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quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O Tempo que nos Resta - Hirtis Lazarin

 

O Tempo que nos Resta

Hirtis Lazarin

 

Joaquim não se levantou para o café da manhã como fazia religiosamente todos os dias, às seis horas da manhã. 

— Pai, não precisa levantar tão cedo! Repetia a filha, Benê, com paciência nenhuma. Ela não entendia que esse hábito foi incorporado àquele corpo durante trinta anos de trabalho e repetido todos os dias. Ainda bem que a surdez de Seu Joaquim não o deixava ouvir com clareza todas as reclamações. 

A tarde era de verão e o sol, de tão intenso, amoleceu o asfalto da rua. Maria faxinava a casa e o idoso, pra não atrapalhar a movimentação lá dentro, foi levado ao jardim numa cadeira de braços desprovida de qualquer vestígio de conforto — uma capa de plástico cobria a palhinha dura e áspera — e, apesar da alta temperatura, uma manta xadrez cobria-lhe o joelho. A cabeça caída no peito e um fio de baba escorria da boca. 

Ali isolado, só lhe restava o lirismo e a poesia da natureza: o perfume do jasmim, as flores amarelas da giesta e as folhinhas do chorão faiscando — verde, verde! Ainda bem que a sensibilidade e o gosto pelo belo e colorido permaneciam imutáveis.

Vontade de viver? Não, não lhe sobrou nada. A esposa, companheira maravilhosa, já se fora após anos de sofrimento. Berê, a única filha, sempre sem paciência e irritada, dirigia poucas palavras ao pai. O neto, um adolescente chato que só sabia reclamar do suco que estava muito doce; peixe, ele não gostava; tênis novo, roupa nova… Não raramente, passava a semana inteira sem ver o avô. 

Ler um livro, assistir a um filme, nem pensar. Após o derrame, os olhos vermelhos e embaçados deformaram as letras, as imagens…

A dor da solidão é imensurável. É maior que morder a língua, bater a cabeça na quina da mesa, pedra no rim. Ela chega impiedosa quando nos conscientizamos de que os pedaços bons da vida foram ficando pelo caminho. Aparecem em flashes, migalhas de satisfação passageira. A mesa cheia de gente e comida boa,  aniversários com estouro de bexigas coloridas e muitos parabéns, o choro da menina inconformada com o presente que não queria, o pneu furado e as horas perdidas na estrada compensadas pelo banho de mar.

Sentir o perfume da esposa era, para Seu Joaquim, um abraço apertado de muito amor, conforto e prazer.  

Raramente, ele se olhava no espelho. Não se conformava com o estrago que o tempo lhe causou. Outrora, um homem ousado e cativante. Sempre elegante nos ternos de cores sóbrias e corte impecável. A coleção de gravatas era de causar inveja.  A cabeleira vasta e esvoaçante virou meia dúzia de fios brancos. E o mais deprimente era aquela caspa na sobrancelha grossa e desgrenhada que o fazia sentir-se uma barata leprosa.

Na sombra das folhas, ele adormece…

De repente, acorda com gritos: 

— Eu recolho a roupa e você, Maria,  fecha as janelas. Já prendeu o Thor, Ricardinho? 

Rebenta com fúria um temporal. Foi rápido, mas intenso, com ventos e sequência de trovões.

Aos trancos, Joaquim ergue o rosto, a chuva escorre na boca torta e o olho vermelho revira em agonia. É uma coisa esquecida na confusão de recolher a roupa e fechar as janelas.

Joaquim vale menos que as roupas, menos que o cachorro? 

O quarto do Seu Joaquim está vazio. 

Um caminhão estacionado à frente da casa transporta mobílias para doação.

 

 

A TRISTEZA IMPOSSÍVEL! - Dinah Ribeiro de Amorim

 

 


A TRISTEZA IMPOSSÍVEL!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

 

Era um moço muito quieto, quase não se mexia nem falava. Era um ninguém no mundo. Na escola, pensavam até que fosse mudo, mas não era. Respondia somente às perguntas dos professores. Enfim, respondia somente o que era impossível não enviar uma resposta. Semelhante a um aparelho, quando ligado.

Em casa, também bastante quieto e comportado, somente falava o necessário com o avô, única família que possuía, após a morte dos pais em acidente de carro, quando pequeno.

Com a velhice, seu avô foi também impossibilitado de conviver em sociedade, dificultando mais a sua timidez ou tristeza, ou depressão, ou temperamento, sabe-se lá o que dificultava a sua normalidade, como jovem, sadio, aparentemente normal.

O único frequentador da casa, como pessoa mais íntima, era o Dr. Afonso, advogado particular das finanças e bens do avô. Sabia respeitar o ambiente e a natureza dos seus clientes, explicando as situações mais difíceis, calmamente, a Joel, o neto de temperamento estranho, que conheceu desde criança.

Falava-lhe somente o necessário, embora também estranhasse, às vezes, esse olhar entristecido, essa ausência completa de um pouco de vivacidade, normal à idade. Jovem, forte, bonito e rico, sim, de vida econômica muito atraente.

Joel, com um pouco mais de alegria, seria um grande partido, desejo de qualquer moça com ideias casadouras.

