felizes. Eram muito amigos. O moço estava contente de ver o pai alegre. Ultimamente o via sempre muito calado e desanimado.  Estava mais envelhecido, os cabelos tinham ficado brancos, mas mesmo assim era um bonito homem.

No fim do almoço, Silas abraçou o filho calorosamente, escondendo uma lágrima, que teimosamente surgiu em seus olhos.  O jovem estranhou a emoção do pai. O que estaria acontecendo com ele?  Aquele almoço parecia uma despedida. 

Ao chegar à casa, a esposa estava zangada porque a máquina de lavar roupa tinha quebrado e começou a reclamar que não podiam consertar por falta de dinheiro.  Silas, pacientemente, lhe disse que mandaria consertar e nesse momento a decisão estava tomada. Iria aceitar ser cobaia daquela pesquisa científica.

Na manhã seguinte, pegou as chaves de casa, a carteira de dinheiro com as fotografias da família, o celular, tirou a aliança do dedo e colocou-a na carteira.  Entrou na cozinha, onde a mulher fazia o café da manhã.  Olhou longamente para a companheira de tantos anos e pensou tristemente no que sobrara daquele amor dos primeiros tempos, apenas desentendimentos, indiferença e cansaço. Lúcia era uma boa mulher, mas nos últimos anos se tornara amarga e distante.

- Não vou tomar café!

-Por que? Vai sair?

- Tenho um compromisso com um amigo. E num impulso beijou-a na testa e passou a mão pelas suas faces.

Ela estranhou o comportamento do marido. Há tempos que ele não a acarinhava.

Momentos depois estava a caminho do laboratório.  Um vendaval de pensamentos varria sua mente.  Uma torrente de emoções contraditórias chocava-se dentro dele.  Tinha que ter coragem, a vida não estava lhe oferecendo nada de bom.  Não tinha objetivos nem esperança de alcançar os sonhos da juventude.  Agora estava diante da oportunidade de voltar a ser jovem e milionário, mas com a experiência colhida durante anos, que o ajudaria a conquistar tudo o que jamais conseguiu.

Quando, no entanto, chegou e estacionou seu velho carro, uma onda angustiante o tomou.  Estaria agindo de maneira certa?  Amava seu filho e lá no fundo também amava aquela mulher rabugenta.  Ligou o carro, mas desligou novamente. Não, tinha que ser forte. E decidido, saiu do carro.

Entrou no saguão e surpreendeu-se ao ouvir a voz metálica do recepcionista robótico ecoar pelo recinto.

-Favor dirigir-se à sala do Dr. Francisco.  Dra. Martha e ele o esperam.

Como eles sabiam que tinha chegado.  Não os avisara.  Era tudo muito estranho, surreal mesmo.

Os dois cientistas vieram recebê-lo.  Um meio sorriso despontava em suas faces, enquanto os olhos permaneciam sérios.  Perguntaram-lhe se estava disposto a submeter-se à experiência e depois de um breve silêncio, respondeu que sim.

Então explicaram que medicações iriam ser aplicadas diretamente em suas veias até a manhã seguinte e que iria ser mantido sedado por vinte e quatro horas, quando acordasse estaria de volta aos seus trinta anos.  Nesse período estaria inserido em um grande tubo e todo o seu processo metabólico seria controlado.

Silas soltou um grande suspiro.  Estava com muito medo, mas tinha chegado até ali e não voltaria atrás.

Encaminharam-no para um quarto em que havia uma cama e vários aparelhos.  Mostraram-lhe um biombo, onde deveria se despir e colocar um camisolão branco e explicaram que quando voltasse a si, lá estariam roupas novas para ele vestir e iniciar a nova vida. Pediram para que o celular fosse deixado com eles.

Como iria conservar os objetos, que trouxera sem que fossem percebidos.  Na parte de trás do biombo, viu um pequeno banco de madeira.  Tinha certeza que câmeras o espiavam, então ao tirar a roupa, disfarçadamente escondeu os objetos embaixo do banco.

