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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Joia de família - Pedro Henrique




Joia de família

Pedro Henrique

 

 Existem histórias que marcam toda uma geração e transpassam a outra como uma joia esporádica de família que, a cada nova vinda, troca de mão.

          No entanto, esta joia é daquelas que ninguém ambiciona, pois nos encontros dos caminhos não haverá aquele que desejará o arame farpado rasgando sua carne como forma de herança.

     Nesse sentido, ainda afirmo que a concatenação dos fragmentos dos diversos sentires furiosos até formar uma unidade única chamada raiva eleva-se em tamanha magnitude ao pensar que tal veredito é designado a um corpo específico: o preto.

     Acham que minto? Rio de vós. Não fazem ideia da correnteza desse rio que nasceu há séculos e séculos e que veio com seu perigoso e turbulento percurso até chegar a nós.

     Posso começar em Mãe África com os reis que se assentavam em riquezas, joias e tronos banhados a ouro ou com aqueles — que nas minas estreitas e precárias, onde somente o ouro era cobiçado — trabalhavam, e ai deles se pouca ou nenhuma pepita achassem.

     Não importa o sol escaldante ou a poeira demasiada que aprisionava-se em seus corpos, apenas trabalhe porque senão há um toco, batizado pelo medo, à sua espera.

     Ou então, posso partir de minha bisavó, que vivia no trabalho constante de limpar, esfregar, varrer, amamentar e dar ao seu patrão, suas intimidades, quando este bem-queria.

     Posso lhes contar se assim desejarem. Queres? Sim. Ok. Pensem. Uma casa grande. Uma esposa, um marido e um casal de filhos, todos morando em uma mansão repleta de pretos trabalhando para eles.   

     Agora, imaginem outra família; esta, por sua vez, não é rica nem branca. Esta tem que trabalhar e muito para prover o sustento.

     O pai labuta no cafezal dia e noite, preparando solos e mais solos, colhendo grãos e mais grãos, além de cuidar dos animais, construir cercas, fazer reparos na casa e demais instalações na fazenda.

     A mãe tinha suas atividades na casa grande, junto às duas filhas que a ajudavam com todas as demandas e servindo de babás para a filha mimada de sua patroa.

            A menina era cruel, ignóbil, implacável, selvagem. Vivia beliscando as coitadas e estas nada podiam incidir sobre a conjuntura. Ela era a concretização indubitável do velho e perene dito popular de que o fruto não cai longe da árvore.

          Afinal, sua mãe não se ressentia em denotar que, para ela, os negros não têm espírito, nem alma, só são corpos e os corpos só trabalham, não têm direito a regalias.

          Esperta, a filha aprendeu com esmero como as pretinhas da casa deveriam ser tratadas e decidiu colocar em prática os ensinamentos da matriarca. Para tanto, elegeu minha bisavó, uma das babás, como sua cobaia.  

          A filhinha linda e amável fecundava o desejo imensurável de fazer com que as pretinhas não se sentissem bem-vindas ao núcleo de seus domínios.

            Sendo assim, valia-se de todos os recursos possíveis, entre eles a palavra. “Feia”, “cabelo duro”, “escrava fedida”, “filha do demônio”, “mulata mal-educada”, “macaca” e todos os outros adjetivos que tangiam ao fedor, feio e indigno, se reduziram a meros micros eufemismos para o que queria factualmente expressar em relação às babás.

     Inerme, minha ancestral tentava se desvencilhar, mesmo sem saber como, de tudo aquilo, levava sua mente aos voos mais elevados e longínquos onde era convidada de honra no festejo do júbilo, usufruía dos devaneios e das esperanças.
 Ah… como cantava bem, mas tão bem. Entregava-se ao deleite de ao menos sonhar em haver uma utopia em que poderia viver disso. Sempre que suas palavras, plasmadas em mel aos ouvidos dos vivos, ganhavam musculatura e forma, sentia-se liberta de si e de suas correntes. O mundo paria cor e aroma, tinha cheiro de vida. 