Com o passar do tempo, em idade já avançada, o avô de Joel falece, tendo Dr. Afonso que comparecer à casa inúmeras vezes para resolver assuntos de herança.

Era um verdadeiro sacrifício porque o rapaz não manifestava nada, nenhum sentimento. A mesma fisionomia apática e triste que o acompanhava sempre permanece nessas reuniões. Nem tristeza, nem dor pela morte do avô, nem a alegria em ficar mais rico e herdeiro dos bens para ele deixados. Que moço estranho, esse neto, pensa Dr. Afonso. “Cada vez que tenho que ir lá, saio pensativo, triste, algo estranho parece que me consome, passo o dia deprimido, reclamo até do meu trabalho!”

Joel, ao ficar sem o avô, caminha silenciosamente pela casa, observa retratos, descobre figuras que lembram seus pais, sua vida em pequeno, recorda-se, lentamente, de alguns momentos alegres que teve, como criança. Sabe que é diferente dos outros, percebe reações estranhas quando é obrigado a se dirigir a terceiros. Mas nunca deu muita importância a isso. É um deprimido ou um triste mesmo, em relação à vida. Nada o entusiasma, nada decide colocar em prática. Somente vive, come o necessário e dorme. Às vezes, alguma leitura ou caminhada, para manter a cabeça e o corpo em dia.

Se encontra algum vizinho pelo caminho, desvia rapidamente, no que é respeitado, não deseja amigos nem eles o querem conhecer.

É ajudado, em casa, por uma senhora gorda, Dona Berta, cuidadora do avô há muitos anos. Faz todo o serviço em silêncio, acostumada com o temperamento de Joel. Não costuma falar à toa nem puxar conversa.

Da. Berta, preocupa-se com ele, mas sabe que não adianta fazer nada, o rapaz deve ter traumas difíceis, desde a morte dos pais. Nem o avô conseguiu arrancar essa tristeza dele, levando-o a vários médicos. Joel não abria a boca.

Numa tarde, Dr. Afonso aparece para vê-lo e discutir um assunto sério. A venda de uma casa na praia, lugar aprazível, COCOA BEACH,  famosa por esportes náuticos, próxima ao Centro Espacial Kennedy, deixada pelo avô, que um casal queria comprar.

Joel recebe-o de má vontade, achando um grande esforço só ouvi-lo. Dr. Afonso traz até fotos lindas do local. Aconselha-o a vender, como um bom negócio, já que ninguém utiliza a residência. Bonita casa sujeita a se desfazer.

O rapaz fica de pensar no assunto e, aborrecido, despacha logo o advogado, assim que consegue. Sente-se cansado, incomodado com tanta invasão de privacidade.

Numa tarde, Dona Berta, o chama para mostrar umas fotos dele, em criança, na casa de praia. Quer auxiliá-lo a se decidir.

Não é que desperte nele alguma curiosidade! Demonstra um certo interesse e olha as fotos com ligeiro sorriso.

A figura dele pequeno, alguns amiguinhos por perto, seus pais e os avós ainda vivos, dá-lhe certa saudade. Espanta-se com isso. Nem sabe mais como é sentir… Dona Berta se entusiasma.

Para Joel, tanto faz o lugar, mas sente vontade de voltar a ver o mar. Será que será diferente? Sentirá algum sentimento novo? Estranho isso nele. Há muito não sabe o que é ter vontade…

Arruma algumas roupas, dirige o carro que lhe restou do avô, dirigir, para ele, um ato mecânico, prático, como andar ou comer, e vai em direção à praia, ao mar que nunca mais viu.

Em meio ao caminho, sente um cheiro diferente, meio de peixe, meio de maresia, fica um pouco enjoado, quer voltar.

O tempo ensolarado muda, aproxima-se um cheiro de terra molhada, uma cor escura nas nuvens, uns barulhos mais fortes que prenunciam a mudança no clima. Melhor continuar quieto em casa, voltar.

Para voltar, naquela hora, impossível, uma barreira feita na estrada impede os automóveis de retornarem. O jeito, arrependido, é seguir em frente.

Continua pela estrada e só para quando chega à casa à venda, a casa que ainda é sua.

Abre-a e a memória volta, aos poucos, reconhecendo objetos e ambientes. Lembra-se de alguns momentos de sua infância, embora se desgoste disso.

Repara pela janela que os vizinhos estão agitados. Pessoas saem pelas ruas às pressas, movimentam-se, parecem fechar rapidamente suas casas, temem alguma coisa.

Examina o mar azul e calmo, da mansidão da sua infância. Parece que já não está tão baixo e manso como era. Suas águas furiosas enviam ondas quase tão altas como as residências.

Um vizinho bate à sua porta e vem avisá-lo de que estão temendo forte tempestade, talvez até a vinda de um tornado. ”Péssimo dia para o senhor voltar!”, exclama.

Joel tremula um pouco as pernas com a visita, não pelo assunto, mas pela palavra com um estranho, o que o atemoriza. Detesta vozes alheias, aliás, não gosta de voz nenhuma.

Agradece o aviso e, quando vai fechar a porta, o vizinho anuncia que, se precisar, poderá ajudá-lo a se refugiar no porão de sua casa.

Joel pensa: “Não recorrerei a ele, nunca, nem que a casa caia em minha cabeça!”

