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quarta-feira, 12 de novembro de 2025

FRANCINE Adelaide Dittmers

 

 


FRANCINE

Adelaide Dittmers

 

Quando Francine entrou, o datilógrafo paralisou seus dedos no teclado.  Algo muito forte fez com que estremecesse perante aquela mulher, que lhe pareceu encher o ambiente com sua beleza e com seu olhar firme e sagaz.  Ela se dirigiu a ele com uma voz possante e impositiva, dizendo que tinha uma reunião com o Dr. Muraro.


Ofereceu-lhe cadeira e ela sentou-se, cruzando as pernas, a cabeça erguida e o corpo tenso.


O que ela quereria com um advogado criminalista, pensou.  Iria acusar alguém ou era a acusada?


Entrou na sala do chefe para avisá-lo da presença da mulher.


O advogado franziu o cenho e mandou-a entrar.  Dr. Muraro levantou-se para cumprimentá-la, ao mesmo tempo que analisava a postura altiva de Francine com um olhar inquisidor. Os dois se sentaram. O advogado iniciou a conversa:


— Estou sabendo do seu caso.  A senhora está reivindicando parte da fortuna de seu marido, que...

Ela o interrompeu bruscamente.


— Morreu em um acidente de carro, que estão me acusando de provocar.


Os olhos de Muraro eram duas setas, penetrando na expressão de Francine. Com uma voz calma e pausada ele continuou:

— Se quiser que eu cuide de seu caso, tem que me dizer a verdade, seja ela qual for, senão não poderei ajudá-la. Meu trabalho não é julgá-la e sim entender o que aconteceu e defendê-la.


O datilógrafo parou de martelar as teclas da máquina de escrever.  Os ouvidos atentos ao que iria ser revelado na outra sala.  O caso espalhara-se pela cidade e a ansiedade para saber o que seria revelado estremeceu seu corpo.


Ela deu um profundo suspiro.


— Meu marido, como é sabido por todos, era bem mais velho do que eu.  Quando o conheci já estava separado da primeira mulher, com quem teve três filhos.


Ao dizer isso, parou, como quisesse escolher cada palavra a ser dita. E continuou:


— Dizem por aí que casei com ele por causa do seu dinheiro.  Mas quando o conheci. fiquei  admirada pela sua inteligência, elegância e gentileza.  Foi uma atração mútua. Sempre o respeitei. Era um homem carismático.


O advogado a interrompeu:


— A senhora é considerada uma pessoa forte e, perdoe-me dizer, um tanto arrogante.


— Sim, é meu estigma, mas me tornei forte para me defender do contínuo falatório de que era apenas uma interesseira.


Muraro, então, entrou no assunto para o acidente que provocou a morte do marido.


— Pelo que verifiquei e pelo que corre por aí, o acidente em que ele perdeu a vida foi ocasionado por uma falha no freio do caro, que tinha sido alterado.


— De carros, só entendo de dirigir.


— Mas... quem mexeu nos freios, poderia ser um pau mandado por outra pessoa interessada em sua morte.


— Não fui eu.  Disse com a voz alterada e virando a cabeça de um lado para outro.


— A senhora tem ideia se ele tinha alguma desavença com alguém, alguma questão envolvendo dinheiro.


— Não.  Ela virou os olhos para cima, balançando a cabeça e apertando os lábios, como se procurasse se lembrar de algo nesse sentido. De repente parou e disse:


— A única coisa relativa a dinheiro, que houve há pouco tempo, foi que ele comunicou à família, que tinha modificado o testamento, deixando a metade de sua fortuna em espécie para mim.  A outra metade e a empresa de sua propriedade para os filhos.


— A senhora sabe como foi a reação deles?


— Eles aceitaram numa boa.


— Sra. Francine, diante do que me está relatando, vou ter que investigar o seu caso, confiando na senhora.


— Por favor, não precisa me tratar de senhora.

Muraro fixou o olhar nela.  Francine tinha despido o personagem altivo e diante dele estava a verdadeira Francine, uma mulher com medo de ser injustiçada e talvez condenada por um crime que não teria cometido.

O datilógrafo na sala contigua estava estático e se perguntava se ela estava dizendo a verdade.


— Então, Francine, vou fazer o meu trabalho para descobrir a verdade, confiando no que me contou.


A mulher sorriu apenas com os olhos.


— Obrigada, doutor!  E levantou-se.


O datilógrafo fingiu que estava escrevendo. Pensamentos desencontrados se chocavam em sua cabeça.  Adorava participar dos casos, que exigiam uma investigação. Por isso, ainda estava lá na sua simples função. Queria ser investigador.

 

Francine passou por ele vestida por seu personagem, apenas um tremor na mão, que segurava a bolsa, mostrou sua insegurança.


Ele sentiu o sabor desse caso com um sorriso de satisfação.


O advogado veio até ele.


— Temos um caso para resolver.  Como você adora investigações, vou contar com sua ajuda.


Os olhos do datilógrafo se iluminaram.


— Pode contar comigo, Doutor.


Durante os dias seguintes, os dois vasculharam a vida da suspeita, da família e de pessoas relacionadas com o milionário.


