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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

VIDA DE CACHORRO - Leon Vagliengo

 





VIDA DE CACHORRO

PASSEANDO NA HORA DO APERTO

Leon Vagliengo

 

Augusto não poderia queixar-se da sorte. Morava bem, em um belo apartamento em São Paulo, no bairro de Moema. Sempre bem alimentado, ração de primeira.

Só não se conformava muito com o nome estranho que lhe haviam atribuído. Nada a ver com os praticados para a sua espécie, como o conhecido Duque, o cinematográfico Banzé, ou mesmo o arcaico Totó. Mas, enfim.... Atendia mesmo pelo estranho nome de Augusto.

Todos os dias alguém o levava a passeio pelas calçadas do bairro, graças a suas conhecidas e temidas necessidades fisiológicas, que deixavam os seus donos apavorados, pois tinham medo de seus efeitos deletérios para o imaculado apartamento.

Esse medo dos donos não lhe escapara à percepção, e duas vezes diariamente, à mesma hora do dia e da noite, ele olhava para alguém, de preferência para Isabel, a dona da casa, e chorava com cara de sincero sofrimento, revelando a sua angustiante condição de apertado. Logo, Isabel, ou alguém a quem ela ordenasse, providenciava a coleira e a guia para levá-lo ao passeio.

 Ele não gostava da guia, mas se conformava reconhecendo o cuidado que tinham para que não se perdesse.

Naquela manhã estava especialmente apertado. Ao sair disparou em direção ao primeiro poste, quase derrubando a Ritinha, a empregada da casa, que recebera a incumbência de levá-lo.

 Ao vê-lo tão desesperado correndo em sua direção, o poste logo reclamou:

Tem que ser aqui? O caminhão da Prefeitura acabou de passar lavando a rua e eu estou limpinho, sem mau cheiro. Vai mais adiante, me poupe hoje.

Augusto nem teve tempo de responder. Aliviou-se ali mesmo, sem considerar a argumentação do amigo poste. Depois da operação, que certamente seria a primeira de uma série durante a caminhada, então grunhiu em resposta para ele:

Desculpe, amigo! Hoje não deu, mas agradeço muito pelo seu apoio.

Disse isso e seguiu a caminhada, sempre cheirando aqui e ali, aparentemente tentando descobrir algo que, para os que o levavam pela guia, era sempre um grande mistério, fazendo com que pensassem:

O que será que o Augusto cheira com tanta concentração nesses momentos?

Em verdade, ninguém nunca saberia. Ele não revelaria, guardando essas observações e descobertas reservada e exclusivamente para si.

Continuando o passeio, eis que, de repente, ocorreu nova e forte emissão daquele líquido, desta vez sobre um pobre arbusto que teve a infelicidade de encontrar-se no caminho, e que protestou:

Você não tem educação, não? Porque não vai num poste?

Desculpe, foi natural e espontâneo, não deu para segurar – grunhiu Augusto em resposta.

E assim seguiram o passeio, até que Augusto parou, com as orelhas em pé, admirando a linda cachorrinha, toda negra, de sua mesma raça, que se aproximava com evidentes sinais de interesse, a julgar pelo balançar de seu apêndice traseiro.

Que gatinha!  Logo exclamou Augusto, sem nem perceber que o repentino entusiasmo e os hábitos coloquiais o levaram a confundir as espécies.

Porém, ao tentar fazer a tradicional conferência canina dos atributos da recém-chegada que nele provocara tanta admiração, recebeu forte puxão pela guia e foi arrastado para longe de sua candidata a musa. Virou a cabeça para trás, querendo voltar, mas sendo impedido pela Ritinha.

Quero vê-la novamente, latiu para a cachorrinha, que também se mostrava desapontada.

É quase sempre assim! Certos humanos não respeitam os nossos sentimentos – pensou.

Ante a falta de alternativa, Augusto conformou-se com a esperança de voltar a encontrar a sua musa durante o passeio da noite, guiado pelo Rafael, seu dono, que nesses momentos costumava ser muito mais compreensivo.

E voltou com Ritinha para casa, mas não sem antes vitimar mais algumas plantinhas.