Fecha tudo rápido, deita-se em sua cama, presta atenção nos sons. Aguarda a tão falada chuva forte! As ondas do mar transformam-se em rugidos fortes semelhantes a leões que cavalgam em fúria contra rochas endurecidas.

Ela chega logo. Os trovões e raios atormentam seus ouvidos. Um vento ligeiro e cantador soa alto, parecendo levar tudo que encontra.

As janelas abrem e algumas voam e só param quando encontram algo mais forte que elas ou alguma árvore alta e resistente.

Na verdade, Joel começa a sentir medo, há tempos que não sentia. É bem provável que acabe voando também. Talvez a cidade enviará seres humanos como foguetes espaciais, pensa, com ironia.

O medo o ataca de tal forma que ele se levanta rápido e corre para o porão da casa vizinha. A água do mar subiu e fez sumir a praia, chegando às casas.

Bem acolhido, reúne-se ao grupo de albergados da rua, que se abraçam e o recebem carinhosamente. Sente-se bem no meio deles, o que há tempos não sentia, junto aos outros.

Esse terrível temporal, como veio, foi. Levou horas e muita coisa com ele. Fez estragos.

Com calma, saíram os que restaram para examinar as sobras.

Muita coisa mudou. Muitos se entristeceram. Perderam quase tudo. Alguém se reencontrou… Mudou com essa chuva terrível! Difícil de explicar… Joel, menos assustado e muito falante, abraça os novos amigos e começa a auxiliar seus vizinhos da rua a recolher os objetos que poderiam ser aproveitados.

A simpatia e o acolhimento dos amigos, nessa hora difícil, o sentimento de medo e dor, transformam a vida do rapaz eternamente triste, de uma depressão incompreensível! Joel muda o seu temperamento, torna-se um homem justo e responsável, um auxiliar da comunidade, mudando-se para essa casa na Flórida e refazendo sua vida.

 Anos mais tarde, recebe a visita da antiga Dona Berta, que encontra um homem feliz, casado agora com Mary e pai do pequeno Robson.

Ainda treme um pouco com o barulho das ondas quando quebram na praia ou o barulho de um foguete lançado ao espaço, mas, o filho, ama ouvi-los!

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Duas taças de Vinho Vinho Tinto de Sangue” - Hirtis Lazarin

        


"Duas taças de Vinho

 

Vinho Tinto de Sangue”


Hirtis Lazarin

 

Igreja. Há quanto tempo não a frequento. Lá em casa, sempre sempre  IGREJA!  Missa, catecismo. Padre, roupa preta. Diamante Negro, preto DELÍCIA! Comer chocolate só no sábado no cinema. Comer hóstia pode? Pecado. Nem encostar no dente. Leite quente faz bem pra gente. Ah! Meu terço perdi. “Menina desastrada, só não perde a cabeça porque está grudada no pescoço”. Doce-de-leite grudado na panela. DELICIOSO! Procissão a pé. Cinco da manhã. Frio tô com sono. Férias pra dormir. Vela acesa mão queimada, dor na mão, dor no pé. Sapato apertado, dinheiro apertado.  “Hora da missa bicicleta não”, a pé, pé de cachimbo que bate no sino. “Menina o cachorro tá preso”. Meu coração também tá preso. Medo do cachorro, medo de Deus. Medo do castigo de Deus.  Papai nunca me castigou. Confissão dos pecados, confissão do meu amor por você paizão. Eu falo “você” pro padre? Ou “Alteza”? O rei de Portugal é Alteza. Dona Luci me ensinou. Ave-Maria, cheia de graça… esqueci a letra. 7 de setembro, desfile esqueci a letra do Hino Nacional. Mãe, por que você está ajoelhada cochichando com quem? Vai demorar? Água benta. Pode beber? Tô  com sede de carinho, de amor, de atenção. “Suba aquelas escadinhas. Veja as estátuas. Não corra, menina”. Eu também estou correndo das orações. Será que Deus entende? Minha mãe não me entendia. Eu era complicada. Deus é poderoso. Aquela imagem de Nossa Senhora carregando o Menino Jesus… É angelical e sofredora. Sofredora como eu. Vela vou acender uma vela, pra Jesus e Nossa Senhora, duas velas. “Cuidado, vai queimar o dedo”. Eu queimei meus livros de oração. Todos. “ Lá fora, o que está acontecendo”?  Um estalo, outro estalo, um estrondo, meu Deus! Não chore, eu te protejo. Por que fiquei sozinha? Sinto uma dor forte na cabeça, sangue escorre em bica e adoça minha boca. Eu adoro doces. Menina, cadê você? Esqueço-me da menina e de mim também.



A PALAFITA! - Dinah Ribeiro de Amorim

 



A PALAFITA!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Zeca Tibúrcio casou-se com Maria das Mercês e realizou um sonho íntimo: morar com ela em uma palafita, casa edificada e suspensa em suportes, nas encostas de correntes fluviais. Foram morar acima do Rio Negro, afluente do Rio Amazonas, com grande volume de água.

No início, tudo era felicidade. Para qualquer necessidade, possuíam um pequeno barco para os levar até a cidade mais próxima ou também para Zeca realizar suas pescarias, mantendo-os com bom sustento.