Quando saiu, Dr. Francisco lhe estendeu um contrato, com todas as exigências assumidas ao se submeter à pesquisa e a total confidencialidade a respeito de sua transformação.  Assinado o documento, ele deitou-se na cama.  Espetaram-lhe uma agulha e de uma garrafinha começou a gotejar uma droga relaxante e outra para prepará-lo para a substância que o levaria de volta à mocidade.

No dia seguinte, durante quatro horas recebeu a droga de sua transformação.  Pelas vinte e quatro horas seguintes ficou sedado.  Ao acordar, enxergou dois vultos ao seu lado, que pouco a pouco, foram se tornando nítidos. Atordoado, precisou de algum tempo para se lembrar porque estava ali.  Tentou se mexer, mas vários eletrodos ligavam-se ao seu corpo.

Os cientistas sorriram para ele.

- Você está bem? Perguntou o Dr. Francisco.

- Mais ou menos. Estou tonto.  Por que estou ligado a esses aparelhos?

-  A tontura vai logo passar e os eletrodos estão controlando o funcionamento de todos os seus órgãos.  Está tudo bem. A experiência foi um sucesso e agora você é um jovem de trinta anos.

- Quando vou poder me levantar?

- Vamos desligar os aparelhos e você ficará deitado por uma hora.  Será avaliado e depois

... vida nova!

Mais tarde levantou-se e surpreendentemente estava se sentindo ótimo.  Seguindo a indicação do pesquisador foi até o biombo.  Um grande espelho tinha sido colocado ali.  Refletido nele havia um bonito jovem.  Não era possível.   Passando a mão pelos cabelos agora negros novamente, começou a admirar seu próprio rosto. Tirou o camisolão, jogando-a no chão.  A barriga proeminente desaparecera e um corpo atlético refletiu-se no espelho. 

- Esse sou eu agora, pensou.  Era difícil acreditar em tudo o que estava acontecendo. Vestiu-se lentamente.  As roupas eram bonitas, de marcas caras. Ao se vestir, lembrou dos objetos escondidos.  Discretamente, olhou debaixo do banco e lá estavam eles, não tinham sido achados. Pegou-os e guardou-os nos bolsos.

O homem, que saiu detrás do biombo, provocou um ohhh!... de admiração dos cientistas.  A dra. Martha não se conteve:

- Você está lindo! E lhe deu um abraço.  Vai conquistar muitas mulheres!

Os dois o acompanharam até o estacionamento e ele perguntou:

- Cadê meu carro?

- Seu carro sofreu um acidente grave, pegou fogo e para todos você morreu carbonizado.

- Que horror!  Seu rosto franziu em uma expressão de desespero.  Minha família deve ter levado um grande choque.  Coitados!!

- Foi o combinado, não é?

O rosto do rapaz nublou-se de tristeza.

- E agora para onde vou?

- O motorista o levará à sua nova casa e a sua nova vida.

Despediram-se, avisando-o que teria que retornar para exames mensalmente.

Silas entrou no carro.  Tudo parecia diferente.  As casas e as ruas passavam velozmente.  Apalpava seu peito, seu corpo.  Estaria sonhando?

O motorista entrou em uma rua arborizada, cujas calçadas eram rodeadas por plantas floridas e onde grandes mansões desfilavam magníficas e imponentes.  Parou em frente a uma delas e deu uma chave a Silas.

-Esta é sua casa.  Boa sorte, rapaz!

O jovem desceu do carro estupefato.  Um grande portão com uma guarita ao lado estava diante dele.  Quando se aproximou, o portão se abriu.  Um porteiro acenou-lhe de dentro da guarita.  Ele entrou.  Um vasto jardim estendia-se até a casa, forrado por um extenso gramado salpicado por canteiros de flores.     