Caneta-tinteiro Parker 51 - Marlene Laudares

 



Caneta-tinteiro Parker 51   

Marlene Laudares



A caneta Parker 51, Lena ganhou na sua festa de formatura nos anos 60 “Anos Dourados” assim a juventude chamava esta década!

 

A caneta tinha sido presente de um ex namorado, que na ocasião aproveitou para reatar o namoro! Quantas cartas, poesias, contos e também planos de aula a professora Lena havia escrito! Imagine que essa professora teve o namoro reatado na formatura e não durou mais que um semestre!

 

Essa professorinha, apaixonada, seguiu lecionando noutra cidade e junto sempre com a sua caneta dourada ela relembrava o amor acabado! Mas o destino a levou para outra cidade em férias e lá outro amor aconteceu. A caneta sempre continuou escrevendo cartas românticas cheias de saudade! Mas com pouco tempo, Lena apaixonada, noivou e se casou! Foi morar noutra cidade! Lá continuou sua profissão! A professorinha  continuou sua missão e a caneta era sua companheira em casa não parou. Escrevia seus planos de aula, cartas a família, versos, poesias e provas!

 

Sua caneta era companheira de dias tristes com saudades, hora de sonetos lindos, versos diversos para acalentar seu coração! Coração cheio de saudade! Mas até onde um dia, escrevendo estava, quando seu marido numa cena de ciúmes a importunou de tal forma que ela num momento inesperado e sem pensar na raiva do acontecido jogou pela janela do seu quarto. Lá se foi sua caneta amada! Em pedaços ela recolheu e guardou no seu passado o sonho dos tempos dourados!

SOLIDARIEDADE! - Dinah Ribeiro de Amorim

 



SOLIDARIEDADE!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Sou solidária ao branco, negro, vermelho ou amarelo, quando o ser humano é atingido por balas perdidas, em brigas de rua ou guerrilhas.

Sou solidária ao negro, branco, vermelho ou amarelo, quando o ser humano sofre de doenças e epidemias, na porta dos hospitais e pronto socorros, e,  morrem, por falta de atendimento ou de vaga.

Sou solidária ao vermelho, branco, negro ou amarelo, quando o ser humano é atacado injustamente, pisoteado, e perde a vida, sem explicação por parte de quem os atinge.

Sou solidária ao amarelo, branco, negro ou vermelho, quando o ser humano vive de migalhas, deitado na rua, e sofre por falta de emprego, teto, chão e pão.

Sou solidária à mulher branca, negra, vermelha ou amarela, quando sofre preconceitos, humilhada, desonrada, maltratada, em sociedades injustas e despreparadas.

Sou solidária à criança negra, vermelha, amarela ou branca, quando é roubada da infância, deixa o brinquedo de lado e aprende a lidar com armas para defesa  própria ou dos seus.

Sou solidária ao ser humano idoso, de todas as raças, de qualquer nacionalidade, quando é jogado em asilos, fraco, doente, solitário e triste. Abandonado  pelos seus.

Sou solidária ao ser humano, quando é chamado de louco, internado em hospícios, sofrendo acusações absurdas, que resultam da loucura social em que vivemos. 

Sou solidária ao ser humano que tenta fazer o bem e é impedido por aqueles que acham que não convém, que pode prejudicar alguém.

Enfim, são tantos os motivos, fatos novos que acontecem, nossa alma sofre, descolore, congela e some...

Sou solidária.

O COMPUTADOR VINGATIVO E TEIMOSO - Leon Vagliengo

 


O COMPUTADOR VINGATIVO E TEIMOSO

Leon Vagliengo

 

- Quem  ele pensa que é?  - falou para si mesmo o computador do Leon.

- Me deixa ligado durante a noite toda, nem posso descansar. E depois quer que eu funcione como quer e quando bem entende. POIS NÃO VOU FUNCIONAR!

A aula começou às 15 horas, e nada de entrar o Google Chrome. Leon sem saber o que fazer, enquanto o computador vibrava:

- Ele já me reiniciou duas vezes, me fiz de morto. Só porque é meu dono, pensa que pode tudo?  POIS SIM! Vou lhe dar uma canseira.

