A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

AINDA HÁ TEMPO PARA AMAR - CONTO COLETIVO 2011

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

BIBLIOTECA - LIVROS EM PDF

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Depois vem a calmaria… - Hirtis Lazarin

 





Depois vem a calmaria…           

Hirtis Lazarin                         

 

São Pedro da Aldeia é o mais simpático vilarejo que já conheci. Algumas ruas e uma pracinha. Ali, ao amanhecer, passarinhos chegam em bando numa cantoria que harmoniza sons cristalinos e estridentes. Pra que relógio se todos já sabem que é chegada a hora do dia começar?

A rua principal sombreada por ipês amarelos vai até onde começa o mar. O quintal imenso da última casa beija a areia umedecida pelas ondas que, em ritmo do vai-e-vem, carrega consigo as mangas maduras e bicadas espalhadas pelo chão. E da varanda, pode-se ver o horizonte alaranjado deitar-se no chão. O dia termina exalando cheiro de ouro derretido, enquanto as luzes dos postes de madeira clareiam a noite que chega. Devagarinho aparece a lua misteriosa com seus feitiços.

É também a hora em que os gatos procuram uma parceira e se arrastam pelos telhados com gritos de uma agonia feliz. Os grilos, moradores eternos do jardim, se levantam do chão molhado, espalhando o perfume de terra.

E a capelinha “São Pedro da Aldeia”? Pintura sempre renovada na cor do céu azul. Simples e singela, reflete a humildade e a fé dos moradores. Foi construída com pedras retiradas das águas e com madeira aproveitada de embarcações antigas. O ladrilho desenhado com peixinhos coloridos encanta as crianças.

Uma pequena sala guarda réplicas de barcos e redes, velas e imagens de santos em agradecimento aos milagres alcançados. Espaço que demonstra a esperança nas orações e a fé em Deus e na natureza. 

Mas a vida dos moradores não é tão poética quanto a natureza nos leva a crer. São homens pescadores que, diariamente, entregam o destino às incertezas do mar, ora calmo, ora com força implacável.

Alfredo fala com orgulho de nascer numa família de pescadores. Aprendeu com o pai que aprendeu com o avô. Recorda todos os sacrifícios e apuros que já enfrentou. Até teve oportunidade de mudar, mas não se via fazendo outra coisa.”Eu sempre pesquei, não tem jeito.”

Os barcos carregando redes, cordas, remos e outros acessórios são vistos ancorados na água, próximos da areia. Impregnados com o cheiro salgado do mar, do peixe e das algas, balançam suavemente com o movimento da maré. E a tinta sempre fresca escreve, no casco, em letras graúdas, o nome que cada pescador escolheu pra sua embarcação.

Já faz mais de um ano. Era madrugada de um dia de intenso calor. Repentinamente, os galhos das árvores se agitam. Portas e janelas batem desesperadas. As roupas do varal se desprendem e nunca mais são encontradas. O vento uivante empurra tudo com força incontrolável. É assustador, um assobio agudo nunca ouvido antes. Uma sequência de trovões. Um raio destrói ipês da rua principal.

O mar torna-se uma massa de água revolta e instável. Ondas gigantescas se erguem, chocam-se com violência e quebram-se em cristais espumantes. O nível da água sobe.

Os barcos, como folhas ao vento, são sacudidos violentamente e virados de um lado para outro, pra cima e pra baixo. Os acessórios embarcam nas ondas e desaparecem.

A chuva impiedosa cai. 

Os moradores se trancam em casa. Nada se pode fazer a não ser esperar e ver o que sobrou lá fora. Outros temporais já aconteceram, não dessa magnitude. As crianças choram e se escondem debaixo da mesa. As mães tentam acalmá-las com chá de camomila e outras ervas disponíveis. Nada se podia fazer. Era esperar a tempestade ir embora ver o que sobrou lá fora. Outros temporais já aconteceram, não dessa magnitude.

Os mais fervorosos acendem velas aos santos, outros agarram o terço e, ajoelhados, imploram uma graça a Nossa Senhora. São Pedro, com as chaves do céu, é louvado em voz alta. A fé e as orações transformam o pesadelo em esperança, esperança de que tudo vai ficar bem.