Às vezes, sentiam alguma dificuldade, principalmente na época das chuvas. A pequena palafita balançava-se, jogando-os ligeiramente para vários lados. No auge da mocidade, brincavam com isso, até dançavam, acompanhando o ritmo dessa chuva desenfreada.

Alguns anos se passam e Maria das Mercês engravida numa época que não desejava. Queriam esperar mais tempo, nessa vida de aventura.

Seu início de gravidez é bom, sem muita necessidade de ir ao Posto de Saúde próximo, mas, com o tempo, Zeca achou melhor levar a esposa todos os meses, amedrontado com algum problema que surgisse na gestação do primeiro filho.

Maria não se queixava e também não reclamava do local distante.

Cada vez que a casa balançava um pouco, surgia alguma ameaça de chuva ou temporal, a criança também se mexia fortemente na barriga.

O casal preocupava-se um pouco, mas Maria avisava Zeca que era normal. Em toda gestação, a criança se mexe. O perigo é quando não mexe nada. Parece não se desenvolver.

Numa tarde que parecia bastante bonita e calma, o Sol se esconde, nuvens escuras aparecem, o vento levanta ondas fortes nas águas do rio e uma forte tempestade cai.

Zeca Tibúrcio se assusta e corre a ver sua canoa, procura amarrá-la fortemente nas tábuas que seguram a casa. Poderiam necessitar dela para transporte. Logo após, vai observar Maria das Mercês.

Encontra-a deitada, um pouco assustada, com as mãos alisando a barriga, como quem quer oferecer calma e proteção.

Pergunta-lhe, aflito, se sente alguma dor e ela responde que não. Só um pequeno susto.

Zeca, então, vai sentar-se perto da entrada e observa a queda forte dos pingos de chuva. As águas do rio estão rápidas, violentas, trazendo de longe tudo que encontram.

De repente, vê, assustado, que algo volumoso para, se encosta na parede da casa, interrompido por uma coluna. Levanta-se rápido e vai ver o que é!

Espantado, percebe que é um corpo de homem, já desfalecido, trazido pela corrente. Deve ter caído e se afogado. As águas são mais fundas nessa região.

Não consegue puxá-lo para cima e, desesperado, lembra-se de que todos os moradores daquele local possuem uma espécie de tiro para o alto, um sinal barulhento que os chama em situação de perigo.

Corre a buscar o seu e envia vários sinais, para ser atendido, anuncia uma emergência.

Logo aparecem várias embarcações e, uma delas, da polícia aduaneira, que imediatamente socorre o moribundo, reconhecendo-o como habitante, morador não muito de longe. É levado ao hospital e, possivelmente, ao necrotério.

Quando a situação se acalma, Zeca se lembra de Maria e corre a vê-la.

Está ainda deitada, muito branca, assustada com todo aquele tumulto, sem sentir a criança se mexer.

Queixa-se ao marido e este acha melhor levá-la ao posto próximo, aproveita que a chuva se acalmou.

Juntos, no pequeno e rápido barco, o casal mostra-se diferente das outras ocasiões em que saíam a passear. A situação não era mais de um casal jovem, aventureiro, mas de pais preocupados e sérios com o futuro filho, com a responsabilidade de uma família em início.

Zeca pensa: ”Que ideia tivemos com esse romantismo!”

Maria pensa: “E agora, será que a criança se assustou e não cresce mais?”

São atendidos por um médico simpático que os acalma e explica que Maria deve ter se assustado muito com o barulho. A criança está em desenvolvimento normal. Voltam mais tranquilos.

Zeca começa a cismar um pouco, agora, com o local em que mora. Gostam da casa, da paisagem, do lugar, mas pode ser também muito sofrido e perigoso, quando em enchente. Difícil também para criar criança, com muitas necessidades. O que fazer?

Pensativo, avista o barco maior e mais pesado dos aduaneiros, que leva o falecido embora. Quase não balança nem se locomove sofridamente, enquanto se retira. Uma ideia diferente e estranha lhe vem à cabeça. Precisa fazer uma reunião com outros companheiros, vizinhos, para propor uma opinião.

Numa tarde quente e ensolarada, uma reunião é marcada em sua palafita, arranjada com toras de madeira, para servirem de bancos.

Os curiosos vizinhos, solidários, comparecem, achando que é uma comemoração ou festa, na simplicidade deles.

Zeca Tibúrcio exige um pouco de atenção e começa a falar:

_Amigos, vizinhos de moradia à beira d’água, aproveitadores desse ambiente gostoso, aventureiro e simpático, sabemos que enfrentamos muitas dificuldades, mas não as tememos. E se a gente construísse nossas palafitas na água mesmo, mas como poderosos barcos, possuindo canos carregados de ar, no solo, para ficarem mais pesadas, paradas no lugar, com a força dos ventos e das águas? Não temeremos mais perigos.

_Casas como embarcações pesadas, Zeca? Exclama o Joca.

_ Sim, poderíamos até viver próximos à cidade, à costa, mas com mais liberdade. Sem a fixação leve de paus de madeira junto às margens. Ficaríamos mais firmes, usaríamos a força da base para impulsionar a força para cima, seria uma ação de impulso e refluxo, também usada nas grandes embarcações, responde Zeca.