Com passos lentos, atravessou o jardim, sorvendo toda aquela beleza.  No lado esquerdo, uma piscina brilhava com os reflexos do sol.  Chegou à porta principal da casa e uma jovem serviçal já o estava esperando. 

A moça o introduziu na grande sala, decorada com móveis modernos e tapetes persas, e foi lhe mostrando cada cômodo.  Na cozinha, uma senhora simpática preparava o almoço e lhe deu as boas vindas.  Subiram pelas largas escadas e ele foi levado ao seu quarto, composto de banheiro e um imenso closet, repleto de roupas.  Tudo estava mobiliado e arrumado primorosamente.  Silas estava boquiaberto.  A moça saiu, deixando-a à vontade.

 Aproximando-se da grande cama de casal, notou no criado-mudo um envelope lacrado endereçado a ele.  Curioso, abriu-o e encontrou um bilhete: ¨Aqui estão seus novos documentos. ¨ Com mãos trêmulas pegou-os e ali estavam carteira de identidade, CPF e até uma nova carteira de habilitação.  Leu o nome nos documentos.  Agora ele chamava-se Sérgio Figueiredo.  Como conseguiram tudo isso? ¨Ah¨, pensou. ¨Com dinheiro tudo se consegue¨.

Foi até uma larga porta, que levava a uma sacada e aspirou o ar fresco da manhã.  O coração descompassado pulsava desvairado, diante de tantas emoções contraditórias.  Era agora um homem de trinta anos, sem família, com um passado trancado dentro dele...e sem saber direito que rumo tomar.

Os dias foram passando e ele se esforçava para aceitar a nova vida. Tinha tudo o que queria.  Era servido como a um rei.  Desfrutava de um conforto, que nunca sonhara ter.  Dirigia os carros mais desejados por todos.  Entretanto, uma solidão avassaladora invadia o seu ser.

Uma noite, então, resolveu sair e ir a uma discoteca para se divertir e encontrar outros jovens como ele agora era. 

Entrou timidamente no lugar.  A pista de dança estava cheia e a moçada dançava solta ao som de batidas muito altas de uma música estranha aos seus ouvidos.  O ambiente era meio escuro, com luzes coloridas, que piscavam incessantemente.  Fechou e abriu os olhos, incomodado com isso. 

Foi até o balcão de bebidas e pediu um drinque.  Tinha que vencer a timidez e o estranhamento daquela situação nova e desafiadora.

Uma bela jovem aproximou-se dele com um copo na mão.

- Olá! Está sozinho?  Perguntou, lançando-lhe um sorriso.

- Estou! Respondeu desconfortável. 

- Carolina! Apresentou-se. E ela tocou o copo dele em um brinde. 

- Si...Sérgio. Respondeu atrapalhado e pouco à vontade.

Entabularam uma conversa.  Carolina era extrovertida e divertida.  Silas, agora, Sérgio tentava acompanhar a moça, mas não entendia as novas gírias e o jeito diferente dos jovens modernos. Muitos anos o separavam dessa nova realidade.

De repente, a moça colocou o copo no balcão e o puxou para a pista.  Uma expressão de pavor apareceu no rosto do rapaz, que tentou disfarçar sua confusão e tropeçando lá foi ele para a fervilhante pista. Aos poucos foi se soltando e dançaram e se divertiram pelo resto da noite.

Na hora de se despedir, a moça premiou-o com um longo beijo e convidou-o para ir ao seu apartamento.  Ele disfarçou o espanto.  No seu tempo, esse comportamento já começava a acontecer com os mais ousados, mas era o homem que fazia esse tipo de convite e não a mulher.

Quando Carolina viu a Porsche novinha do rapaz, não se conteve:

_ Cara, além de lindo, você é abonado!

- Um pouco! Respondeu atrapalhado.

Chegou em casa na hora do almoço.  Pediu que o servissem à beira da piscina e enquanto descansava, depois da lauta refeição, pensava em tudo o que estava acontecendo.