Trinta minutos se passaram desde que se iniciara a aula, e nada. Pobre aluno! E o computador comemorava:

- Veja só o desespero dele. Está perdendo a aula, bem feito. Agora me desligou e teve que esperar, porque eu demoro mesmo até para desligar. Vai ligar novamente, com certeza. O cara é insistente. Azar dele, eu também demoro a religar. E não vou funcionar naqueles programas que ele quer.

Meia hora de aula perdida, novo desligamento e religamento. Mas agora o computador pressentiu o perigo:

- Pensando bem, esse cara, nervoso, é um perigo. Estamos no décimo sexto andar, e eu não estou longe da janela. Acho que já foi o suficiente, me vinguei. Mas, quem sabe? Talvez eu repita a dose na próxima quinta feira.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A MACIEIRA e A MENINA - Alberto Landi

 




A MACIEIRA e A MENINA

Alberto Landi

 

Havia uma macieira num bosque, que amava muito uma menina.

Diariamente Maria Clara, a visitava, juntava suas folhas e com elas fazia ornamentos, imaginando ser a rainha daquele bosque.

Subia no seu tronco, balançava-se nos seus ramos, comia as suas deliciosas maçãs. Brincava com outras crianças e quando ficava cansada, dormia à sua sombra.

A menina adorava aquela macieira, como ninguém. E a árvore era muito feliz. O tempo foi passando, Maria Clara cresceu. E a árvore foi ficando solitária, sem as visitas frequentes dela.

Um certo dia, a menina veio visitá-la.  

— Minha menina, quantas saudades! Vamos, suba em meu tronco, balance nos meus fortes ramos, coma quantas maçãs queira, brinque na minha sombra como você sempre fez.

— Agora já sou crescida, disse Maria Clara, para brincar.  Quero comprar coisas e me divertir.  Você poderia me dar algum dinheiro?

— Minha Linda menina, disse a árvore, não tenho nenhum tostão, somente folhas e maçãs. Leve-as para casa, e venda no mercado ou em algum centro comercial, e assim, obterá dinheiro e ficará feliz.

E assim Maria Clara procedeu. Subiu no tronco, colheu todas as maçãs possíveis, colocou-as num cesto e as levou consigo. A árvore balançou seus ramos num sinal de felicidade.

A menina sumiu por um bom tempo, e a árvore ficou triste, novamente.

Decorridos alguns anos, a menina apareceu no bosque, para visitar a sua amiga.

— Suba No meu tronco, balança nos meus ramos disse-lhe a macieira, colha todas as maçãs que quiser.

— Estou ocupada agora, respondeu Maria Clara. Eu quero uma casa para viver, um marido e filhos. Você pode me dar uma casa?

— Eu Não tenho casa, disse a árvore. O bosque é meu abrigo, mas corta os meus ramos e construa sua casa, assim ficará feliz.

E assim foi feito, e a árvore ficou mais uma vez mais feliz.

Passado já algum tempo, ela voltou.

— Desculpe-me, disse a árvore, nada mais tenho que eu possa te oferecer. As maçãs já se foram.

Maria Clara disse para a macieira:

— Não se preocupe, os meus dentes já estão fracos demais para degustar as suas deliciosas maçãs.

— Também já não tenho ramos, lamentou a árvore.

— Eu não tenho mais idade para me balançar em seus lindos ramos, respondeu Maria Clara.

— Não tenho tronco forte e espesso para você subir, informou a árvore.

— Eu ando muito cansada de uns tempos para cá, disse Maria Clara.

A árvore suspirou e retrucou:

— Agora sou apenas um velho toco, não sirvo para mais nada.

Maria Clara retrucou:

 — Já não preciso de muita coisa, apenas um lugar sossegado para descansar. Um velho toco ainda é bom para sentar-se e descansar.

— Ah, então, anda, minha menina, senta aqui para descansar junto a mim.

E assim, a árvore e a menina, pela última uma vez, ficaram felizes!  

