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quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O Tempo que nos Resta - Hirtis Lazarin

 

O Tempo que nos Resta

Hirtis Lazarin

 

Joaquim não se levantou para o café da manhã como fazia religiosamente todos os dias, às seis horas da manhã. 

— Pai, não precisa levantar tão cedo! Repetia a filha, Benê, com paciência nenhuma. Ela não entendia que esse hábito foi incorporado àquele corpo durante trinta anos de trabalho e repetido todos os dias. Ainda bem que a surdez de Seu Joaquim não o deixava ouvir com clareza todas as reclamações. 

A tarde era de verão e o sol, de tão intenso, amoleceu o asfalto da rua. Maria faxinava a casa e o idoso, pra não atrapalhar a movimentação lá dentro, foi levado ao jardim numa cadeira de braços desprovida de qualquer vestígio de conforto — uma capa de plástico cobria a palhinha dura e áspera — e, apesar da alta temperatura, uma manta xadrez cobria-lhe o joelho. A cabeça caída no peito e um fio de baba escorria da boca. 

Ali isolado, só lhe restava o lirismo e a poesia da natureza: o perfume do jasmim, as flores amarelas da giesta e as folhinhas do chorão faiscando — verde, verde! Ainda bem que a sensibilidade e o gosto pelo belo e colorido permaneciam imutáveis.

Vontade de viver? Não, não lhe sobrou nada. A esposa, companheira maravilhosa, já se fora após anos de sofrimento. Berê, a única filha, sempre sem paciência e irritada, dirigia poucas palavras ao pai. O neto, um adolescente chato que só sabia reclamar do suco que estava muito doce; peixe, ele não gostava; tênis novo, roupa nova… Não raramente, passava a semana inteira sem ver o avô. 

Ler um livro, assistir a um filme, nem pensar. Após o derrame, os olhos vermelhos e embaçados deformaram as letras, as imagens…

A dor da solidão é imensurável. É maior que morder a língua, bater a cabeça na quina da mesa, pedra no rim. Ela chega impiedosa quando nos conscientizamos de que os pedaços bons da vida foram ficando pelo caminho. Aparecem em flashes, migalhas de satisfação passageira. A mesa cheia de gente e comida boa,  aniversários com estouro de bexigas coloridas e muitos parabéns, o choro da menina inconformada com o presente que não queria, o pneu furado e as horas perdidas na estrada compensadas pelo banho de mar.

Sentir o perfume da esposa era, para Seu Joaquim, um abraço apertado de muito amor, conforto e prazer.  

Raramente, ele se olhava no espelho. Não se conformava com o estrago que o tempo lhe causou. Outrora, um homem ousado e cativante. Sempre elegante nos ternos de cores sóbrias e corte impecável. A coleção de gravatas era de causar inveja.  A cabeleira vasta e esvoaçante virou meia dúzia de fios brancos. E o mais deprimente era aquela caspa na sobrancelha grossa e desgrenhada que o fazia sentir-se uma barata leprosa.

Na sombra das folhas, ele adormece…

De repente, acorda com gritos: 

— Eu recolho a roupa e você, Maria,  fecha as janelas. Já prendeu o Thor, Ricardinho? 

Rebenta com fúria um temporal. Foi rápido, mas intenso, com ventos e sequência de trovões.

Aos trancos, Joaquim ergue o rosto, a chuva escorre na boca torta e o olho vermelho revira em agonia. É uma coisa esquecida na confusão de recolher a roupa e fechar as janelas.

Joaquim vale menos que as roupas, menos que o cachorro? 

O quarto do Seu Joaquim está vazio. 

Um caminhão estacionado à frente da casa transporta mobílias para doação.

 

 

A TRISTEZA IMPOSSÍVEL! - Dinah Ribeiro de Amorim

 

 


A TRISTEZA IMPOSSÍVEL!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

 

Era um moço muito quieto, quase não se mexia nem falava. Era um ninguém no mundo. Na escola, pensavam até que fosse mudo, mas não era. Respondia somente às perguntas dos professores. Enfim, respondia somente o que era impossível não enviar uma resposta. Semelhante a um aparelho, quando ligado.

Em casa, também bastante quieto e comportado, somente falava o necessário com o avô, única família que possuía, após a morte dos pais em acidente de carro, quando pequeno.

