Joia de família
Pedro Henrique
Existem histórias que marcam toda uma geração
e transpassam a outra como uma joia esporádica de família que, a cada nova
vinda, troca de mão.
No
entanto, esta joia é daquelas que ninguém ambiciona, pois nos encontros dos
caminhos não haverá aquele que desejará o arame farpado rasgando sua carne como
forma de herança.
Nesse
sentido, ainda afirmo que a concatenação dos fragmentos dos diversos sentires
furiosos até formar uma unidade única chamada raiva eleva-se em tamanha
magnitude ao pensar que tal veredito é designado a um corpo específico: o
preto.
Acham que
minto? Rio de vós. Não fazem ideia da correnteza desse rio que nasceu há
séculos e séculos e que veio com seu perigoso e turbulento percurso até chegar
a nós.
Posso
começar em Mãe África com os reis que se assentavam em riquezas, joias e tronos
banhados a ouro ou com aqueles — que nas minas estreitas e precárias, onde
somente o ouro era cobiçado — trabalhavam, e ai deles se pouca ou nenhuma
pepita achassem.
Não
importa o sol escaldante ou a poeira demasiada que aprisionava-se em seus
corpos, apenas trabalhe porque senão há um toco, batizado pelo medo, à sua
espera.
Ou então,
posso partir de minha bisavó, que vivia no trabalho constante de limpar,
esfregar, varrer, amamentar e dar ao seu patrão, suas intimidades, quando este
bem-queria.
Posso
lhes contar se assim desejarem. Queres? Sim. Ok. Pensem. Uma casa grande. Uma
esposa, um marido e um casal de filhos, todos morando em uma mansão repleta de
pretos trabalhando para eles.
Agora,
imaginem outra família; esta, por sua vez, não é rica nem branca. Esta tem que
trabalhar e muito para prover o sustento.
O pai
labuta no cafezal dia e noite, preparando solos e mais solos, colhendo grãos e
mais grãos, além de cuidar dos animais, construir cercas, fazer reparos na casa
e demais instalações na fazenda.
A mãe
tinha suas atividades na casa grande, junto às duas filhas que a ajudavam com
todas as demandas e servindo de babás para a filha mimada de sua patroa.
A
menina era cruel, ignóbil, implacável, selvagem. Vivia beliscando as coitadas e
estas nada podiam incidir sobre a conjuntura. Ela era a concretização
indubitável do velho e perene dito popular de que o fruto não cai longe da
árvore.
Afinal,
sua mãe não se ressentia em denotar que, para ela, os negros não têm espírito,
nem alma, só são corpos e os corpos só trabalham, não têm direito a regalias.
Esperta,
a filha aprendeu com esmero como as pretinhas da casa deveriam ser tratadas e
decidiu colocar em prática os ensinamentos da matriarca. Para tanto, elegeu
minha bisavó, uma das babás, como sua cobaia.
A
filhinha linda e amável fecundava o desejo imensurável de fazer com que as
pretinhas não se sentissem bem-vindas ao núcleo de seus domínios.
Sendo
assim, valia-se de todos os recursos possíveis, entre eles a palavra. “Feia”,
“cabelo duro”, “escrava fedida”, “filha do demônio”, “mulata mal-educada”,
“macaca” e todos os outros adjetivos que tangiam ao fedor, feio e indigno, se
reduziram a meros micros eufemismos para o que queria factualmente expressar em
relação às babás.
Inerme,
minha ancestral tentava se desvencilhar, mesmo sem saber como, de tudo aquilo,
levava sua mente aos voos mais elevados e longínquos onde era convidada de
honra no festejo do júbilo, usufruía dos devaneios e das esperanças.
Ah… como cantava bem, mas tão bem. Entregava-se ao deleite de ao menos
sonhar em haver uma utopia em que poderia viver disso. Sempre que suas
palavras, plasmadas em mel aos ouvidos dos vivos, ganhavam musculatura e forma,
sentia-se liberta de si e de suas correntes. O mundo paria cor e aroma, tinha
cheiro de vida.
