A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

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quarta-feira, 15 de junho de 2022

ZÉ DO GADO - Helio Fernando Salema



ZÉ DO GADO

Helio Fernando Salema

 

Hoje com mais de quarenta anos, morando sozinho numa pequena propriedade rural onde nasceu e cresceu. Quando ainda era criança, por volta dos 6 anos, sua mãe faleceu. O pai cuidou dos três meninos. Os dois mais velhos, assim que ficam adolescentes, decidiram morar na cidade, para estudar, trabalhar e por lá permaneceram.

Na companhia do pai até os dezenove anos, aprendeu tudo o que o pai sabia, fazia e fez questão de transmitir ao filho. Sempre juntos como anjo da guarda. Gostava e admirava o trabalho do velho cuidador de gados. Daí o apelido de ZÉ DO GADO pegou no ainda jovem, José Antônio dos Santos.

Com o falecimento do pai, continuou sua vida com poucas alterações. Manteve com a mesma frequência as visitas à casa da viúva D. Olga, que morava só com a mãe numa casinha humilde na fazenda vizinha do seu sítio. Estimado por ambas, algumas vezes passava a noite por lá. Por estar morando sozinho, D. Olga passou a retribuir-lhe as visitas e também a cuidar da limpeza da casa.

Nas fazendas da região ele era solicitado sempre que havia algum problema com os animais, seja de doença ou de nascimento, ou para conduzi-los para outra propriedade. Assim ganhava seu sustento. Nas horas vagas cuidava da sua propriedade, plantando e vendendo seus produtos aos moradores do povoado.

Exímio atirador, quando via uma cobra rastejando, mesmo no meio do mato, poucos segundos eram suficientes para pegar seu revólver e liquidar com a serpente, pois era o único animal que ele não gostava e nem protegia, pois ela matava os bovinos e os equinos que ele tanto “corujava”.

Não se metia em brigas, nem aceitava covardias, e quando necessário as resolvia logo com a sua boa pontaria. Assim era admirado e respeitado. Muitos moradores ainda comentam sobre o dia em que ele, ainda muito jovem, mostrou do que era capaz.

Com a presença, na principal venda do povoado, dos IRMÃOS TORMENTOS, apelido dado a dois irmãos de sobrenome TORRES, e pressentindo confusão, alguém foi correndo até o sitio do ZÉ DO GADO. Ao vê-lo, deu-lhe logo a notícia ainda bastante assustado.

Ele só fez um sinal com a cabeça. Guardou suas ferramentas, arreou o cavalo e saiu num galope, produzindo poeiras como uma manada.

Ao se aproximar do local viu dois homens fortes batendo num rapazinho. Um socava e empurrava para o outro, que também golpeava. O jovem cambaleando era agredido por todos os lados, sangrava que dava dó.

As pessoas que estavam vendo aquela covardia, mas com medo de intervir, logo que viram quem se aproximava, ficaram aflitos e esperançosos para ver com os próprios olhos, aquilo que outros já relataram.

Ele parou. Pegou o revólver, e a uma pequena distância com dois disparos acertou a perna direita de cada um dos agressores, que caíram no chão feito jaca madura…Gritando palavras de ofensas, seguravam a perna ferida e se contorciam de dores.

Desceu do cavalo e foi até onde estava o rapaz ferido. Perguntou onde ele morava. Com uma das mãos, este indicou a venda, onde seu pai na porta, com um medo maior que a covardia dos agressores, olhava tudo, sem ter pernas para se mover.

Pegou-o pelas pernas e braços, carregou-o para dentro da venda e o colocou sobre o balcão. Retornou para onde estavam aqueles por ele baleados, ainda no chão reclamando das dores. Encostou seu chicote no rosto de um deles e avisou com ímpeto e bem alto:

— Eu sei quem são vocês… Agora vocês sabem quem eu sou…Na próxima vez que vocês voltarem por aqui…Será bala na cabeça. Entenderam?

Duas cabeças resignadas balançaram afirmativamente.

ZÉ DO GADO montou e voltou para casa. Nunca mais alguém teve notícias dos IRMÃOS TORMENTOS naquele tranquilo e harmonioso ARRAIAL DAS ÁGUAS MANSAS.