Como um clarão, os pensamentos voaram para a antiga família.  Como estaria seu filho e sua mulher? Sentiu uma dor, que lhe invadiu até o mais recôndito do seu ser.  Sacudiu a cabeça, expulsando os sentimentos de tristeza, que queriam dominá-lo.  Agora era um homem rico.  Tinha que aproveitar a nova vida e sorvê-la ater o último gole.

Nos dias, que se seguiram, teve vários encontros com Carolina, mas começou a se cansar dela. A experiência de vida, que ele carregava, não combinava com a dela. Estava cansado dela.  Terminaram o namoro.

Muitas outras mulheres atravessaram o seu caminho. Queria relacionamentos curtos e uma vida despreocupada.  Não queria, nem conseguia se aprofundar em nada. Várias festas e viagens preenchiam os seus dias.

Passou-se um ano e certa manhã, sentado no belo jardim da casa, um forte sentimento de solidão o invadiu. Tinha muito dinheiro.  Tudo o que desejasse, vinha às suas mãos.  Percebeu que o esforço para conquistar um objetivo era motivador e dava prazer à existência.

Tirou do bolso a velha carteira com as fotografias da família e as chaves da antiga casa. Fitou as fotos por um longo tempo e apertou as chaves em sua mão. Uma saudade intensa o assaltou e o surpreendeu.

Levantou-se e resolveu voltar à cidade em que vivera para, pelo menos, observar alguém da família de longe.  Duas horas depois chegou perto da casa do filho.  Era um domingo.  Um táxi parou na frente da casa e sua mulher saltou para a calçada.  Deixara de pintar o cabelo, que estava grisalho e quando se virou para fechar a porta do carro, notou nela um semblante fechado e entristecido.

Logo o filho veio receber a mãe com um sorriso amoroso no rosto. Como eram parecidos! Desde pequeno era ele em miniatura.

Remorso e melancolia tomaram seu coração.  Tivera uma família, dificuldades e lutas, mas era a sua vida. Perdera tudo, só lhe sobrara dinheiro e amigos e amigas, que, talvez só se interessassem por ele, por saberem-no muito rico.

Naquele momento, daria tudo para ver sua mulher carregada de sacolas de compras, conseguidas com o parco dinheiro que lhe dava.

Voltou para casa com um imenso peso na alma e um arrependimento, que sabia tardio, invadiu-o, como um tsunami invade e arrasa tudo à sua volta.

Vagou pelo quarto, sem conseguir dormir, a noite inteira.  Levantou-se muito cedo. Tinha tomado uma decisão. Sentou-se à escrivaninha de seu quarto e redigiu um testamento, em que deixava metade de sua fortuna para a antiga família e a outra metade para seus empregados e instituições de caridade.  Quando terminou estava sereno.

Saiu e foi a um tabelião registrar o legado. Voltou à casa e passou o dia passeando pelo jardim.  Um pássaro passou voando e ele olhou-o tristemente, invejando a sua liberdade.

No jantar, convidou os empregados a sentarem-se com ele, o que causou um grande espanto em todos.  Ele era um bom patrão, gentil, educado e os tratava muito bem e com respeito, mas não esperavam esse convite. O jantar pedido por ele à cozinheira era um prato, que ele adorava, quando criança.

Depois do jantar, subiu para o quarto, seu rosto parecia iluminado por uma tranqüilidade nunca sentida.

Na manhã seguinte, como já era quase meio-dia e Sergio não tinha aparecido para tomar o café, a camareira bateu à porta do quarto e não houve resposta.  Preocupada abriu a porta e lá estava Sergio ou Silas, sem vida, ao lado de um vidro de comprimidos.

A escolha fora feita. 

E a vida ... - Helio Salema

 




E a vida ...

