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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

O grito ficou preso na garganta - Hirtis Lazarin





O grito ficou preso na garganta

Hirtis Lazarin

 

O vidro da janela da cozinha estava tão embaçado que mal dava para ver o que acontecia lá fora, onde o mundo se resumia a manchas de luz amarela dos postes e ao som abafado de pneus na rua molhada. Chovia devagarinho. Dentro da casa, o silêncio era uma coisa viva, pesada e fria.

Renato estava sentado à mesa, as mãos cruzadas sobre um pano velho que usara para absorver a mancha de vinho. Era o que ele resmungava, repetidamente, a si mesmo. “É mancha de vinho”.

Olhava, insistentemente, para um objeto sobre o balcão. Um martelo de carpinteiro, a cabeça reluzindo sob a luz fraca, a madeira  do cabo escura e úmida.

Nunca houve um motivo nobre, nem uma explosão incontrolável de raiva. Haviam discussões frequentes sobre contas a pagar, sobre promessas não cumpridas, sobre falar e não ser ouvido… Discussões corriqueiras entre marido e esposa.

Mas naquela noite, depois de um dia de intenso trabalho, a fome exigindo    satisfação, a dor na bolha do pé  causada pelo sapato novo, tudo isso reunido, fez com que   o casal não encontrasse o equilíbrio necessário pra  dissipar os desentendimentos. O diálogo que começou em tom áspero, foi ficando recheado de palavras raivosas e ofensas não merecidas.

Helena, que tinha a língua solta, falou sem parar coisas que não deveriam ser faladas. Estava transtornada, os olhos esbugalhados e vermelhos, diante do silêncio irritante do marido. Gritou lá do quarto: ”Vou arrumar as malas e desaparecer desta casa.

Foi quando o pânico, misturado a uma espécie de exaustão gelada, se apoderou de Renato. A ideia de que ela realmente partiria, de que o deixaria sozinho com o caos que eles construíram juntos, foi insuportável. Ele sabia bem que a esposa não era de meias palavras.

Feito um robô, levantou-se, caminhou até a caixa de ferramentas que ficava na garagem e pegou um martelo, o maior de todos. Sentou-se num banquinho desajeitado e só voltou pra dentro de casa depois de meia hora. o coração batia surdamente contra as costelas. 

Ele não pensou, não planejou. 

Entrou no quarto e viu Helena de frente ao espelho; corrigia, cuidadosamente, a maquiagem, valorizando os olhos azuis. Vestia uma de suas melhores roupas, salto alto e os cabelos presos. Duas malas estavam prontas.

Aquele olhar de desprezo silencioso e o sorriso de desdém despertaram, pela primeira vez, um monstro. Ciúmes…Muito Ciúmes… 

Ele não pensou, não planejou. Com toda força que tinha desferiu um golpe certeiro.  Na cabeça da esposa.

Agora, o martelo estava no balcão e Renato sentado à mesa da cozinha. Os olhos fixos no pano molhado. Ele podia ouvir o silêncio da casa, um silêncio diferente de antes. Não era o silêncio de uma briga, nem o silêncio da noite. Era um silêncio absoluto, a ausência total de vida no cômodo ao lado.

Um barulhinho arranhou a quietude. A fechadura da porta da frente rangeu. Renato não se mexeu. Ouviu passos familiares na entrada. A porta da cozinha se abriu. Cantarolando entrou a filha adolescente com uma mochila pendurada no ombro.

"Pai?", disse Paty, tirando os fones de ouvido. Os olhos direcionados ao pano sujo  e depois ao martelo no balcão. "Que cheiro é esse? Você derrubou vinho?"

Ele olhou para a filha, para os olhos que eram uma cópia exata dos da mãe, e não conseguiu responder. O peso do silêncio no quarto ao lado, de repente se tornou insuportável. A mancha no pano  parecia crescer, e o cabo do martelo parecia gritar a verdade que ele não tinha coragem de dizer.

Ele apenas apontou o dedo trêmulo para a porta do quarto, incapaz de quebrar o silêncio com sua própria voz.

 


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