 

  

 

QUARTO DE RAPAZ - Suzana da Cunha Lima

 




QUARTO DE RAPAZ

Suzana da Cunha Lima

 

Era mesmo quarto de rapaz solteiro.  A mãe já cansara de arrumar e pedir para ele dar uma ordem naquele caos, mas nada adiantava. “Estou estudando, mãe! ”

Havia toalha de banho úmida debaixo da cama, saquinhos com restos de batatinhas chips, refrigerante morno, tênis e meias jogados no chão, roupas espalhadas pelos quatro cantos e a bela escrivaninha estilosa, que fora do avô, abarrotada de coisas: livros, cadernos, lápis e canetas de todos os tipos, folhas em branco e rabiscadas e o computador quase engolido por anotações e bilhetinhos.

 Ah, e o rapaz... sempre com o celular agarrado na mão, parecia não se importar com aquela confusão generalizada, onde praticamente encontrava tudo.  Num dado momento, no entanto, parece que se cansou, se esticou todo e disse para si mesmo: Vou tomar um banho! E sumiu para o banheiro.

Nesse momento a caneta não se aguentou e criticou duramente o caderno aberto, cheio de riscos e anotações:

- Vê se dá uma ordem nisso.  Eu capricho na letra e você vive rabiscando tudo. Parece até que não gosta do que escreve.

- E o que posso fazer? É o jeito dele estudar, oras!

- Ainda bem que já estou todo escrito – replicou o livro – ele só realça o que interessa e isso porque sou dele mesmo.  Aquele outro livro, que ele pegou na biblioteca, não pode riscar, rasurar, realçar, nadinha, senão tem que pagar outro e não é nada barato.

- Vocês viram que desenho bonito ele fez aqui? Parece um sistema de vias, ruas e viadutos. – comentou a página do caderno de desenho.

- Você é burra mesmo, folha branca. É o sistema cardiológico, não está vendo o coração e as coronárias? Irritou-se o livro da Biblioteca, altivo em sua lombada dourada.

-   O que eu sinto é que já estou esgotado, entupido de fatos, números e fotos, nem sei mais o quê - suspirou o computador -   o menino pensa que sou saco sem fundo. E para que tudo isso?

Nisso o estudante retorna, nu em pelo, cabelos pingando e o celular na mão. Sorriso de orelha a orelha:

- Mãe, mãe, adivinha só!  PASSEI NO VESTIBULAR DE MEDICINA E NA FEDERAL!

 

COROA SEM REI - Ana Catarina Sant’Anna Maués

 




Coroa sem rei

Ana Catarina Sant’Anna Maués

 

   Como num castelo de vidros grossos, à prova de bala, lá estava ela a rodopiar como a bailar nos velhos salões de candelabros a luz de velas, de um tempo distante. Porém, agora somente admirada por olhos curiosos, que faiscavam a cada cintilar dos gordos rubis que faziam par com reluzentes esmeraldas em contraste com, não menos valiosos, desbotados topázios.

Sem dar atenção aos que a cobiçavam ela lembrava, bons tempos aqueles, dizia para si mesma, e ao encontrar a memória saiam de mãos dadas a passear pelos labirintos das lembranças. Perdi a conta de quantos anos tenho. Já fui usada em bailes e bodas, guerras e acordos de paz. Reis poderosos, me ostentaram com grandeza, eu sozinha enaltecia o monarca, pois a imponência de minha altivez era suficiente para o glamour. Quando o soberano, ao recolher-se no sono de uma noite, me deixava ao lado, descia à simplicidade de sua natureza, era como um homem singular, tão igual quanto um mero camponês, mas ao raiar do novo dia, ao colocar-me, paramentado com manto, era a glória como se Deus fosse.

   Hoje aqui, neste museu, sirvo para exibir a nobreza de tempos outrora, imponente ainda sou, mas do que serve uma coroa sem rei?   

AS ARANHAS - Claudionor Dias da Costa

 




AS ARANHAS

Claudionor Dias da Costa

 

                     Aquele final de semana prolongado com o feriado de segunda feira não poderia ter sido mais marcante nas nossas vidas, e ficou nos comentários da família por bons anos.