Helio Salema

 

Caindo gota a gota

Sem molhar o coração

Nada eu sentia

Era a sua ilusão

 

Lágrimas verdadeiras

Não alteram histórias costumeiras

Éramos crianças brincando

Faz de contas, de ciumeiras

 

O doce som da mentira

Magoa mais a alma sofredora,

Que o amargo estrondo da verdade

Mesmo que fere, não magoa

 

Sempre usando o perdão

Fomos construindo sonhos

Mas na realidade o que fomos?

Irresponsáveis na ilusão

MEUS QUERIDOS NETOS - Henrique Schnaider

 



MEUS QUERIDOS NETOS

Henrique Schnaider

 

Quando você nasceu, Luca, eu já tinha minhas pérolas, netas Amanda e Thalita, e sua irmã Lara. Meus doces, amadas minhas, presente de Deus muitas alegrias. Com você foi algo diferente. Algo brilhou no seu nascimento, abençoando a nós, à minha filha dando sentimentos só meus.

Passei a gravidez toda te ajudando querida, preparando a chegada dele,  um anjinho que finalmente chegou é o presente valioso, perfeito lindo com o seu primeiro choro, vendo que o menininho estava pronto para a vida.  Feliz a minha vida se renova, a emoção é, de tão bem que estou indo

Enquanto você vai crescendo, eu vou envelhecendo. Mas o amor desinteressado dessa pequena criatura que recebo, me anima e me deixa com vontade de viver, podendo compartilhar agora, com seus dois anos de vida, já falando e podendo transmitir seu sentimento, emoção e queixa

Acredito meu querido que ainda viverei muito tempo e fico imaginando sua infância e adolescência, alegrias e finalmente um homem e um futuro brilhante. Fico imaginando meu neto e as minhas netas todos casados e talvez estarei ainda vivo, para testemunhar por cima do muro.

 

 

NONNO E SUA CIDADE CURON VENOSTA (*) - Claudionor Dias da Costa

 



NONNO E SUA CIDADE CURON VENOSTA (*) 

Claudionor Dias da Costa

 

 

Naqueles instantes que a gente não sabe por que e como, vem à mente lembranças de pessoas queridas que marcaram nossa vida.  

 

Enquanto eu caminhava para meu compromisso, cruzei na rua com aquele senhor que deveria ter por volta de quase oitenta anos,  que me olhou e com sorriso suave,  me deu bom dia. Imediatamente,  a imagem de meu avô, que nos deixou há uns dez anos, surgiu clara,  e provocou minha memória.  

 

Parece que o via acomodado em sua cadeira de balanço, eu com quase quinze anos escutando atento suas histórias de um tempo perdido que se desvanecia nas nuvens que ele observava enquanto falava. 

 

O doce ócio daqueles dias de inverno regados a chá quente e gostosos biscoitos caseiros preparados com carinho pela minha adorável avó, que delícia! 

 

− Querido neto, você não tem ideia como era bonita a nossa pequenina Curon Venosta. 

 

Pontuava cada frase e gesticulava como bom italiano. Estava situada ao norte da Itália, encostada na Suíça e Áustria, e tinha pouco mais de mil habitantes na época.  

 

Prosseguia detalhando os costumes daquele povoado.

 

− A vida era simples. Éramos agricultores, plantando maça e uva, e produzíamos um pouco de vinho. Meu pai ainda fazia alguns trabalhos de marcenaria. E, assim,  a família de seis pessoas se sustentava. 

 

− Minha infância foi alegre e descontraída, com travessuras com os amigos em que escolhemos,  o Sr. Pepino como vítima. Dono da mercearia confusa com produtos espalhados. Causávamos mais transtornos à ele espalhando mais ainda sem comprar nada. Quem diria que viria a ser tio da minha namorada. 

 

− O tempo passou... 

 

Nesse instante vovô silenciou, parou o olhar e continuou franzindo a testa, mas, empolgado contando como se iniciou a segunda grande guerra mundial e que a sua Itália ficou ao lado da Alemanha, e em Curon cresceu mais ainda a adesão à ideologia de seu ditador, que viria a ser sanguinária. Outra parte mais resignada e assustada com a onda que invadia o país preferia discrição e se amparava em suas atividades de trabalho não entrando nas quentes discussões políticas que ocorriam. Nossa família estava neste grupo por uma questão meramente de sobrevivência. 