Já amanhecia quando o vento perdeu sua força e a chuva ficou miudinha. Os                  moradores, aos pouquinhos, foram deixando suas casas. 

O vilarejo estava rebuliçado. Áreas alagadas, árvores caídas na rua, calçadas esburacadas, algumas casas destelhadas. “Ninguém ferido, graças a Deus” — gritou o padre Leôncio, convidando a todos para uma oração.

Conferir o estrago e calcular o prejuízo ficava pra depois.


 

UMA NOVA TERRA, UMA NOVA VIDA! - Dinah Ribeiro de Amorim

 



UMA NOVA TERRA, UMA NOVA VIDA!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Fui passear de manhã na praia. Um lindo dia de sol! Vários navios aportados descansam e se balançam, levemente, em ondas suaves.

Enquanto os observo, percebo que um deles acabou de chegar. Ainda despacha bagagens e vários tripulantes descem. Estrangeiros, imigrantes, na sua maioria.

Um casal um pouco diferente chama a minha atenção. Pele morena, vestimentas compridas, a mulher de cabeça coberta, devem ser remanescentes de guerras, penso logo. Árabes, com certeza, iranianos ou persas.

Lembro logo os resultados finais dos últimos noticiários.

Brasil, meu país, com tantos problemas, tantas preocupações, mas de coração grande, solidário, aberto a receber qualquer nacionalidade.

Quantas raças diferentes temos! Muita gente estrangeira fez parte da nossa civilização. E contribuíram muito para a nossa formação.

O casal continua desembarcando, descendo vagarosamente, medrosamente, as escadas do navio ancorado.

Percebo, na mulher, uma calma, uma paciência solidária, o conformismo e a sabedoria feminina que resplandece no rosto envelhecido.

O homem, seu companheiro, marido talvez, desce rápido, empurrando-a levemente, aflito, com sinais de um nervosismo evidente.

Procuram os dois, com olhares curiosos, alguém ou algum sinal de conterrâneos, à espera.

Ainda os observo e vou me afastando, sabendo que isso, esse transporte de pessoas de longe, não é mais novidade para nós. Simplesmente desejo que se adaptem e melhorem as condições de suas vidas.

Lembro-me, saudosa, dos meus familiares, tios queridos do lado materno, e das tias com quem se casaram, na maioria de famílias árabes, há muito tempo estabelecidas no Brasil.

Mamãe teve muitos irmãos e irmãs, família numerosa mesmo, descendente longínqua dos primeiros portugueses. Seus irmãos, meus tios, casaram-se com mulheres árabes, tias queridas, amigas, as minhas prediletas, de grande influência na minha infância e adolescência.

Atualmente, todos falecidos, guardo gostosas recordações.

Saudades da delicadeza, educação, fidelidade e amor ao marido e à nova família que receberam.

Gostavam também muito de mim. Não sei bem o porquê, talvez a neta mais velha, talvez, dos meus avós. Respeitavam muito a família.

Hoje, dia de finados, dia dois de novembro, o único do ano para recordar os familiares que já se foram, por coincidência, estou lembrando e pensando nas tias. Saudosa de todas elas. Nossas conversas, aprendizagens de comidas, passeios feitos, amava os comentários e preocupações comigo.

Família faz falta, sentimos isso quando diminuem, vamos envelhecendo e também a perdendo, em grande parte. Resta-nos uma boa lembrança.

Quem sabe ainda nos encontramos? Costumo sonhar às vezes com elas. Um novo nascimento na família é muito comum, eu sei. Afinidades que tiveram comigo, eu acho.

Saudades dos meus falecidos, hoje, ou a chegada dos novos moradores ao Brasil, sei lá! Mamãe, papai e meu pequeno irmão, quase um primeiro filho, sinto todos os dias!

Espalho retratos de comemorações pela casa toda. Era bom quando batíamos fotos e mandávamos revelar os filmes. Fotos pelo celular são práticas, mas ficam guardadas nos documentos, não mais se revelam, como antigamente.

Ah! Idade! Já estou preferindo o passado!