                      Tudo começou com o carro velho do tio João, que provavelmente não tenha nunca transportado tanta gente e bagagem, talvez por isso andava tão devagar. Ele havia se preocupado em organizar a viagem, com cuidados extras limpando e polindo aquela Kombi de um verde enigmático que eu não me aventuro a definir ou classificar cor tão estranha.

                      Lá fomos nós, eu, meu irmão, papai, mamãe, tio João e sua tropa. Nove aventureiros a caminho do interior de São Paulo, no sítio dele, dispostos a aproveitar momentos gostosos junto à natureza naquele recanto pela primeira vez. Ele havia comprado a propriedade há pouco e seria a nossa estreia.

                     Após umas três horas de estrada, passamos pela pequena cidade e uns cinco quilômetros por terra depois, estávamos abrindo a velha porteira. Paramos em frente à casa, feita em madeira, tendo somente uma base de apoio em pedra para sustentação. Era um sobrado alto, com a parte superior parecendo um sótão em toda a extensão com um teto baixo, com uma pequena janela e sem separação nenhuma em cima. Era um salão grande, com o caimento do telhado nas laterais.

                     Mal descarregamos as malas partimos ansiosos para conhecer   tudo aquilo.

                     Eu tinha quatorze anos, meu irmão doze e nossos primos estavam próximos desta idade.

                    Eram três alqueires de terra, para nós, parecia imenso. Corremos pelo gramado, fomos ao cercado ao fundo onde os três cavalos nos olhavam curiosos, fomos conhecer a fonte de água que brotava entre pedras e com as samambaias pendentes que tornavam o cenário misterioso. Não acreditávamos que aquela água límpida viesse daquele buraco.

                    Não demorou muito mamãe nos chamou, pois estávamos com fome e o almoço improvisado e preparado rápido não poderia esfriar. Foi um espaguete saboroso temperado pelas histórias do sítio que tio João passou a narrar. Falou como foi a compra, o entusiasmo que ficou e por aí foi. Já havíamos nos regalado com a sobremesa de queijo com goiabada, quanto surgiu à porta o “Seo Expedito”.

                   Era um vizinho, morador próximo que seria também o cuidador do sítio do tio João. Mulato simpático, com dentes ligeiramente para a frente que aumentavam mais ainda seu sorriso amistoso. Foi convidado a se sentar à mesa com todos, para tomar o café cheiroso da tia Emília. Não se fez de rogado. Desandou a contar “causos”.

                   A conversa foi longe. Certo momento, Seo Expedito chamou a atenção com olhos esbugalhados, pedindo:

      - Pessoal, vocês devem tomar cuidado com os escorpiões e aranhas. Tem aparecido muito por essas bandas. Mesmo essa casa, antes do Seo João comprar aparecia demais...E dentro de casa. O antigo proprietário achava até dentro das botas de manhã, antes de “ponhá” nos pés. Mas, sítio é “anssim” mesmo. ‘”Nóis” convive com essas coisas...   

         Virei para meu irmão e primos. Notei neles olhares inquietos  e  lábios cerrados. Eu pelo que senti, deveria estar igual. Tia Emília cuidadosa disfarçou, mudou de assunto e nos empurrou para fora:

         - Vão brincar, mas, não se machuquem.

         Contudo, quando saímos pouco brincamos e ficamos comentando tudo que o Seo Expedito falou. E assim a tarde foi embora com aranhas que tomavam todos os nossos pensamentos.

         À noite, após o jantar, entre lavar louça, arrumações e acertos nas camas o pessoal passou a prestar atenção na tia que falou:

        - Os casais ficam nos quartos, os três menores nos sofás da sala e determinou que eu e o primo Pedrinho por sermos maiores dormiríamos no sótão.  Pedrinho resmungou mencionando as aranhas e fuzilado pelo olhar carrancudo da tia resolveu ir. Eu não abri a boca. Fiquei paralisado, pensando como seria lá em cima. Teria aranhas?

          Pedrinho olhou para mim, me empurrou para ir na frente. Subimos a escada de madeira que rangia a cada pisada.