 

Sendo muito jovem meu avô dizia que esta situação o deixava revoltado e se envolveu em algumas confusões por não se manter calado, mas, por sorte e pelas pessoas conhecerem sua família acabaram tolerando e não o denunciaram. Porém, não se conformava com essa resignação serviçal. 

 

Até se irritava quando alguns habitantes falavam em alemão, dada a proximidade da fronteira com a Áustria.  

 

E continuava dizendo que somente o alegrava quando comparecia às missas dominicais da igreja de Santa Catarina.  O motivo principal que não o permitia se concentrar nas orações era por conta da visão da menina com seus cabelos alourados que refletiam luz dourada, com instigantes olhos verdes. Ela provocava estranhas sensações no vovô que aceleravam os batimentos de seu coração jovem e cheio de sonhos. Quando falava nela seus olhos brilhavam e seu entusiasmo aumentava. Seu nome era Catarina em homenagem à padroeira da cidade. 

 

Ao terminar o culto, na saída as famílias ficavam conversando à   porta da igreja. Nesses momentos ele e Catarina trocavam olhares e ele começou a sentir que também despertava simpatia. Daí aos sorrisos e algumas poucas palavras, passou a esperá-la na saída da escola junto com os amigos e a acompanhá-la até sua casa. 

 

Começava ali um romance para o jovem casal. Ele tinha dezessete anos e ela dezesseis. 

 

Contudo, os pais dela perceberam e mostraram contrariedade com a situação porque sabiam que vovô não gostava da dominação da guerra que tiveram que suportar. Os pais dela defendiam Mussolini. 

 

Assim, estava criado um problema que ele não sabia como resolver. Seu amor por Catarina cresceu mais ainda. A menina não sabia o que fazer, e muito triste suportava a pressão da família. Com isto, só conseguiam se ver aos domingos, e ao longe, na igreja. 

 

Meu bisavô sentia pena de meu avô Antônio, mas, procurava aconselhá-lo para que não persistisse no interesse por ela, e se dedicasse mais ao trabalho e estudos. 

A tristeza e revolta o dominou porque sentia que naquele lugar, época de guerra e preocupado com o futuro,  a única coisa que o interessava na vida era sua bela Catarina. 

 

Os pais dela procuravam ao máximo evitar contato entre eles. Aumentavam o controle nesse sentido. A irmã mais nova todos os dias passou a acompanhá-la na saída da escola. Contudo, ela era simpática aos dois e passou a disfarçar que não percebia quando vovô passava bilhetinhos à Catarina. Eram declarações de amor eterno e frases românticas que a deixavam emotiva olhando meigamente para vovô. Ele descrevia para mim aqueles momentos como se os estivesse vivendo novamente. 

 

Até que vovô, em seu ímpeto juvenil, resolveu elaborar um plano: fugir com ela. 

 

Para isto, precisaria usar as economias que recebia do pai nos trabalhos no campo e muita coragem. Seria suficiente? Só o tempo dirá. 

 

Movido pelo seu grande amor, combinou com Catarina que fugiriam num domingo à noite, quando todos já estivessem esgotados pela semana. Separaram umas poucas roupas, se encontraram furtivamente na escuridão, e partiram. Caminharam por mais de três horas e cansados se abrigaram na cocheira abandonada de uma fazenda. Quando amanheceu procuraram sair rapidamente e tomar a estrada novamente. 

 

Com algumas mentiras onde Catarina se passou por minha irmã e pedindo carona pela estrada fomos parar em Bolzano. 

