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quarta-feira, 25 de setembro de 2024

HIRTIS LAZARIN - PROJETO MEU ROMANCE - BUSCAS E MAIS BUSCAS

 





PROJETO MEU ROMANCE

 BUSCAS E MAIS BUSCAS

(Parte II)

HIRTIS LAZARIN

 

Como fazia todas as tardes, Homero caminhava pela ruazinha que adormeceu sossegada, bem antes da hora.

Essa tranquilidade contrastava-se com seus pensamentos rebuliçados que não se esqueciam do Valentim, seu gato de estimação. Fazia dois dias que Valentim saiu para o passeio habitual e não voltou. Procurou-o apenas no quarteirão que rodeava sua casa, pois sabia que o bichano costumava ir bem longe… Ele já tinha sete anos e conhecia tudo e todos.

 

Homero alterou o trajeto costumeiro e dobrou a segunda esquina da rua. Sentiu vontade de entrar na capela de Santa Rita. Sua mãe era devota de Santa Rita. Tinha um pequeno altar em casa, onde não faltavam uma vela perfumada sempre acesa e uma rosa fresca. Ela acreditava piamente que, através de orações à santa das causas impossíveis, conseguiria a graça da cura da irmã, desenganada pelos médicos. A moça sarou e a família creditava a cura ao milagre da santa. Homero tinha, então, seis anos e aprendeu tudo sobre a Santa Rita. A mãe obrigava-o a rezar todas as noites diante do altar. O hábito permanece até hoje. Se tenta dormir sem orar, o pensamento não lhe deixa sossegado.

 

Homero aumentou os passos e entrou na igrejinha. Estava deserta e levemente perfumada de lírio-branco, ambiente de paz e propício à meditação. Era a capela mais acolhedora que ele conhecia. O padre responsável e as obreiras cuidavam dela como se cuida de uma obra rara. 

Mal acabara de se ajoelhar na terceira fileira de bancos, ouviu palavras sufocadas de socorro misturadas a gritos estridentes e desconexos. 

 

Como bom e experiente investigador, o homem ligou seu sistema de alerta. Correu em direção à sacristia. Era lá que acontecia a cena que descreverei: o padre Juliano estava esparramado no chão perto da porta, provavelmente na tentativa de fuga. O corpo com excesso de gordura, com certeza, amorteceu-lhe a queda. Sangue escorria de sua cabeça, percorria o pescoço e manchava a vestimenta sacerdotal de cor clara. O padre era das antigas e, no local sagrado, usava batina.  Respirava com dificuldade e balbuciava algumas sílabas. Tinha sido agredido fortemente na cabeça por objeto contundente. O mais importante: estava vivo. Sem perder segundos, pois em segundos pode-se perder uma vida, Homero chamou a ambulância. Por sorte, uma delas estava de prontidão e levaria não mais que quinze minutos para chegar. Fez travesseiro de um casaco pendurado atrás da porta e acomodou a cabeça do padre.

 

Só então ele se preocupou com o criminoso.  Não viu ninguém fugir e se tivesse tentado, seria impedido. Homero era um homem fisicamente forte e forte nas decisões. A postura imponente e um metro e noventa de músculos impunha-lhe muito respeito.

 

Nem foi preciso procurar. De trás de um armário forte e largo, apareceu uma mulher ostentando uma faca. Uma faca de açougueiro. Ao se deparar com o intruso, começa a movimentar os braços descontroladamente para cima e para baixo. Parecia um robô programado. O investigador de sobrancelhas grossas, arqueadas e testa franzida, veste-se de olhar frio e ameaçador. Assume postura altiva e se fixa num ponto próximo à mulher.  Ela não se intimida, ao contrário, ignora-o e grita. Grita muito, grunhidos de um animal furioso com vontade de atacar.

 

As vestes rasgadas mal cobriam o corpo magro de costelas saltadas. Os cabelos compridos, um amontoado de teias de aranha, cobriam parte do rosto. Uma fita vermelha prendia-se ali numa cena de enforcamento. Chamava a atenção as unhas compridas, dos pés e das mãos, pintadas de vermelho escarlate. Vaidade que não combinava com aquela aparência de total abandono. 

 

Homero manteve-se imóvel e calado.  Compaixão e dó foram os primeiros sentimentos que a mulher lhe provocou. Um ser humano que sofria e precisava de ajuda. E, ao mesmo tempo, criminoso.

 

Lá fora, uma sirene em som alto e distinto avisava que a ambulância acabava de chegar. Homero deixa a sala e tranca a porta à chave. A igreja, em segundos, estava cheia de burburinhos e de gente curiosa. Dona Hermelinda, vizinha da capela e muito amiga do padre, responsabiliza-se por acompanhá-lo até o hospital. Homero tinha outra missão.  Durante a remoção, Juliano recobrou os sentidos e abriu os olhos. Não se lembrava de nada, mas gemia de dor.

 

O investigador volta à sacristia na expectativa de encontrar a mulher, ainda mais furiosa e revoltada. A cena é inusitada. Ela está sentada no chão ao lado do facão. Com os cabelos afastados do rosto, podia-se ver que seus traços eram finos e a pele delicada. E que, talvez, um dia, já foi bem cuidada.  

 

Alheia à presença de Homero, ela começa a cantarolar.  Canções dos contos de fada.  

Tira um caderninho da sacola, põe-se em pé e declama. A voz era clara e compassada:

 

      “Se não puder voar, corra.

       Se não puder correr, ande.

       Se não puder andar, rasteje”.

 

Temendo que Homero a interrompesse, pergunta:

— Posso ler mais um? 

Agora a voz era doce e aveludada:

 

        “Não tenho garantia e nem certeza de nada.

         Vivo tentando”.

 

Olhou fixamente para o homem atônito e desarmado de intenções: 

—” O que você faz quando te tratam mal”?

 

Esperou alguns segundos e, diante do silêncio, deu alguns passos à sua frente. Chegou bem próximo a ele e falou com ênfase:

— ”Eu me trato bem e vou embora”.

     

A moça sem nome guardou a agenda no saco, pendurou-o nos ombros e andou até a porta. Olhou para trás certificando-se de que não estava sendo seguida e jogou-lhe um beijo:

— Sou Isabely.

Desapareceu na noite cheia de estrelas.

 

Homero permaneceu sentado, sem reação; era a única múmia viva que ele conhecia.

Lembrou-se, então, do seu gato Valentim que desaparecera no dia anterior.

Sentiu saudade e chorou.

 

 


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