          O salão era imenso, com luz fraca amarelada e duas camas tendo a janela no meio, bem na cumeeira do telhado.

          Nos deitamos e ficamos olhando o teto com as ripas irregulares e vãos entre elas.         Virei para Pedrinho e levantei a dúvida de se neles não poderiam ter aranhas. E pela extensão do salão, poderiam ser muitas.

          Meu primo respirava forte, denotando o que sentia, não respondeu nada e cobriu a cabeça com as cobertas. Eu fiquei preocupado e com estranha sensação, que aumentou quando escutei tio João dizendo “Boa noite”no sopé da escada e apagando a luz.

          Só restava a luz da lua que entrava pela janela dando um ar sombreado pelo salão.

Virei para os lados várias vezes, mas, conclui que era melhor ficar de frente, mesmo que tentando fechar os olhos e não ficar atento ao teto e suas imperfeições.

E assim a noite foi passando...

Num momento esquisito entre a chegada do sono e a tentativa de manter-me acordado, senti um contato no meu pescoço raspando de leve. Logo me veio à mente uma aranha horrorosa pronta para me atacar caminhando sobre a minha pele. Dei um berro: ARANHA !!! Desesperado saltei da cama. Pedrinho acordou apavorado

- O que foi? O que foi?

-Uma aranha está na minha cama! Gritei.  

Tio João subiu correndo com farolete à mão e procurou nos acalmar enquanto eu explicava a horrível sensação da aranha no meu pescoço.

Começou a inspecionar tudo em detalhes para achar a tal da aranha que nos apavorou, enquanto a tia Emilia prestativa já estava com copos de água com açúcar para nós.

Enquanto respirávamos fundo, tio João muito sagaz, segurando a manta que me cobria,  sorrindo disse:

-   Vejam aqui, a terrível aranha que você sentiu nada mais era do que estes fiapos da própria manta roçando no seu pescoço.

   Tia Emília desatou a rir. Eu e Pedrinho fizemos cara de sonsos balançando a cabeça para o tio João querendo aceitar a explicação. Depois desse susto, aceitamos a acomodação no andar debaixo, apertados e ainda duvidando se não seria mesmo a aranha.

 Os outros dias do final de semana já foram mais calmos.

Ficou a história da terrível aranha na família e as brincadeiras que aguentamos até hoje.

Às vezes,  intrigado, me vem o pensamento de se realmente os fiapos da manta foram os culpados.

A DONA DE CASA E A VASSOURA - Ana Catarina Sant’Anna Maués

 




A dona de casa e a vassoura

Ana Catarina Sant’Anna Maués

 

   Certa vez notei um diálogo bem interessante entre uma dona de casa e sua vassoura. A mulher reclamava da rebeldia da ajudante, que após a total limpeza, no capricho, deixando a casa sem fio ou fiapo de coisa alguma no piso, recusava-se a ficar de pé, em prontidão para o próximo dia. Já contavam três vezes que a tinha recolhido do chão.

— Oh! Vassoura teimosa, dizia a velha senhora. Fica aí de pé, atrás da porta, por favor. O que quere caindo assim no chão? Está bagunçando minha cozinha!

   E de novo juntava e apoiava a companheira de labuta, que novamente se fazia cair no chão, como que a deleitar-se no assoalho brilhante, com cheiro bom. E a dona da casa, já ficando brava disse:

 — Vamos, vamos, fique quieta e me deixe logo ir deitar-me um pouquinho a esticar as pernas.

   Então a vassoura respondeu:

— Ora ora, pois sim, hum! Eu trabalhei até mais que você, pois entrei de baixo dos móveis, futuquei os cantinhos das paredes, corri no rodapé, vasculhei o teto, matei uma barata e duas aranhas, quase que me afogo no balde d’água com aquele pano a sufocar-me. Eu também tenho o direito de esticar minhas cerdas.

SEM PERDÃO - Suzana da Cunha Lima

 




SEM PERDÃO

Suzana da Cunha Lima 

 

- Bom, para mim já deu! 