_Isso ficará caro, gente, mas podemos tentar auxílio na prefeitura. Irá resolver o problema de moradia de muita gente como nós, exclama o velho Tadeu. Zeca, sem saber, teve uma ideia que era um sonho de Tadeu, de muitos anos. Transformar residências fluviais em transatlânticos, eh, eh, eh, … lembrou-se do impulso de Arquimedes, aprendido na escola, o único deles que havia cursado alguma coisa…

Animados, resolveram levar essa ideia adiante, que se tornou, muitos anos depois, quase uma verdade, com algumas casas flutuantes, equilibradas por bombas de pressão de ar comprimido, quando muito leves, semelhantes a navios equilibrados sobre a água, de cascos pesados e ocos.

Zeca e Maria tiveram o filho, gorducho e forte, chorão às vezes, só sossegando quando sentia um balançar leve, nas ventanias e temporais mais fortes.

Aos poucos, as palafitas do Rio Negro foram mudando de apresentação. Viraram habitações fluviais, sem grandes enchentes ou perigos.

Logo, logo, seriam pequenos bairros à beira d’água, semelhantes aos ricos bairros residenciais terrestres.

Tadeu, o grande mestre das obras, logo passou a ser conhecido como: Tadeu, o grande Arquimedes!

 

 

Perdida na multidão - Adelaide Dittmers

 



Perdida na Multidão

Fluxo de pensamento

ADELAIDE DITTMERS

 

O ônibus saiu da estreita estrada e entrou em uma rodovia, que se perdia de vista, cercada por morros verdes e onde, de tempos em tempos, surgia ao longe uma cidade, que parecia adormecida apesar do sol já estar alto.

Sentada em um dos bancos, uma velha senhora, modestamente vestida, acompanhava assustada o entorno, que passava rapidamente pelos seus olhos cansados. Nas mãos, uma velha sacola era apertada com força, para amenizar a insegurança que a pobre mulher estava sentindo ao sair pela primeira vez da cidadezinha em que morava.

Após horas de viagem, uma grande cidade cercou o veículo, com o barulho estridente do trânsito frenético e o cheiro do asfalto e do rio poluído entrou pelas narinas dos viajantes. Os grandes braços da enorme cidade abraçaram o ônibus, que parecia uma miniatura percorrendo por ela. Os olhos da pobre senhora arregalaram-se. Nunca vira um edifício e ali havia muitos deles querendo alcançar o céu. Apertou com mais vigor a sacola junto ao peito.

— Estamos chegando? Perguntou timidamente ao seu companheiro de banco. O homem somente balançou a cabeça indiferente.

— Meu nome é Benedita

O homem fez que não ouviu.

Ela encolheu-se no lugar. Começou a ficar desesperada. Serpenteando pelas ruas, o ônibus finalmente entrou em uma grande estação e parou em uma comprida plataforma. A porta se abriu e as pessoas começaram a descer. Ela se levantou devagar. As pernas trêmulas. Desceu as escadas lentamente e parou na plataforma. O olhar aterrorizado procura a parente.

Os pensamentos se atropelavam em sua cabeça.

“Nossa Senhora Aparecida me ajuda. Tô perdida.  Cadê a Maria? Que mundo de gente. Nunca vi tanto povo assim. Correm pra num sei onde. Ninguém se olha.  Valha-me Deus Nosso Senhor. Não sei pra onde caminhar.  Maria, cadê você? Que gente mais isquisita.”

A angústia transbordava dela.  O olhar indo de um lado para o outros cheios de assombro e medo.

Uma policial, que fazia sua ronda, percebeu o desespero da pobre mulher.

— Olá, senhora! Precisa de ajuda.

— Tô perdida! Maria vinha me buscar.  Num tá aqui.

— Venha comigo!

— A senhora vai me prendê?

— Não. Vou tentar ajudá-la! Respondeu sorrindo.

Benedita seguiu a policial. Os passos trôpegos desviam das pessoas.

“Minha Nossa Senhora, me salve, o que vai acontecê? Ajudá ou me prendê.  Por que vim pra esse inferno. Prometo que vou dá três galinha pro padre da paróquia, se me livrar di tudo isso.  Eu tinha que vim, Santa, pra salvar meu sítio. Tô danada.”

A policial a encaminhou para o posto.

— Sente-se, senhora. Quer um copo de água?

— Quero.

— Por acaso tem um número de telefone? Perguntou, oferecendo-lhe o copo.

Ela abriu a sacola, tateando com as duas mãos o emaranhado de roupas, espalhados pelo interior, alcançando um pedaço de papel, que puxou para fora e entregou à policial.

— Tá aí.  Num sei lê, não, moça.

— Ah! É uma carta. Pode deixar, eu leio. E passou os olhos pelo que estava escrito.

— Pode ficar sossegada, Dona Benedita.

— Ué, como a moça sabe o meu nome?

— Está aqui na carta e também temos o número de um celular.

— Que é isso?

— Um telefone. Vou ligar para sua prima. 

“Cumo é tudo atrapalhado nessa cidade. Celu, o que mesmo? Mas essa moça é uma santinha. Brigada, Nossa Senhora! 

A policial ligou e falou com Maria, que a esperava na saída do terminal. Benedita suspirou aliviada e agradeceu à policial. 