 

Acabei me aventurando trabalhando como auxiliar num armazém que vendia de tudo. Aprendi muito nesse comércio, desde venda de alimentos até o vinho e suas características. Aproveitei a tolerância do Sr. Pietro que queria mais que eu trabalhasse e não fazia muitas perguntas. Até permitiu que morássemos nos fundos de uma propriedade velha que ele estava sempre pensando em reformar. Catarina passou a trabalhar na sua casa como doméstica. Despertou simpatia em sua esposa pelas habilidades que tinha e até fazia bordados junto com ela. 

 

E assim foi ... 

 

Após quase um ano, eis que de repente fomos descobertos por meu pai que estava acompanhado do pai de Catarina. Ouvimos poucas e boas. Eu engolia em seco mudo e preocupado. Ela soluçava em lágrimas e mal olhava para o pai. Porém, passado aquele momento, começaram a nos perguntar como chegamos ali, o que fazíamos e como vivemos aqueles meses. Nos recuperamos e tivemos a ajuda do Sr. Pietro que nos elogiava. Aliás foi através dele que chegaram à nós, porque sensibilizado, meio a contragosto com a situação que nos envolveu, resolveu escrever para as autoridades em Curon. 

 

E vovô batendo forte uma mão na outra, rindo muito disse: 

 

− Nos levaram de volta para Curon. Ficamos até felizes, porque já estávamos com saudades de todos e de nossa “Piccola Città”. E a emoção daquela visão quando chegamos:  

 

− “Ma que bello o Lago di Resia”. 

Não demorou quinze dias e fizeram o nosso casamento onde “ il mio Amore” estava lindíssima. Parecia uma deusa de branco com aquela tiara de flores. 

 

E se aproximou de mim e cochichou sorrateiro com sorriso no canto da boca : 

 

− Você já é moço e vou te confidenciar. Seu pai, Marcello,  já estava a caminho  há uns três meses. Mas, depois do casamento esta notícia deixou todos felizes e   foi feita a reconciliação com a família da Catarina. Com a morte de Mussolini em 1945 depois com o término da guerra a política foi sendo esquecida por eles.  

 

A nossa Itália por ter passado por tudo isto, não estava nada bem. Precisava ser reconstruída. 

 

Com estas dificuldades e como queríamos progredir, resolvemos emigrar para o Brasil, porque chegavam notícias de que era uma terra promissora e a agricultura iria crescer muito. Foi o que fizemos. Viemos com seu pai e sua tia Bianca e fomos parar numa fazenda na cidade de Pedreira, interior de São Paulo no lugar que devido a colonização italiana era chamado de Tri monte. 

 

Ficamos tristes quando soubemos o que fizeram com nossa Curon em 1950.  Foi totalmente submersa pelas águas, porque precisavam fazer a usina hidroelétrica e nossas famílias foram removidas para mais distante. 

 

Mas, como o comércio estava no meu sangue, não demoramos em vir para a capital. E aí você sabe de toda a história. 

 

E mostrando ar saudoso exclamava: 

- Aquele badalar dos sinos da igreja de Santa Catarina, me lembro até hoje. 

 

E virando-se para mim:  

 

− Vamos entrar que a “nostra bella fiore” irá nos servir o “fusilli com bracciola”. 

 

E cantava alto canção italiana. 

 

Que saudades do vovô. Contava tão bem suas histórias que até eu me imagino em Curon. 

 

 

 

(*) CURON VENOSTA - Cidade ao norte da Itália (fronteira com Suíça e Áustria) que em 1950 foi submersa por conta da construção de usina hidroelétrica. Hoje aparece no Lago de Resia somente a torre da Igreja (Campanário). A Netflix fez uma série usando esta visão da cidade. Dizem que em noites frias ouve-se até os sinos. Contudo, é uma lenda porque foram retirados há alguns anos. 

O ROUBO DA ESTÁTUA DO IMPERADOR - Henrique Schnaider

 


O ROUBO DA ESTÁTUA DO IMPERADOR

Henrique Schnaider

 

Dr. Langdon era um estudioso de antiguidades. Chegou de Londres, naquela manhã, em Roma. Foi direto para o Hotel no centro da movimentada cidade italiana, com as pessoas falando alto e cheias de gestos, e o aroma delicioso das massas com o molho que só eles sabem fazer.