Fechava os olhos e seus pensamentos descortinavam tal realidade. Às vezes, até no trabalho, parava, olhava pela janela ao pôr do sol e o canto emergia de seus rachados lábios Vinha com glória e majestade, vinha denunciar um novo amanhã, um novo dilema, uma nova arquitetura. Ah, vinha pregar o amanhecer, o ceifamento das trevas, o andar nos campos do afeto.
Pena que felicidade é uma madame hostil e que rejeita pobres e todos os
que gritam por socorro na costa do oceano social. O que ocorreu é o que me
perguntam? Pois bem!
Um dia,
minha bisa gozava de seu canto visceral e os ecos de sua voz beijavam cada
canto da casa grande, de modo a penetrar os ouvidos da sinhazinha e nela fez
jorrar o ódio e a inveja.
Não
suportando, portanto, aquele som, saiu furiosa da sala de estar e foi à cozinha
mandá-la se calar. Porém, a crueldade sabe o momento exato de dar o bote e
fazer suas vítimas experimentarem, a contragosto, o odor que dela emana.
A garota
pegou um canecão de água que estava fervendo no fogão a lenha e, quando minha
bisavó tomou ciência do mundo, já estava gritando, clamando por socorro.
A
sinhazinha foi acolhida pelos pais e sua versão da história de que a pretinha
estava mentindo e que o canecão havia caído e, magicamente, parado em seu
rosto, foi aceita.
Minha
bisa só não ficou cega por um milagre. Assim que gritou, minha trisavó veio
como águia ver o que havia acontecido e logo socorreu a filha.
Levou-a para
o funesto casebre dos fundos onde moravam, chamou o marido e juntos rogaram ao
Obaluaiê, pedindo-lhe cura e amparo.
Com o
tempo, minha bisavó voltou a abrir os olhos e cantar suas músicas, ainda que em
pensamento, por angariar de maneira desumana o entendimento de que seu corpo
nascera de tal forma silenciado e que o som que dele emergia era ceifado pelas
mãos atrozes daqueles que ditavam os mandos.
E
foi sob este cenário, caro leitor, no qual a insegurança e a perversidade
humana entoavam seu louvor peremptório, que minha bisavó cresceu.
Porém,
também tinha seus momentos de deleite, nutria um sentimento único por plantas,
vivia regando as rosas e tulipas de sua patroa, chegou até a fazer um canteiro
de camélias no jardim que havia na parte externa do grande casarão.
Afirmava
com propriedade que as plantas eram suas filhas. Quando acompanhava seu
processo de afloramento, divagava pelas trilhas do devaneio, imaginando que ela
também era assim: uma rosa em desenvolvimento, pronta para revelar suas pétalas
e encantar a todos que a vissem.
Entretanto,
era “feia” e sentia em seu coração que nunca alguém olharia para ela com
encantos.
O pior de
tudo foi ter que se cobrir com a casca da maturidade muito cedo, afinal, com
doze anos, enquanto servia café no escritório do senhor da casa, foi
surpreendida por suas mãos repugnantes agarrando seu braço e a colocando virada
para si em cima da mesa.
Quando
gritou, movida por um sentimento que se ramificava desgovernadamente por suas
vísceras, cuja nomenclatura é medo, só teve a oportunidade de vislumbrar o
punho do patrão visitar seu rosto.
Além
disso, teve de ouvir com todas as letras e fonemas que, caso não se calasse,
teria de sair da casa dele e ir morar na rua, como o resto dos pretos.
Sendo
assim, ela apenas se calou e aceitou seu destino sem hesitar, afinal, o que
poderia fazer?
Desta
forma, as águas impiedosas que compunham esse rio chamado existência seguiram.
Com quinze
anos, engravidou de minha avó e a vida como palco para a apresentação do horror
havia injetado em seu corpo todas as chagas, lepras e espinhos do estar no
mundo.
Curioso
ou não, a história perpetua-se. E, sob o pôr do sol de cada dia, nunca nasceu a
esperança de que em algum momento as coisas seriam diferentes.
Oramos
para a maligna joia sair enfim de nossas mãos e nos deixar livres de toda
condenação, pois sei como minha bisa e minha vó souberam que a alcateia não nos
exime da mordida dolorosa, fria e lenta, em que só a morte tem o poder de
colocar um ponto final.
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