O grito ficou preso na garganta
Hirtis Lazarin
O vidro da janela da cozinha estava tão embaçado que mal dava para ver o que acontecia lá fora, onde o mundo se resumia a manchas de luz amarela dos postes e ao som abafado de pneus na rua molhada. Chovia devagarinho. Dentro da casa, o silêncio era uma coisa viva, pesada e fria.
Renato estava sentado à mesa, as mãos cruzadas sobre um pano velho que usara para absorver a mancha de vinho. Era o que ele resmungava, repetidamente, a si mesmo. “É mancha de vinho”.
Olhava, insistentemente, para um objeto sobre o balcão. Um martelo de carpinteiro, a cabeça reluzindo sob a luz fraca, a madeira do cabo escura e úmida.
Nunca houve um motivo nobre, nem uma explosão incontrolável de raiva. Haviam discussões frequentes sobre contas a pagar, sobre promessas não cumpridas, sobre falar e não ser ouvido… Discussões corriqueiras entre marido e esposa.
Mas naquela noite, depois de um dia de intenso trabalho, a fome exigindo satisfação, a dor na bolha do pé causada pelo sapato novo, tudo isso reunido, fez com que o casal não encontrasse o equilíbrio necessário pra dissipar os desentendimentos. O diálogo que começou em tom áspero, foi ficando recheado de palavras raivosas e ofensas não merecidas.
Helena, que tinha a língua solta, falou sem parar coisas que não deveriam ser faladas. Estava transtornada, os olhos esbugalhados e vermelhos, diante do silêncio irritante do marido. Gritou lá do quarto: ”Vou arrumar as malas e desaparecer desta casa.
Foi quando o pânico, misturado a uma espécie de exaustão gelada, se apoderou de Renato. A ideia de que ela realmente partiria, de que o deixaria sozinho com o caos que eles construíram juntos, foi insuportável. Ele sabia bem que a esposa não era de meias palavras.
Feito um robô, levantou-se, caminhou até a caixa de ferramentas que ficava na garagem e pegou um martelo, o maior de todos. Sentou-se num banquinho desajeitado e só voltou pra dentro de casa depois de meia hora. o coração batia surdamente contra as costelas.
Ele não pensou, não planejou.
Entrou no quarto e viu Helena de frente ao espelho; corrigia, cuidadosamente, a maquiagem, valorizando os olhos azuis. Vestia uma de suas melhores roupas, salto alto e os cabelos presos. Duas malas estavam prontas.
Aquele olhar de desprezo silencioso e o sorriso de desdém despertaram, pela primeira vez, um monstro. Ciúmes…Muito Ciúmes…
Ele não pensou, não planejou. Com toda força que tinha desferiu um golpe certeiro. Na cabeça da esposa.
Agora, o martelo estava no balcão e Renato sentado à mesa da cozinha. Os olhos fixos no pano molhado. Ele podia ouvir o silêncio da casa, um silêncio diferente de antes. Não era o silêncio de uma briga, nem o silêncio da noite. Era um silêncio absoluto, a ausência total de vida no cômodo ao lado.
Um barulhinho arranhou a quietude. A fechadura da porta da frente rangeu. Renato não se mexeu. Ouviu passos familiares na entrada. A porta da cozinha se abriu. Cantarolando entrou a filha adolescente com uma mochila pendurada no ombro.
"Pai?", disse Paty, tirando os fones de ouvido. Os olhos direcionados ao pano sujo e depois ao martelo no balcão. "Que cheiro é esse? Você derrubou vinho?"
Ele olhou para a filha, para os olhos que eram uma cópia exata dos da mãe, e não conseguiu responder. O peso do silêncio no quarto ao lado, de repente se tornou insuportável. A mancha no pano parecia crescer, e o cabo do martelo parecia gritar a verdade que ele não tinha coragem de dizer.
Ele apenas apontou o dedo trêmulo para
a porta do quarto, incapaz de quebrar o silêncio com sua própria voz.
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