Francine era de uma família de classe média.  Trabalhava como gerente de um dos bancos, em que Rogério Dantas tinha conta.  Lá se conheceram.  Era considerada eficiente e séria.

 

Investigando a família de Rogério, a história foi se delineando, palavra por palavra, letra por letra e uma cortina de fumaça foi se desfazendo diante deles.


Ao fundo, foi aparecendo uma figura inesperada.  Foi surgindo uma mulher de fala mansa, discreta, com atitudes equilibrada, religiosa, amável, mas que guardava dentro de si um orgulho profundo, que se acentuara com a separação do marido e que se transformara em um ódio silencioso ao saber que ele se casara com a bela e jovem Francine. 


Ao tomar conhecimento do teor do testamento, a fúria a tomou por inteiro e a cegou. Discreta e serena, a mulher que vivia em uma bolha dourada, flutuando nas alturas, desceu para o lamaçal da vingança.


Ofereceu uma grande quantia a um dos empregados, que sabia estar precisando de dinheiro para custear a doença da esposa e pediu-lhe para encontrar alguém capaz de ajudá-la em uma questão particular.  Sabia que ele morava em uma grande favela e acharia a pessoa certa.  O homem deveria ser destemido e confiável.


Muraro e o datilógrafo foram desenrolando esse complicado novelo e a cada passo mais surpreendidos ficavam. A notícia caiu como um raio na cidade, quando a mulher que era conhecida pelo seus modos elegantes e benevolentes revelou-se uma assassina.  A família viu-se sacudida por um terremoto de emoções desencontradas. A mãe enlouquecera sem que percebessem.  O luto abateu-se sobre eles pelo pai morto mais profundamente pela mãe, que desconheciam.


A porta do escritório do Dr. Muraro abriu-se para uma mulher diferente, leve em seus passos e tranquila em suas feições.


O advogado a recebeu com um sorriso  caloroso. O datilógrafo levantou-se e os três uniram suas mãos.  A gratidão estampada no rosto  e a emoção derramando-se em gotas pelo rosto de Francine. 

 

 

Amizade x Traição - HIRTIS LAZARIN

 



Amizade x Traição

HIRTIS LAZARIN

 

Eu sou o último sobrevivente de uma caixa com doze garrafas. Produto de excelentíssima qualidade, impecável na cor, aroma e paladar. Somos compartilhados com pessoas de alto nível na sociedade. Gente poderosa e exigente.

 

A família me ofereceu num jantar servido numa mesa clássica e versátil, onde brilhavam castiçais de prata, rodeados de arranjo com lírios e alecrim.

 

A comida estava tão boa quanto deveria estar, mas nem tudo aconteceu como deveria acontecer. Então, vamos lá…

 

Todos se foram. Só sobrou ele. Debruçado sobre a mesa, parece dormir. Da sua boca escorre um fiapo de baba avermelhada, misturada a palavras desconexas.

 

Você sabia que o vinho fala e tem língua solta? Observe o bêbado do buteco, o convidado indesejado, o santo bobo da corte.

 

O vinho é um ventríloquo e tem um milhão de vozes. Solta a língua, arrancando segredos que você nem nunca quis contar, segredos que você nem sequer sabia.

 

O vinho grita, vocifera, sussurra e muitas vezes chora. Fala de grandes planos, amores perdidos, terríveis traições. Ele gargalha aos berros. Ele dá risadinhas para si mesmo.

 

“Cuidado comigo! Eu posso ser  amigo ou traiçoeiro”.

 

Parafraseando “O Pensador”:

                  A primeira taça de vinho é por desejo…

                   A segunda, porque o vinho é do Alentejo…

                A terceira, por simples e puro prazer…

                 A quarta, porque não tinha mais nada a fazer…

 A quinta… como é que eu vou saber!!!

 

 

INFÂNCIA - PEDRO HENRIQUE

 




Infância

Pedro Henrique

 

     Ouvi do mar a canção, delineada pelas mãos do destino, que consagrava o corpo da jovem ao fardo de velejar pelos mares da solidão. 

     De seus olhos verte o sangue que encharca o manto branco com o qual se protege dos homens, da vida, do silêncio…
      Procura, cava, vasculha na lama a possibilidade de sair pelas vielas do extraordinário para analisar se lá há de encontrar algum sentido para seu pobre corpo.
     Tudo aqui me é um tanto estranho, todavia real, e o real me assusta.
Vi-a quando comprava cigarros no bar e seu olhar, longínquo, humano e odioso, emanou um perfume de berros e gemidos das entranhas do indizível, portanto me intriguei em mapear o que de inquietante havia ali.
     Olhando com mais afinco, pude notar que se tratava de família. Sei como relacionamentos permeados de arames farpados podem dissolver a alma no copo da amargura, então, sim, legitimei minha tese e fui buscar as respostas, com isso voltei em uma parte crucial de sua vida: infância.
     Ao averiguar, vi uma cena que provocava-me ao extremo:

     Uma criança, com asas prontas para o voo no céu dos devaneios, dando banho em uma senhora. 