Langdon tinha um encontro marcado com a Diretora e curadora do Museu do Vaticano, Dra. Siena, que o convocou  para que viesse com a máxima urgência. Aconteceu um roubo misterioso de uma escultura do Imperador romano, Augusto, que reinou o Império Romano, na época de Jesus.

Assim que chegou, lá estava ela aguardando ansiosa. Siena chamava a atenção pela beleza, uma Vênus de Milo. O Dr. se perdeu em olhares admirados pela Diretora.

— Olá Dr. Langdon, estava lhe aguardando com grande expectativa. Vamos ao local do acontecido. Não consigo entender como conseguiram efetuar o roubo da estátua do Imperador, já que temos vigias 24 horas e o local possui raios laser. Devem ser especialistas. Não sei qual foi a intenção e para onde levaram a estátua.

Langdon estava entretido entre olhar a beleza de Siena e procurar detalhes, no local do roubo, que lhe dessem alguma pista na investigação.  Pensava ele. — “As pessoas são capazes de ir muito mais longe por causa daquilo que temem do que por causa daquilo que desejam. Esse era o caso de quem efetuou este roubo audacioso”.

Depois de observar cada detalhe do local onde estava a estátua do Imperador:

— Foi realmente um trabalho de profissionais, não deixaram qualquer pista,  ou que seja, nem um pequeno detalhe do trabalho que fizeram, mas continuarei, se você permitir, a examinar detalhadamente o local do roubo.

Langdo possuía consigo vários aparelhos para um exame que o levasse aos autores do roubo. Então, se acende uma luz vermelha no cérebro e, automaticamente, no instinto investigativo dele, havia um pequeno pedaço de tecido que ele deduziu ser de uma roupa feminina.

Para Langdon, sempre que iniciava uma investigação era como uma luta sem tréguas. Ele tinha como lema a seguinte frase. “Todos temos a guerra dentro de nós. Às vezes ela nos mantém vivos. Outras vezes ela ameaça nos destruir”. Ele não perderia esta batalha por nada, até solucionar o caso.

— Eu vou voltar para hotel e analisar o que consegui de pistas do roubo, Siena.

Ele já tinha alguma desconfiança, mas quis voltar ao hotel, e na tranquilidade de seu apto, analisar com mais calma a conclusão a que chegou. Depois de examinar com lupa o pedaço de tecido, chegou a uma conclusão.

Por incrível que pareça a pista se abriu, pois Langdon desconfiado de Siena ao abraçá-la, antes de voltar ao hotel, conseguiu sem ela perceber tirar com uma pequena lâmina afiada, um pedacinho do tecido do vestido de Siena.

Voltaram ele e Siena a se encontrar no dia seguinte, a pedido de Langdon.

— Siena, analisei o tecido que peguei no local do roubo e tirei um pedacinho do vestido que você vestia ontem e são iguais.

— Eu te pergunto? Por que você está envolvida neste roubo?

Siena lhe responde sem pensar:

— É verdade Langdon, eu contratei profissionais para efetuar este roubo, para me vingar do Diretor Geral que me persegue desde que assumi o cargo de Diretora do Museu. Eu vou devolver a estátua, se você me prometer que não me acusará.

Langdon achou que valia a pena perdoar Siena e lhe disse:

— Não vou lhe acusar, você tem minha palavra de honra.

— Langdon,  existe um ditado famoso ao qual não segui: “A maior vingança contra um inimigo é perdoá-lo”, porém eu não consegui perdoar o Diretor Geral e cheia de ódio me vinguei.

Langdon sorri:  

— Vamos tomar um café e providencie a devolução da estátua. Ambos trocaram um olhar cúmplice e sorriram.  Siena deu o braço a Langdon e saíram andando tranquilamente.

 

 

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