— Minha mãe também veio do interior e no começo sofreu muito aqui. E abraçou a pobre mulher, que derramava lágrimas de alívio e gratidão.

 



quarta-feira, 15 de outubro de 2025

ITÁLIA EM SUSPIROS - Alberto Landi

 

 



ITÁLIA EM SUSPIROS

Alberto Landi

 

A Itália é sempre uma poesia, uma arte esculpida em pedra.

Suas cidades refletem a rica história, a cultura e a beleza estética de um país onde cada rua, cada piazza é um museu a céu aberto.

A arquitetura impressiona pelos detalhes, que contam histórias ao longo dos séculos. Cada lugar é uma obra de arte viva, repleta de alma, luz e inspiração.

Em Florença, uma jovem caminhava distraída pela via dei Calzaiuoli, os olhos voltados para as vitrines, mas o coração capturado pelo som de um violinista que tocava Vivaldi. O ar se misturava ao cheiro do café recém-moído vindo de uma pequena torrefação, cada acorde parecia pintar em tela invisível no céu.

Em Roma, um ancião sentado em uma praça contava histórias aos netos.

Apontava para as colunas em estilo coríntio do Fórum Romano e dizia: Essas pedras já ouviram vozes de imperadores e também sussurros dos poetas.

Os meninos riam, mas no fundo sabiam que o avô tinha razão ali, entre ruínas, ainda se ouvia o pulsar da eternidade.

Em Veneza, as ruas não eram de pedra, mas de água. Um gondoleiro orgulhoso em sua profissão guiava turistas entre palácios que refletiam no canal como se fossem sonhos. Ao passar pela sombra de uma ponte, cantava uma canção herdada de seus ancestrais em dialeto veneto. Era como se a cidade toda fosse um palco flutuante.

Em Nápoles, ao cair da tarde, os becos estreitos se enchiam de vozes misturadas ao aroma do mar e do café fresco. Pizzaiolos lançavam pizzas ao ar com a maestria de escultores, enquanto pintores de rua desenhavam em poucos traços as faces dos passantes. Cada esquina era um palco onde a vida pulsava sem ensaio, vibrante e desordenada.

Entre roupas penduradas nas varandas e igrejas douradas pelo tempo, a cidade respirava paixão intensa, imprevisível e eterna.

Nápoles não se visita: se sente. Ela é música, túmulo e poesia.Tudo ao mesmo tempo.

Trieste repousa à beira do Adriático, entre o azul do mar e o silêncio das colinas.

O vento, chamado Bora, sopra histórias antigas pelas ruelas estreitas, levando o perfume do sal e da saudade. Os triestinos dizem que, quando o Bora sopra, limpa o céu e a alma.

Há um brilho no porto, onde o sol se despede lentamente e os navios parecem suspensos no tempo.

Os cafés guardam ecos de escritores e sonhadores. Ali ,o pensamento é livre como o horizonte.

Entre fachadas antigas e praças luminosas, a cidade revela seu coração mestiço, onde Itália e Europa Central se encontram em harmonia melancólica.

 

Matera dorme nas encostas de pedra, envolta em silêncio e memórias. As casas, esculpidas na rocha, guardam histórias que o vento percorre lentamente, e cada degrau, cada rua estreita, é um sussurro do passado que recusa a desaparecer.

Ali, o tempo não corre: caminha descalço, tocando as paredes gastas e os degraus de pedra com a serenidade de quem já viu tudo.

O sol toca os muros com delicadeza, e as sombras dançam entre os becos como se o tempo ali tivesse decidido não correr, apenas existir.

Há um perfume de terra antiga, de pão quente, de vidas que se entrelaçam com os séculos.

O passado e o presente caminham lado a lado, tranquilos, e quem passa sente que o mundo inteiro cabe naquele instante suspenso entre pedra, memória e silêncio.

Milão pulsa no compasso da moda e do aço, entre ruas elegantes e catedrais que tocam o céu.

O Duomo ergue-se como um sonho em pedra, e cada esquina sussurra histórias de arte, inovação e ambição.

No rastro da Galleria Vittório Emanuele, o tempo brilha em vitrines e passos apressados, onde o moderno e o antigo dançam em perfeita harmonia.

O sol se despede sobre a península, e cada cidade guarda em seus muros e ruas um sussurro do passado, um rastro de histórias que caminham descalças pelo tempo.

Da pedra antiga de Matera ao aço elegante de Milão, da paixão caótica de Nápoles à serenidade do Adriático em Trieste, cada canto é um verso, cada passo um poema.

E a Itália, eterna e viva, respira em cada passo, guardando-se nos olhos de quem a percorre!

 

 

DANÇA - PEDRO HENRIQUE

 

 


DANÇA

PEDRO HENRIQUE

 

É curioso observar a capacidade da dor de nos guiar ou influenciar nossas ações, como uma espécie de magia que tem um poder grandioso sobre nossos ombros e que rogamos veementemente aos céus para desaparecer. Porém, ela sempre se recusa a dar adeus.

     A dor é assim, é essa coisa que desde cedo está posta em nosso pescoço e, quando puxada, sufoca-nos, levando não só a respiração, mas o estômago, a boca, o afeto…

     Haverá de dar um jeito, porque a corda nunca sai de nossos pescoços; ela pode até afrouxar em certos momentos, mas sempre permanecerá lá. Lembrando-nos dela toda vez que pomos nossas cabeças no travesseiro ou quando nos levantamos dele.