     Fechava os olhos e seus pensamentos descortinavam tal realidade. Às vezes, até no trabalho, parava, olhava pela janela ao pôr do sol e o canto emergia de seus rachados lábios Vinha com glória e majestade, vinha denunciar um novo amanhã, um novo dilema, uma nova arquitetura. Ah, vinha pregar o amanhecer, o ceifamento das trevas, o andar nos campos do afeto.


 Pena que felicidade é uma madame hostil e que rejeita pobres e todos os que gritam por socorro na costa do oceano social. O que ocorreu é o que me perguntam? Pois bem! 

     Um dia, minha bisa gozava de seu canto visceral e os ecos de sua voz beijavam cada canto da casa grande, de modo a penetrar os ouvidos da sinhazinha e nela fez jorrar o ódio e a inveja.

     Não suportando, portanto, aquele som, saiu furiosa da sala de estar e foi à cozinha mandá-la se calar. Porém, a crueldade sabe o momento exato de dar o bote e fazer suas vítimas experimentarem, a contragosto, o odor que dela emana.

     A garota pegou um canecão de água que estava fervendo no fogão a lenha e, quando minha bisavó tomou ciência do mundo, já estava gritando, clamando por socorro.

     A sinhazinha foi acolhida pelos pais e sua versão da história de que a pretinha estava mentindo e que o canecão havia caído e, magicamente, parado em seu rosto, foi aceita.

     Minha bisa só não ficou cega por um milagre. Assim que gritou, minha trisavó veio como águia ver o que havia acontecido e logo socorreu a filha.

     Levou-a para o funesto casebre dos fundos onde moravam, chamou o marido e juntos rogaram ao Obaluaiê, pedindo-lhe cura e amparo.

     Com o tempo, minha bisavó voltou a abrir os olhos e cantar suas músicas, ainda que em pensamento, por angariar de maneira desumana o entendimento de que seu corpo nascera de tal forma silenciado e que o som que dele emergia era ceifado pelas mãos atrozes daqueles que ditavam os mandos.

          E foi sob este cenário, caro leitor, no qual a insegurança e a perversidade humana entoavam seu louvor peremptório, que minha bisavó cresceu.

     Porém, também tinha seus momentos de deleite, nutria um sentimento único por plantas, vivia regando as rosas e tulipas de sua patroa, chegou até a fazer um canteiro de camélias no jardim que havia na parte externa do grande casarão.

          Afirmava com propriedade que as plantas eram suas filhas. Quando acompanhava seu processo de afloramento, divagava pelas trilhas do devaneio, imaginando que ela também era assim: uma rosa em desenvolvimento, pronta para revelar suas pétalas e encantar a todos que a vissem.

     Entretanto, era “feia” e sentia em seu coração que nunca alguém olharia para ela com encantos.

     O pior de tudo foi ter que se cobrir com a casca da maturidade muito cedo, afinal, com doze anos, enquanto servia café no escritório do senhor da casa, foi surpreendida por suas mãos repugnantes agarrando seu braço e a colocando virada para si em cima da mesa.

     Quando gritou, movida por um sentimento que se ramificava desgovernadamente por suas vísceras, cuja nomenclatura é medo, só teve a oportunidade de vislumbrar o punho do patrão visitar seu rosto.

          Além disso, teve de ouvir com todas as letras e fonemas que, caso não se calasse, teria de sair da casa dele e ir morar na rua, como o resto dos pretos.

     Sendo assim, ela apenas se calou e aceitou seu destino sem hesitar, afinal, o que poderia fazer?

     Desta forma, as águas impiedosas que compunham esse rio chamado existência seguiram.

    Com quinze anos, engravidou de minha avó e a vida como palco para a apresentação do horror havia injetado em seu corpo todas as chagas, lepras e espinhos do estar no mundo.

     Curioso ou não, a história perpetua-se. E, sob o pôr do sol de cada dia, nunca nasceu a esperança de que em algum momento as coisas seriam diferentes.

     Oramos para a maligna joia sair enfim de nossas mãos e nos deixar livres de toda condenação, pois sei como minha bisa e minha vó souberam que a alcateia não nos exime da mordida dolorosa, fria e lenta, em que só a morte tem o poder de colocar um ponto final.

 

 


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