A JANELA ABERTA - Leon Vagliengo

 


A JANELA ABERTA

Leon Vagliengo

 

Uma historinha sobre circunstâncias da bravura doméstica. ___________________________________________

 

         Tarde da noite, hora de dormir, Maria foi fechar a janela do quarto. De repente, deu um grito selvagem de pavor, saltou para trás e pediu socorro, com a voz trêmula, alterada:

         — João, me ajuda aqui! Uma barata enorme! Entrou voando pela janela, foi para trás do armário! AAAI, MEU DEUS!

         João estava saindo do banho. Ouvindo o apelo de sua esposa, secou apenas os pés, prendeu rapidamente uma toalha na cintura, calçou as havaianas e correu, com o corpo ainda molhado, para acudi-la. Sabia como ela tinha medo de baratas, um medo absurdo, incontrolável, verdadeiro pânico, coisa de mulheres.

Nem pensou, mas sentiu; seria um bom momento para demonstrar a ela o seu destemor e valentia ao resolver essas situações caseiras, fortalecendo assim, de maneira subliminar, o respeito e a admiração que ela lhe dedicava, apenas matando uma barata.

         Chegando ao quarto encontrou Maria espremida num canto, em seu rosto a expressão do medo; dirigiu-se corajosamente ao pesado armário, conseguindo, com muito esforço, arrastá-lo um pouco, até poder espiar no vão formado entre ele e a parede, pensando com seus botões “eita armário pesado, sô! Quase passei vergonha”.

         Iluminou o local com uma lanterna, com muito cuidado para não ser surpreendido por uma possível investida da barata voadora que procurava; inconscientemente, temia que a atrevida avançasse sobre ele e o assustasse, comprometendo o seu ato de bravura; assim, examinou aquele espaço cautelosamente, nada encontrando. Depois, mais confiante, conseguiu puxar o armário um pouco mais, examinou melhor todo o espaço, centímetro a centímetro; verificou também embaixo e no outro lado do móvel, também nada encontrando.

Finalmente, com muito orgulho pronunciou o seu veredicto:

—Aqui ela não está. Venha ver.

         — EU NÃO! — Bradou Maria, sem superar o medo, como seria de se esperar.

         Mesmo porque o problema não estava resolvido. Onde estaria a temível barata voadora? João, então, afastou-se um pouco para melhorar a perspectiva e poder prescrutar mais completamente todo o cenário, tentando entender o caminho que poderia ter sido percorrido pelo repugnante inseto.

         Sua força e valentia já haviam sido demonstradas para Maria ao deslocar o pesado armário e assumir o risco de enfrentar o perigoso animal. Mas uma barata de paradeiro incerto e não sabido, esgueirando-se pelos cantos mais escondidos, é sempre uma ameaça muito grande. Poderia aparecer de repente no chão, subir-lhe pelas pernas por baixo da toalha sabe-se lá até onde, enfim, provocar nele alguma atitude menos viril, algum gritinho comprometedor irrefreável, daqueles em que a voz até sai fininha.

 Esse pensamento passou pela cabeça de João, que logo o afastou. Resoluto, agora já dominava a situação e era chegado o momento em que poderia mostrar para Maria a sua inteligência, se conseguisse desvendar o mistério da barata desaparecida. “Onde se enfiou essa miserável? ”, pensou. Observando detalhadamente todo o cenário por alguns longos minutos, finalmente, com muita perspicácia, decifrou o enigma. Aliás, não apenas o decifrou como, também, caiu na risada.

— Do que você está rindo? – Perguntou ela, surpresa, ao que lhe respondeu João, detalhadamente:

— Veja, meu bem. A janela aberta deixa passar uma brisa, fazendo balançar um pouco o lustre, projetando-se assim uma sombra, uma pequena sombra em movimento, em direção ao armário. Engana, sim, parece mesmo uma barata — completou, mostrando-se compreensivo com o medo de sua mulher.

Maria, então, ficou um pouco mais tranquila. Só um pouco. E curiosa. De longe, ainda temerosa, observou aquela pequena sombra que se movia tal qual uma barata voadora. Então, depois de confirmar a brilhante descoberta de seu marido, agora sim, aliviada, abraçou João, numa romântica atitude de agradecimento.