Lembro dela, lembro todo dia, lembro desde quando foi posta em mim. Não ache tu, ó, leitor, que não experimentei o sabor azedo dos sentimentos hostis.

Todavia, lembro da dor da estranha. Ah, coitada. Recordo-me como se fosse ontem do dia em que ele entrou bêbado na sala e lhe revelara não o afago, mas o cair da árvore, o quebrar os ossos, o ir ao poço e ser empurrada ao abismo.

     A estranha teve de se virar, pois, apesar da dor, tinha de alimentar-se e, sem saber como, continuar. Agradecia sempre quando encontrava o pão de cada dia, ainda que viesse já mordido.

     Tinha vezes que achava mais que pão, achava laranja, bife, frango, certa feita achou uma pizza, estava estragada, claro, contudo sua fome não sentia cheiro nem sabor.

     Sendo assim, a estranha comia, comia com repulsa e lamento, mas comia. Quando a comida era ruim demais, pulava no imaginário e visualizava-se em um dos restaurantes mais caros da cidade, provando os pratos mais sofisticados que há e se sentia humana outra vez.

     Tinha vezes que pensava estar provando alcatra, filé, fraldinha, entre outras; então fechava os olhos e podia sentir o cheiro vivo da carne e dizia a si mesma:

— Isso é o que eu mereço.

 Pena que o que tinha de verdade era uma pizza podre. E, quando sua mente, no ato do imaginário, dava-se conta do real, chorava. Chorava porque o que se pode fazer, a não ser chorar? O que podia querer da vida a não ser a lágrima?

Havia noites em que se deitava e a filha decidia verter água pelos olhos e, não sabendo como acalmá-la, cantava. Cantava como fazia desde pequena. Talvez essa fosse a única coisa que tinha de louvável: o canto. E bastava a filha soar o grito no momento de apagar os olhos que ela começava:

 

“Se essa rua

Se essa rua fosse minha;

Eu mandava

Eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas.

Com pedrinhas de brilhantes.

Para o meu

Para o meu amor passar.

 

Nessa rua,

Nessa rua tem um bosque.

Que se chama

Que se chama solidão.

Dentro dele,

Dentro dele mora um anjo.

Que roubou.

Que roubou meu coração.”

 

Quando terminava, dormia a bebê e ela, que ao cantar empreendia-se um pouco de dignidade. E dignidade a vida lhe entregava em esporádicas ocasiões. Uma, por exemplo, ocorreu quando estava à procura de alimento e, antes de achá-lo, encontrou um vestido vermelho sujo e surrado, todavia sedutor.

Colocou-o, fez um rabo de cavalo e passou um pouco de pintura no rosto, não era lá grande coisa, mas dava-lhe luz de uma beleza que nunca tivera e que nunca terá.

     Naquele mesmo dia, com a criança pequena no colo, foi até um botequim que vez ou outra ia para dar um fim na gravura ácida e incômoda de ser o capacho dos homens e da vida.

     Colocou na máquina de música seu forró preferido, pegou a filha nos braços e dançou como se não houvesse amanhã.

Dava aos seus pés o comando de não parar até se esquecer das pizzas podres, das brigas com seu filho, da faca, do soco, dele bêbado em cima dela. Da criança em seu colo com o rosto dele, da gasolina que ele jogava em sua casa com ela dentro, da chama consumindo tudo, dele indo preso e ela para o hospital.

     Só ambicionava dançar, nada mais, nada menos.

     E, quando a música não era o suficiente, bebia; e, quando a bebida não dava conta, fumava; e, quando fumar não lhe saciava, dançava outra vez. Se fosse preciso, passaria a noite ali; só não poderia parar de dançar.

 

 

É pra Dong Xuan que eu fui - Hirtis Lazarin

 



É pra Dong Xuan que eu fui

Hirtis Lazarin

                                                 

Finalmente cheguei ao meu destino. 

 

Até onde minha vista conseguia enxergar em meio ao denso nevoeiro, eu era o único passageiro que desceu do trem. Senti o reflexo de uma solidão metálica refletida naquele imenso bloco de vagões quase vazios.

 

Uma placa de madeira meio gasta pelo tempo escrevia, em letras maiúsculas, o nome do vilarejo “Dong Xuan”. Li aquela palavra várias vezes pra me certificar . Sim, era ali que eu queria chegar. 

 

 Subi as escadas.

 

A pequena estação ferroviária, iluminada por uma luz morre-não-morre, parecia deserta. Apenas o  tic-tac cansado de um relógio de parede intercalado ao som pesado dos pés  de um idoso que se arrastava e recolhia o lixo acumulado. 

 

Puxei conversa, mas fui ignorado. Repeti as perguntas e nada. Não sei se o homem era surdo ou indiferente…Tive vontade de gritar bem alto. Pensei melhor e não insisti. Eu não queria ser notado por extravasar minha  falta de paciência.

 

Procurei um sanitário; precisava de água fria pra lavar o rosto sonolento. A porta  estava trancada e não obedeceu aos meus impulsos violentos.