Com a velhice, seu avô foi também impossibilitado de conviver em sociedade, dificultando mais a sua timidez ou tristeza, ou depressão, ou temperamento, sabe-se lá o que dificultava a sua normalidade, como jovem, sadio, aparentemente normal.

O único frequentador da casa, como pessoa mais íntima, era o Dr. Afonso, advogado particular das finanças e bens do avô. Sabia respeitar o ambiente e a natureza dos seus clientes, explicando as situações mais difíceis, calmamente, a Joel, o neto de temperamento estranho, que conheceu desde criança.

Falava-lhe somente o necessário, embora também estranhasse, às vezes, esse olhar entristecido, essa ausência completa de um pouco de vivacidade, normal à idade. Jovem, forte, bonito e rico, sim, de vida econômica muito atraente.

Joel, com um pouco mais de alegria, seria um grande partido, desejo de qualquer moça com ideias casadouras.

Com o passar do tempo, em idade já avançada, o avô de Joel falece, tendo Dr. Afonso que comparecer à casa inúmeras vezes para resolver assuntos de herança.

Era um verdadeiro sacrifício porque o rapaz não manifestava nada, nenhum sentimento. A mesma fisionomia apática e triste que o acompanhava sempre permanece nessas reuniões. Nem tristeza, nem dor pela morte do avô, nem a alegria em ficar mais rico e herdeiro dos bens para ele deixados. Que moço estranho, esse neto, pensa Dr. Afonso. “Cada vez que tenho que ir lá, saio pensativo, triste, algo estranho parece que me consome, passo o dia deprimido, reclamo até do meu trabalho!”

Joel, ao ficar sem o avô, caminha silenciosamente pela casa, observa retratos, descobre figuras que lembram seus pais, sua vida em pequeno, recorda-se, lentamente, de alguns momentos alegres que teve, como criança. Sabe que é diferente dos outros, percebe reações estranhas quando é obrigado a se dirigir a terceiros. Mas nunca deu muita importância a isso. É um deprimido ou um triste mesmo, em relação à vida. Nada o entusiasma, nada decide colocar em prática. Somente vive, come o necessário e dorme. Às vezes, alguma leitura ou caminhada, para manter a cabeça e o corpo em dia.

Se encontra algum vizinho pelo caminho, desvia rapidamente, no que é respeitado, não deseja amigos nem eles o querem conhecer.

É ajudado, em casa, por uma senhora gorda, Dona Berta, cuidadora do avô há muitos anos. Faz todo o serviço em silêncio, acostumada com o temperamento de Joel. Não costuma falar à toa nem puxar conversa.

Da. Berta, preocupa-se com ele, mas sabe que não adianta fazer nada, o rapaz deve ter traumas difíceis, desde a morte dos pais. Nem o avô conseguiu arrancar essa tristeza dele, levando-o a vários médicos. Joel não abria a boca.

Numa tarde, Dr. Afonso aparece para vê-lo e discutir um assunto sério. A venda de uma casa na praia, lugar aprazível, COCOA BEACH,  famosa por esportes náuticos, próxima ao Centro Espacial Kennedy, deixada pelo avô, que um casal queria comprar.

Joel recebe-o de má vontade, achando um grande esforço só ouvi-lo. Dr. Afonso traz até fotos lindas do local. Aconselha-o a vender, como um bom negócio, já que ninguém utiliza a residência. Bonita casa sujeita a se desfazer.

O rapaz fica de pensar no assunto e, aborrecido, despacha logo o advogado, assim que consegue. Sente-se cansado, incomodado com tanta invasão de privacidade.

Numa tarde, Dona Berta, o chama para mostrar umas fotos dele, em criança, na casa de praia. Quer auxiliá-lo a se decidir.

Não é que desperte nele alguma curiosidade! Demonstra um certo interesse e olha as fotos com ligeiro sorriso.

A figura dele pequeno, alguns amiguinhos por perto, seus pais e os avós ainda vivos, dá-lhe certa saudade. Espanta-se com isso. Nem sabe mais como é sentir… Dona Berta se entusiasma.

Para Joel, tanto faz o lugar, mas sente vontade de voltar a ver o mar. Será que será diferente? Sentirá algum sentimento novo? Estranho isso nele. Há muito não sabe o que é ter vontade…

Arruma algumas roupas, dirige o carro que lhe restou do avô, dirigir, para ele, um ato mecânico, prático, como andar ou comer, e vai em direção à praia, ao mar que nunca mais viu.

