PROJETO MEU ROMANCE
BUSCAS E MAIS BUSCAS
(Parte II)
HIRTIS LAZARIN
Como fazia todas as tardes, Homero caminhava pela ruazinha que
adormeceu sossegada, bem antes da hora.
Essa tranquilidade contrastava-se com seus pensamentos rebuliçados que
não se esqueciam do Valentim, seu gato de estimação. Fazia dois
dias que Valentim saiu para o passeio habitual e não voltou. Procurou-o
apenas no quarteirão que rodeava sua casa, pois sabia que o bichano costumava
ir bem longe… Ele já tinha sete anos e conhecia tudo e todos.
Homero alterou o trajeto costumeiro e dobrou a segunda esquina da rua.
Sentiu vontade de entrar na capela de Santa Rita. Sua mãe era devota de Santa
Rita. Tinha um pequeno altar em casa, onde não faltavam uma vela perfumada
sempre acesa e uma rosa fresca. Ela acreditava piamente que, através de orações
à santa das causas impossíveis, conseguiria a graça da cura da irmã,
desenganada pelos médicos. A moça sarou e a família creditava a cura ao milagre
da santa. Homero tinha, então, seis anos e aprendeu tudo sobre a Santa Rita. A
mãe obrigava-o a rezar todas as noites diante do altar. O hábito permanece até
hoje. Se tenta dormir sem orar, o pensamento não lhe deixa sossegado.
Homero aumentou os passos e entrou na igrejinha. Estava deserta e
levemente perfumada de lírio-branco, ambiente de paz e propício à meditação.
Era a capela mais acolhedora que ele conhecia. O padre responsável e as
obreiras cuidavam dela como se cuida de uma obra rara.
Mal acabara de se ajoelhar na terceira fileira de bancos, ouviu palavras
sufocadas de socorro misturadas a gritos estridentes e desconexos.
Como bom e experiente investigador, o homem ligou seu sistema de alerta.
Correu em direção à sacristia. Era lá que acontecia a cena que descreverei: o
padre Juliano estava esparramado no chão perto da porta, provavelmente na
tentativa de fuga. O corpo com excesso de gordura, com certeza, amorteceu-lhe a
queda. Sangue escorria de sua cabeça, percorria o pescoço e manchava a
vestimenta sacerdotal de cor clara. O padre era das antigas e, no local
sagrado, usava batina. Respirava com dificuldade e balbuciava
algumas sílabas. Tinha sido agredido fortemente na cabeça por objeto
contundente. O mais importante: estava vivo. Sem perder segundos, pois em
segundos pode-se perder uma vida, Homero chamou a ambulância. Por sorte, uma
delas estava de prontidão e levaria não mais que quinze minutos para chegar.
Fez travesseiro de um casaco pendurado atrás da porta e acomodou a cabeça do
padre.
Só então ele se preocupou com o criminoso. Não viu ninguém fugir e
se tivesse tentado, seria impedido. Homero era um homem fisicamente forte e
forte nas decisões. A postura imponente e um metro e noventa de
músculos impunha-lhe muito respeito.
Nem foi preciso procurar. De trás de um armário forte e largo, apareceu
uma mulher ostentando uma faca. Uma faca de açougueiro. Ao se deparar com o
intruso, começa a movimentar os braços descontroladamente para cima e para
baixo. Parecia um robô programado. O investigador de sobrancelhas grossas,
arqueadas e testa franzida, veste-se de olhar frio e ameaçador. Assume postura
altiva e se fixa num ponto próximo à mulher. Ela não se intimida, ao
contrário, ignora-o e grita. Grita muito, grunhidos de um animal furioso
com vontade de atacar.
As vestes rasgadas mal cobriam o corpo magro de costelas saltadas. Os cabelos
compridos, um amontoado de teias de aranha, cobriam parte do rosto. Uma fita
vermelha prendia-se ali numa cena de enforcamento. Chamava a atenção as unhas
compridas, dos pés e das mãos, pintadas de vermelho escarlate. Vaidade que não
combinava com aquela aparência de total abandono.
Homero manteve-se imóvel e calado. Compaixão e dó foram os
primeiros sentimentos que a mulher lhe provocou. Um ser humano que sofria e
precisava de ajuda. E, ao mesmo tempo, criminoso.
Lá fora, uma sirene em som alto e distinto avisava que a ambulância
acabava de chegar. Homero deixa a sala e tranca a porta à chave. A igreja, em
segundos, estava cheia de burburinhos e de gente curiosa. Dona Hermelinda,
vizinha da capela e muito amiga do padre, responsabiliza-se por acompanhá-lo
até o hospital. Homero tinha outra missão. Durante a remoção, Juliano
recobrou os sentidos e abriu os olhos. Não se lembrava de nada, mas gemia de
dor.
O investigador volta à sacristia na expectativa de encontrar a mulher,
ainda mais furiosa e revoltada. A cena é inusitada. Ela está sentada no chão ao
lado do facão. Com os cabelos afastados do rosto, podia-se ver que seus traços
eram finos e a pele delicada. E que, talvez, um dia, já foi bem
cuidada.
Alheia à presença de Homero, ela começa a cantarolar. Canções dos
contos de fada.
Tira um caderninho da sacola, põe-se em pé e declama. A voz era clara e
compassada:
“Se
não puder voar, corra.
Se não puder
correr, ande.
Se não puder
andar, rasteje”.
Temendo que Homero a interrompesse, pergunta:
— Posso ler mais um?
Agora a voz era doce e aveludada:
“Não tenho garantia e nem certeza de nada.
Vivo
tentando”.
Olhou fixamente para o homem atônito e desarmado de intenções:
—” O que você faz quando te tratam mal”?
Esperou alguns segundos e, diante do silêncio, deu alguns passos à
sua frente. Chegou bem próximo a ele e falou com ênfase:
— ”Eu me trato bem e vou embora”.
A moça sem nome guardou a agenda no saco, pendurou-o nos ombros e andou até
a porta. Olhou para trás certificando-se de que não estava sendo seguida e
jogou-lhe um beijo:
— Sou Isabely.
Desapareceu na noite cheia de estrelas.
Homero permaneceu sentado, sem reação; era a única múmia viva que ele
conhecia.
Lembrou-se, então, do seu gato Valentim que desaparecera no dia anterior.
Sentiu saudade e chorou.
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