— Como eu sou medrosa, meu bem. Ainda bem que tenho você aqui para me proteger.

Com esse gesto de Maria, abriu-se o espaço para um compreensivo João, em tom superior e professoral, mais uma vez demonstrar carinhosamente a sua sabedoria, explicando algumas coisas para ela, feliz e envaidecido com a sua própria performance:

— Isso que acaba de acontecer com você, meu amor, chama-se pareidolia. Pode acontecer com qualquer um. E acontece quando uma pessoa vê alguma coisa que parece outra, mas não é, mas porque parece, a interpreta como se fosse. Ficou claro? Portanto, não se amofine. Neste caso, envolvendo a imagem de uma barata, você não está sozinha. É natural para qualquer mulher cometer esse equívoco, pois as mulheres mantêm em seu subconsciente um medo atávico, doentio e permanente desse inseto, que aflora incontrolavelmente nesses momentos. Foi o que aconteceu com você: viu a sombra em movimento, e já foi achando que era mesmo uma barata. É muito divertida, e até graciosa, a maneira como se manifesta a fragilidade feminina nessas situações. É por isso que é importante que as mulheres sempre tenham por perto um homem que as socorra nessas horas...

A toalha que o cobria soltou-se e caiu ao chão com o salto repentino de João para trás, uma das havaianas voou longe, ao mesmo tempo em que seu grito alto, agudo, fininho e desonroso, nada viril, interrompeu a sua pregação de herói, quando a barata de verdade, finalmente, resolveu voar do lustre onde se alojara, diretamente para a sua careca. Num reflexo desesperado João se abaixou, procurando proteção, e assim ficou: mãos nas orelhas, encolhido, de cócoras, pelado, um pé descalço, imobilizado pelo pavor.

Ao ver a cena Maria fugiu incontinenti, manifestando toda a sua fragilidade feminina ao correr desesperada para fora do quarto, confirmando aquela maneira divertida e graciosa que seu marido lhe dissera. Mas recobrou-se num instante e, num repente, extraiu de seu âmago toda a coragem necessária para voltar ao quarto, armada de um poderoso aerossol de inseticida que pegou de passagem no armário do banheiro, com o qual encharcou a cabeça de João, que ainda permanecia com as mãos nas orelhas, agachado, pelado, um pé descalço, com a barata na careca.

A enorme barata reagiu no mesmo instante, e ainda voou um pouco, até cair ao chão, debatendo-se. Maria deu-lhe mais uma longa, nervosa e vingativa borrifada de aerossol, e ela finalmente se rendeu, estirada com as pernas para o ar. Superado com sucesso aquele momento de ação e bravura, Maria respirou fundo, encheu-se de mais valentia e correu para fechar a janela, que ainda estava aberta.

Finalmente sentia-se segura.

Mais calma, olhou para o marido e, mesmo com muita vontade de rir, sabiamente Maria se conteve; ajudou João a levantar-se, encontrar e calçar a havaiana, cobrir o corpo novamente com a toalha, e procurou restabelecer a sua combalida dignidade, dizendo, bem séria, com muito cuidado para não parecer irônica:

— Nossa, João! Que bicho enorme! Até você se assustou! Mas manteve corajosamente a barata na cabeça, quietinho, para eu poder acertá-la com o aerossol! Isso é o que eu chamo de sangue frio! Ainda bem que você estava aqui para me proteger. Agora vá tomar outro banho e lavar essa cabeça ensopada de mata-baratas; depois a gente vai para a cama e comemora o sucesso dessa caçada. Com um bom sono, claro, porque já é tarde.

A tentativa foi boa, mas as palavras enaltecedoras de Maria não tiveram nenhum efeito para elevar o moral de João. Jururu e calado, ele limitou-se a obedecer. Tomou um novo banho e foi mesmo para a cama, sempre bem quietinho, juntar-se a Maria, para dormir.

Atualmente, a casa de João e Maria é dedetizada a cada seis meses e há telas contra insetos em todas as janelas.

 

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