Em meio ao caminho, sente um cheiro diferente, meio de peixe, meio de maresia, fica um pouco enjoado, quer voltar.

O tempo ensolarado muda, aproxima-se um cheiro de terra molhada, uma cor escura nas nuvens, uns barulhos mais fortes que prenunciam a mudança no clima. Melhor continuar quieto em casa, voltar.

Para voltar, naquela hora, impossível, uma barreira feita na estrada impede os automóveis de retornarem. O jeito, arrependido, é seguir em frente.

Continua pela estrada e só para quando chega à casa à venda, a casa que ainda é sua.

Abre-a e a memória volta, aos poucos, reconhecendo objetos e ambientes. Lembra-se de alguns momentos de sua infância, embora se desgoste disso.

Repara pela janela que os vizinhos estão agitados. Pessoas saem pelas ruas às pressas, movimentam-se, parecem fechar rapidamente suas casas, temem alguma coisa.

Examina o mar azul e calmo, da mansidão da sua infância. Parece que já não está tão baixo e manso como era. Suas águas furiosas enviam ondas quase tão altas como as residências.

Um vizinho bate à sua porta e vem avisá-lo de que estão temendo forte tempestade, talvez até a vinda de um tornado. ”Péssimo dia para o senhor voltar!”, exclama.

Joel tremula um pouco as pernas com a visita, não pelo assunto, mas pela palavra com um estranho, o que o atemoriza. Detesta vozes alheias, aliás, não gosta de voz nenhuma.

Agradece o aviso e, quando vai fechar a porta, o vizinho anuncia que, se precisar, poderá ajudá-lo a se refugiar no porão de sua casa.

Joel pensa: “Não recorrerei a ele, nunca, nem que a casa caia em minha cabeça!”

Fecha tudo rápido, deita-se em sua cama, presta atenção nos sons. Aguarda a tão falada chuva forte! As ondas do mar transformam-se em rugidos fortes semelhantes a leões que cavalgam em fúria contra rochas endurecidas.

Ela chega logo. Os trovões e raios atormentam seus ouvidos. Um vento ligeiro e cantador soa alto, parecendo levar tudo que encontra.

As janelas abrem e algumas voam e só param quando encontram algo mais forte que elas ou alguma árvore alta e resistente.

Na verdade, Joel começa a sentir medo, há tempos que não sentia. É bem provável que acabe voando também. Talvez a cidade enviará seres humanos como foguetes espaciais, pensa, com ironia.

O medo o ataca de tal forma que ele se levanta rápido e corre para o porão da casa vizinha. A água do mar subiu e fez sumir a praia, chegando às casas.

Bem acolhido, reúne-se ao grupo de albergados da rua, que se abraçam e o recebem carinhosamente. Sente-se bem no meio deles, o que há tempos não sentia, junto aos outros.

Esse terrível temporal, como veio, foi. Levou horas e muita coisa com ele. Fez estragos.

Com calma, saíram os que restaram para examinar as sobras.

Muita coisa mudou. Muitos se entristeceram. Perderam quase tudo. Alguém se reencontrou… Mudou com essa chuva terrível! Difícil de explicar… Joel, menos assustado e muito falante, abraça os novos amigos e começa a auxiliar seus vizinhos da rua a recolher os objetos que poderiam ser aproveitados.

A simpatia e o acolhimento dos amigos, nessa hora difícil, o sentimento de medo e dor, transformam a vida do rapaz eternamente triste, de uma depressão incompreensível! Joel muda o seu temperamento, torna-se um homem justo e responsável, um auxiliar da comunidade, mudando-se para essa casa na Flórida e refazendo sua vida.

 Anos mais tarde, recebe a visita da antiga Dona Berta, que encontra um homem feliz, casado agora com Mary e pai do pequeno Robson.

Ainda treme um pouco com o barulho das ondas quando quebram na praia ou o barulho de um foguete lançado ao espaço, mas, o filho, ama ouvi-los!

O Tempo que nos Resta - Hirtis Lazarin

  O Tempo que nos Resta Hirtis Lazarin   Joaquim não se levantou para o café da manhã como fazia religiosamente todos os dias, às seis...