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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

VIDA DE CACHORRO - Leon Vagliengo

 





VIDA DE CACHORRO

PASSEANDO NA HORA DO APERTO

Leon Vagliengo

 

Augusto não poderia queixar-se da sorte. Morava bem, em um belo apartamento em São Paulo, no bairro de Moema. Sempre bem alimentado, ração de primeira.

Só não se conformava muito com o nome estranho que lhe haviam atribuído. Nada a ver com os praticados para a sua espécie, como o conhecido Duque, o cinematográfico Banzé, ou mesmo o arcaico Totó. Mas, enfim.... Atendia mesmo pelo estranho nome de Augusto.

Todos os dias alguém o levava a passeio pelas calçadas do bairro, graças a suas conhecidas e temidas necessidades fisiológicas, que deixavam os seus donos apavorados, pois tinham medo de seus efeitos deletérios para o imaculado apartamento.

Esse medo dos donos não lhe escapara à percepção, e duas vezes diariamente, à mesma hora do dia e da noite, ele olhava para alguém, de preferência para Isabel, a dona da casa, e chorava com cara de sincero sofrimento, revelando a sua angustiante condição de apertado. Logo, Isabel, ou alguém a quem ela ordenasse, providenciava a coleira e a guia para levá-lo ao passeio.

 Ele não gostava da guia, mas se conformava reconhecendo o cuidado que tinham para que não se perdesse.

Naquela manhã estava especialmente apertado. Ao sair disparou em direção ao primeiro poste, quase derrubando a Ritinha, a empregada da casa, que recebera a incumbência de levá-lo.

 Ao vê-lo tão desesperado correndo em sua direção, o poste logo reclamou:

Tem que ser aqui? O caminhão da Prefeitura acabou de passar lavando a rua e eu estou limpinho, sem mau cheiro. Vai mais adiante, me poupe hoje.

Augusto nem teve tempo de responder. Aliviou-se ali mesmo, sem considerar a argumentação do amigo poste. Depois da operação, que certamente seria a primeira de uma série durante a caminhada, então grunhiu em resposta para ele:

Desculpe, amigo! Hoje não deu, mas agradeço muito pelo seu apoio.

Disse isso e seguiu a caminhada, sempre cheirando aqui e ali, aparentemente tentando descobrir algo que, para os que o levavam pela guia, era sempre um grande mistério, fazendo com que pensassem:

O que será que o Augusto cheira com tanta concentração nesses momentos?

Em verdade, ninguém nunca saberia. Ele não revelaria, guardando essas observações e descobertas reservada e exclusivamente para si.

Continuando o passeio, eis que, de repente, ocorreu nova e forte emissão daquele líquido, desta vez sobre um pobre arbusto que teve a infelicidade de encontrar-se no caminho, e que protestou:

Você não tem educação, não? Porque não vai num poste?

Desculpe, foi natural e espontâneo, não deu para segurar – grunhiu Augusto em resposta.

E assim seguiram o passeio, até que Augusto parou, com as orelhas em pé, admirando a linda cachorrinha, toda negra, de sua mesma raça, que se aproximava com evidentes sinais de interesse, a julgar pelo balançar de seu apêndice traseiro.

Que gatinha!  Logo exclamou Augusto, sem nem perceber que o repentino entusiasmo e os hábitos coloquiais o levaram a confundir as espécies.

Porém, ao tentar fazer a tradicional conferência canina dos atributos da recém-chegada que nele provocara tanta admiração, recebeu forte puxão pela guia e foi arrastado para longe de sua candidata a musa. Virou a cabeça para trás, querendo voltar, mas sendo impedido pela Ritinha.

Quero vê-la novamente, latiu para a cachorrinha, que também se mostrava desapontada.

É quase sempre assim! Certos humanos não respeitam os nossos sentimentos – pensou.

Ante a falta de alternativa, Augusto conformou-se com a esperança de voltar a encontrar a sua musa durante o passeio da noite, guiado pelo Rafael, seu dono, que nesses momentos costumava ser muito mais compreensivo.

E voltou com Ritinha para casa, mas não sem antes vitimar mais algumas plantinhas.

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