Uma noite mágica no Allianz Park - Alberto Landi

 



Uma noite mágica no Allianz Park

Alberto Landi

 

A cidade parecia respirar com o estádio. As luzes verdes tremulavam no céu de São Paulo como auroras tropicais. No estádio, cada coração batia no mesmo compasso, o da esperança.

O placar era cruel: três a zero contra. O passado recente pesava nos ombros da equipe e nas gargantas engasgadas da torcida.

Parecia impossível. Mas é justamente no impossível que o futebol encontra sua poesia.

Alan, o primeiro herói da noite, carregava no olhar o fogo de quem recusa o destino.

Quando a bola beijou a rede pela primeira vez, o grito do estádio não foi apenas de gol, mas de renascimento.

Veiga veio depois, herói dos 25 minutos jogados, sereno como quem sabe a dimensão da própria fé. Cada toque seu parecia conversar com o tempo. E, quando marcou, o Allianz explodiu: as arquibancadas se transformaram em ondas, os cânticos em tempestade.

De repente, o impossível já não morava mais ali. O placar agora igualado parecia pedir mais um sopro, mais um milagre.

E veio. No último lance, o grito contido atravessou o campo, ruas e a cidade, libertando o que há de mais humano no futebol: a emoção de acreditar até o fim.

Naquela noite, não foi apenas um estádio, foi altar, palco e coração pulsante de uma fé verde que se recusou a morrer.

Há noites que não se explicam, apenas se vivem e se lembram para sempre.

Quando o apito final ecoou, não era apenas o jogo que terminava, era uma história que ficava gravada na alma.

Noventa minutos no Allianz foi muito!

 


Princesa Isabel - Alberto Landi

 




Princesa Isabel

Alberto Landi

 

O Palácio de São Cristóvão estava estranhamente silencioso naquela manhã de novembro, num silêncio pesado que contrastava com o burburinho febril vindo das ruas do Rio de Janeiro.

A princesa, com seus olhos azuis geralmente firmes, observava a névoa cinzenta que cobria o jardim.

Ela não precisava de jornais para saber o que estava acontecendo, o ar estava carregado de traição.

Ela não era uma rainha, mas carregava o peso de uma coroa que nunca usaria plenamente. Seu legado, a abolição, o ato de libertação que selou o destino da Monarquia, agora era a bandeira usada contra o seu próprio trono.

Seu marido, o Conde d’Eu, entrou na sala, o rosto pálido, dizendo:

— Isabel, o Imperador assinou. Não haverá resistência, eles estão nos forçando ao exílio.

Isabel assentiu lentamente, sem surpresa, apenas com uma tristeza profunda.

Caminhou até a janela e lá fora o rumor da multidão mudava de tom: do protesto para a celebração ruidosa.

A República havia chegado, não como um grito de união, mas com um sussurro de conspiração militar.

Eles não entenderam, Gastón, ela disse com a voz baixa, mas clara. Eles pensaram que o trono era a coroa, o cetro, mas o trono era a responsabilidade, era assinar a lei Áurea, sabendo que isso custaria tudo, era olhar para o futuro mesmo que ele nos rejeitasse. 

— Nós não caímos por fraqueza, mas por sermos excessivamente rígidos em nossos princípios. A nação que libertamos não soube nos proteger.

Ao embarcar no navio que os levaria para longe, sob o olhar frio de canhões republicanos, Isabel não chorou. Olhou para a costa brasileira que se afastava. O golpe havia sido rápido, cirúrgico, mas sabia que a verdadeira marca de seu reinado não estaria nos decretos derrubados, mas na liberdade conquistada.

Enquanto o navio ganhava o mar aberto, ela apertava um relicário, buscando conforto e proteção no objeto. Era a herdeira que nunca reinou. Nele residia a figura de uma era imperial que se recusava a morrer nos corações dos fiéis, um símbolo de poder deposto, mas de honra e dever ainda vivos.

O exílio era a prova final de sua renúncia, não a dignidade.

A República tinha o poder, mas Isabel levava a memória do que foi justo.

 

PROBLEMAS ACONTECEM! - Dinah Ribeiro de Amorim

PROBLEMAS ACONTECEM! Dinah Ribeiro de Amorim Acordo de madrugada com batidas fortes na porta. A campainha, acionada, muitas vezes, dev...