Ele levantou-se da mesa arquejante, tentando manter a raiva sob controle. Mas ao olhar o rosto neutro da mulher, quase cínico, a ira tomou conta de si, rompendo as comportas da educação e bom senso.

- Você é uma hipócrita, rancorosa e desalmada.  Toda hora está jogando na minha cara o caso que tive com Elaine há séculos, no mínimo cinco anos... Como é que pode?  Já me desculpei de todas as maneiras, o que é que quer que eu faça mais?  Aconteceu, pronto.  É tocar a vida para a frente.

Ela continuava a olhar para ele como se nada estivesse acontecendo, mas o seu coração fervia pelos anos de desprezo e negligência e pela constatação, que agora fazia, de que jamais o perdoaria. Não podia, o amara demais. Não, não fora só a Elaine, ela sabia, eram casos conhecidos de todos, que a humilhavam e a rebaixavam de maneira insuportável. Sem falar de agressões físicas insuportáveis.

Não meu amigo, não haveria volta nem tocar para a frente, era o fim mesmo.

Levantou-se devagar, deixando seu desprezo escapar aos poucos nos gestos lentos. Pegou a jarra de cristal que enfeitava o aparador.  Presente dos pais dele, coisa fina.   

Bateu na cabeça dele com todo o ódio acumulado naqueles anos de agonia.

E ele caiu no chão, bebendo seu próprio sangue, olhos abertos de espanto e dor.

QUEM SOU EU ? - Adelaide Dittmers

 




Quem sou eu?
Um átimo no tempo
O viajante que passa...

Quem sou eu?
Uma célula, um átomo
Um próton um elétron...

Quem sou eu?
A terra semeada,
A semente fecunda...

Quem sou eu?
O elo da corrente,
A vida que passa por ela...

Quem sou eu?
A pedra no caminho,
O remo, que impulsiona...

Quem sou eu?
A razão, que analisa,
A emoção esparramada...

Quem sou eu?
A dúvida, a certeza,
A pergunta, a resposta...

Quem sou eu?
A mentira, a verdade,
A ilusão, a realidade...

Quem sou eu?
O desejo de saber,
O medo de descobrir...

Quem sou eu?
O verme, que consome,
A abelha, que poliniza...

Quem sou eu?
O pó da estrada,
A água do rio...

Quem sou eu?
Um acaso cósmico,
Um propósito divino...

Quem sou eu?
O nada, o tudo,
O relativo, o absoluto...

Quem afinal sou eu?

O BURRO FALANTE - Henrique Schnaider

 


O BURRO FALANTE

Henrique Schnaider


Geninho era um burro que nasceu burro e como todo burro que se preza era teimoso.  Quando nasceu, o seu Chico não viu nada demais naquele burrinho que pinoteava e zurrava solto no campo feliz e contente.

Com o passar dos dias seu Chico começou a ouvir uma voz tagarelando, mas não atinava de quem era. Pensou até num fantasma que estivesse perseguindo-o. Até que um dia para seu assombro ouviu o burro Geninho resmungando.

— Seu Chico eu falo, falo, e falo, bla, bla, bla, e o senhor não me responde, sou eu, Geninho. Por acaso o senhor tem alguma coisa contra um burro que fala ? Disse rindo,  quichiii.

Seu Chico arrepiou-se inteiro como era possível o burro Geninho falar, piscou os olhos, limpou os ouvidos e Geninho se arrebentando de rir quichiiiii. Seu Chico olhou para o burro e disse:

 — Oh, burro besta metido a falar, e além de tudo, com essa risada escrachada.

O caipira custou a acreditar que podia conversar com Geninho e logo pensou, vão pensar que enlouqueci. A única coisa que o Geninho é, muito teimoso, custa a me obedecer. Vou levar este burro para minha mulher a Rosinha, espero que o burro fale com ela e assim terei certeza de que não estou louco.

E lá se foi seu Chico levando o Geninho pela corda tagarelando como um papagaio.

Chegando em casa seu Chico gritou:

 — Rosinha, mulher, corre até aqui vem ver uma coisa, você não vai acreditar o nosso burro Geninho fala.