     Começou derramando água em seus cabelos grisalhos, em seguida sobre o seio tímido e indo ao pé. Vi que do olhar da pequena lágrimas indeléveis caíam, batizando seu próprio ser à coragem de defrontar-se com a vida e dizer: aqui estou, eu aguento.
     Esta cena me fez procurar pelo seu começo, que encontrei no abandono da pequena pela própria mãe. E assim sendo, foi jogada nos braços da avó paterna que teve de cuidar dela.

     Vasculhei mais um pouco aquela casa e encontrei um homem alto e com a aparência de cães sarnentos e veiacos, sim, o pai da menina. Porém, não era o suficiente, tive que ir mais a fundo.

     Encontrei a certidão de nascimento dela com o registro apenas do nome dele, então soube: a mãe fugira para sempre.
     Tinha desejos, sonhos, ambições e tudo isso tinha um preço imposto pelos bancos do destino e o amor materno não foi forte o suficiente para prender aquela que tinha em si as elevadas metrópoles, as festas e as passarelas da grande São Paulo.
     A avó pegou para cuidar a pedido do pai que trabalhava como camioneiro e nunca parava em casa, mas não importava, bastava a escola particular estar paga, o balé e o inglês em dia e pronto, era o melhor pai do mundo. Não importa a atenção, o sentimento, o beijo antes de dormir, os parabéns no aniversário.
     Porém, quem pode julgar um pobre ser que fez de seus trapos, roupas e tenta, mesmo sem saber como, ser pai?
     A avó, então, teve que olhar para o rosto daquela que delatava na arquitetura da face ser filha da mulher que destruiu a vida de seu primogênito.
     Ah, mas isso não ficaria por isso mesmo, não poderia pegar a mãe, entretanto a filha? Essa podia tudo. Beliscões, tapas, serviço pesado e noites trancada no quarto e devia agradecer: “Se não fosse eu, você estaria em um orfanato.”
     Com isso, erguia seu manto de dor, secava as lágrimas de angústia e se perguntava por quê?
     Mas quem tem essa resposta, não é mesmo?
     Tinha uma amiga: Ana Paula. Era lá que ia quando não aguentava segurar o fardo de ser a eleita pela violência e desamor.
     Ana tinha uma coleção de bonecas que dava à nossa pequena a chance de descortinar o que seria a felicidade.
     Aqueles vestidos ínfimos, aqueles cabelos loiros e as imitações e onomatopeias mostravam a ela que sim, infância podia ser uma palavra presente em seu vocabulário.
     Com o passar dos anos, o corpo foi ganhando forma e revelando mais ainda sua origem, o que fazia a avó se enterrar nas plantações do ódio que nutria desde o dia em que seu filho revelara que seria pai da filha da mulher que ela desaprovava como nora, portanto podia intensificar a violência. 

     Não precisava mais do cinto nem do chinelo, tinha direito a vassoura ou ao bico de boi que comprara para mostrar que podia, sim, dissolver sua raiva com as chibatadas e sentar-se na mesa farta da vingança.
     No entanto, desconhecia que o coração do homem tem suas idiossincrasias e que sob pressão, não existe submissão nem civilização, só nos entregamos à nossa forma primitiva e dela forjamos nosso louvor à sobrevivência.
     Isto posto, temos o fato que engendra a abertura deste texto. Falo do bico de boi ser utilizado como objeto de medo pela avó e tal fato homologado pelas feridas nas costas da neta que a cada chibatada domava dentro de si o animal que clamava para ser desenjaulado e ao ter seu anseio aparecido e aprovado voou para abater seu algoz, mas nem teve chance, esta se apavorou e transigiu o corpo para trás de tal forma que quando se deu por si, estava no final dos degraus da escada da casa com uma poça de sangue ao seu redor.
     E como um coração ferido não esquece dos espinhos, a neta permaneceu imóvel e, se não fosse o pai chegar naquele exato momento, a avó estaria jazendo embaixo da terra, contudo viveu para contrariar todos os que desejavam vê-la gritando no lugar onde todas as almas ruins gritam. 

    Ah, mas a vida é sábia e o que se faz aqui, se paga aqui. Viveu? Sim, entretanto, não falava nem gesticulava. Tetraplegia, disse o médico.

     E assim sendo, o carro do pão passou no dia seguinte, os automóveis continuaram a buzinar, o pai, o caminhão, pois para andar e a vida com todo seu labor, teve de se movimentar. Ela? A pequena? Coitada, teve que da avó cuidar. 

     Dar banho, trocar fraldas, fazer a comida, lavar as roupas, etc., etc., etc. 

     Um dia, enquanto arrumava o quarto, encontrou o bico de boi e sentiu em seu peito um sentimento já um tanto familiar se aproximar. Olhou para o chicote e para a avó sentada na cadeira de rodas defronte à janela do quarto e resolveu experimentar. 

 

 

PROBLEMAS ACONTECEM! - Dinah Ribeiro de Amorim

PROBLEMAS ACONTECEM! Dinah Ribeiro de Amorim Acordo de madrugada com batidas fortes na porta. A campainha, acionada, muitas vezes, dev...