Rosinha veio correndo pensando, meu Deus meu marido bebeu. Quando ela chegou em frente ao burro o caipira já quase alucinado disse:

 — Vamos lá, Geninho, fale alguma coisa para minha mulher.

O burro não se fez de rogado, disse disfarçando para Rosinha não vê-lo falando: — Patrão, o senhor quer mesmo que eu fale? Olha, o senhor não vai gostar hein.

Seu Chico já espumando de raiva:

— Fale de uma vez, seu burro, senão te meto o chicote.

— Está bom, está bom, então lá vai, e é bom se preparar, pois lá vai uma burrada daquelas.  Disse Geninho à mulher: — Como o seu Chico, teve coragem de casar-se com uma mulher tão feia como a senhora? Quichiii!

Dona Rosinha ficou da cor de um tomate maduro:

— Chico, seu desgramado! Aposto que foi você que ensinou este burro besta vir até aqui me insultar dessa maneira.

 Dona Rosinha de repente, se deu conta da situação, arregalou os olhos incrédula:

— O que é isto? Este burro fala? Chico que brincadeira é essa?

Seu Chico fuzilando o Geninho com os olhos disse

— Seu burro miserável, além de só falar besteira, ainda por cima é um mal-educado, atrevido, mas, corajoso. Acabou falando para a Rosinha aquilo que eu nunca tive coragem de dizer e agora que a verdade veio à tona, vou desabafar aquilo que está entalado na minha garganta faz tempo. Eita mulher feia, soh! Louco fui eu que me casei com ela.

Geninho ganhou neste dia, além da admiração e amizade, uma bela ração extra de alfafa,  e aprendeu que nem sempre em boca aberta entra mosquito.

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

A SORTE ÀS VEZES SORRI - Alberto Landi

 




A SORTE ÀS VEZES SORRI

Alberto Landi



Kamal, um menino angolano, perdeu seus pais durante um conflito ocorrido em Luanda, em meados de 1975. Conflito esse que gerou a independência de Angola, até então sob domínio de Portugal.

 

Joao Pedro, um jornalista português a serviço de um jornal de Lisboa, estava cobrindo pessoalmente parte desse conflito. O jornalista conseguiu trazer para Lisboa, o menino Kamal, então órfão e sem parentelas, para viver com sua família.

 

Aconteceu, que num período curto, a família não quis mais aceitar a convivência. Então Kamal ficou à deriva, vagando pelas ruas da cidade, sem rumo, buscando comida e um teto para viver, pedindo esmola para os transeuntes.

 

Não ter o aconchego dos pais é terrível. Vendo o menino era uma cena de cortar o coração. Pude imaginar quantas noites não passara dormindo ao relento, sem um teto para morar.

 

Quando estendia a sua pequena mãozinha aos transeuntes, sentia muita humilhação e só observava indiferença nas pessoas. Quantos corações endurecidos e insensíveis, nas pessoas.

 

Hoje é domingo. A criança encontra-se à porta da igreja de São Pedro do Estoril, implorando com o seu semblante triste e amargurado, em receber uma possível esmola.

 

Algumas pessoas depositam algum dinheiro em sua mão estendida. Terminada a missa, o seu semblante está um pouco mais alegre, pois sabe, que nesse dia de domingo, não passará fome.

 

Seguem se os dias, o tempo vai passando, e a caridade fingida dos transeuntes continua omitindo a solidariedade para com esta pequena criança e aumentando a indiferença das pessoas.

 

Aproximei-me de Kamal, depois de observá-lo por muito tempo, e propus a ele uma morada e comida em minha casa. Prontamente aceitou. O tempo foi passando e Kamal com 14 anos de idade já estava na quinta série, mostrando ser um aluno aplicado e com muito interesse nas disciplinas.

 

Nas horas de lazer, após seus estudos, ajudava no expediente de uma livraria, de um amigo meu. E assim Kamal se afeiçoou aos livros, e após alguns anos, um advogado.

 

Penso que a solidariedade e a oportunidade dada às pessoas, fez de Kamal um grande ser humano. Vejam como a vida é interessante e cheia de alternativas. Atualmente Kamal é um advogado brilhante!

 

O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

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