 

 Senti fome e saí andando…Alguns palavrões escaparam da minha garganta.

 

Era um vilarejo com ruas estreitas e pavimentadas com paralelepípedos que cheiravam à maresia enlutada.  Era como se ali próximo, num pedaço de mar, restassem destroços de barcos e afogados; mortos  que a saudade daquele povo ainda cultuava. A maioria das casas, de tão humildes,  pareciam caranguejos se acotovelando. 

 

Caminhei bastante e não vi ninguém, nenhum carro. Só um cachorro magro revirando latas de lixo.  Minha boca estava seca e meus pés doíam dentro de um sapato de couro falsificado. Até minha mochila que trazia apenas um tênis e uma muda de roupa ficou pesada.  Senti frio, me sentei nos degraus de uma igrejinha e fumei dois cigarros.  Quarenta minutos se passaram até que um rapaz sem camisa e de braços fortes apareceu  de  bicicleta, no final da rua. Por sorte, conseguimos nos entender no seu “Inglês-vietanita” e ele  me levou até o único albergue do local. 

 

Entrei com cautela.

 

Finalmente encontrei gente reunida  e senti  o olhar curioso de todos voltado pra mim. Afinal, eu era um estranho naquele ninho. Não me intimidei e me aproximei do balcão do bar.  Queria me familiarizar com o ambiente e não ser rejeitado.

 

Bêbados, acompanhados por um violão, cantavam bem afinados. Um velho sem dentes conversava, animadamente, com uma jovem estrangeira de cabelos loiros que chegavam até a cintura. Um grupo de pescadores exagerava nas histórias de peixes tão grandes que não cabiam na embarcação, peixe que quase engoliu um amigo, peixe que voou de volta pro mar. O mais velho de todos, que tinha fascínio por jacaré-açu, jurou que, nas suas andanças de pescador, encontrara um que sabia assobiar nos modos gregos. Acho que era um torneio pra descobrir o mais mentiroso da turma.

 

Até a cozinheira tentava me impressionar, contando sua história e os horrores que o pirata  Zheng Yi  fizera com seus bisavós e o Padre  Văn Thuận, que se hospedava na igreja, matou-o com um tiro certeiro soprado no coração.

 

Sem que ninguém percebesse, tirei uma caderneta do bolso, mostrei algumas anotações a ela e cochichei: “Leia apenas com os olhos". À medida que lia, ela balançava positivamente a cabeça e eu, ansioso, acompanhava sua leitura. Acho que o inglês é a segunda língua falada naquele país e eu consegui dela todos os detalhes de que precisava. Um punhado de “Dong”  em suas mãos arrancou-lhe o sorriso mais agradecido que eu já vi.

 

Quando um bêbado, que já tinha tomado todas, aproximou-se do balcão, aproveitei pra me afastar e comer uma sopa rala com pão e uma fatia gorda de queijo. Duas taças de “Rượu gạo”, um vinho de arroz, foram suficientes pra me derrubar. 

 

Hora de me recolher.  

 

Me surpreendi com o quarto, era simples e bem cuidado. Os lençóis de tão brancos pareciam azuis, feitos de um tecido tão macio que até me acarinhavam. Eu já tinha esquecido de como era gostoso sentir a delicadeza do carinho.

 

Era meia-noite quando me joguei na cama.  Respirei fundo.  E aliviado. Até aquele momento tudo corria conforme meus planos.  Eu tinha apenas duas horas pra rever meus próximos passos e descansar esse corpo que tinha viajado quinze horas seguidas.

 

Todo esse pesadelo começou há mais de três anos. Quanto dinheiro já gastei com detetives? Não sei.   Só sei que minhas dívidas só cresciam com os empréstimos bancários. Como pagar? Preocupação para o futuro. 

 

Eu não me reconhecia mais. Bebia todos os dias. Olhava-me no espelho e perguntava: “Quem é esse homem desleixado, tão feio?  De onde brotou tanto sofrimento, tanto ódio”? Tinha dias seguidos que a raiva era o único sentimento honesto que me restava. Me afastei de todos. A minha solidão era uma farpa na carne a me consumir.  Eu não sabia o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não sabia como frear minhas lágrimas, não sabia como vencer a dor de um silêncio que nada preenchia, eu não sabia como encontrar saída aos meus pensamentos suicidas.

 

Até que um dia tive um sonho esquisito e acordei um pouco mais lúcido: vi duas saídas: procurar ajuda psiquiatra e tocar a vida pra frente na tentativa de encontrar a paz. Ou viajar para o Vietnã. E, ao final daquele dia, a resposta me apareceu clara e tomei a decisão: “Vou ao Vietnã.

 

Passei dias pesquisando no Google”. Fiz meu roteiro, calculei minhas despesas e cheguei neste fim do mundo chamado “Dong Xuan”.

O relógio me expulsou da cama na hora que combinamos.

Lá fora, a madrugada estava fria e o vento gelado cortava a pele, arrastando folhas secas pela calçada. O silêncio da rua era opressor, como se o mundo estivesse segurando a respiração. A rua escura, iluminada apenas por um lampião tremeluzente, parecia um cenário perfeito. Eu era apenas um vulto que se movia silenciosamente, os passos de um gato, quase inaudíveis. Andei por vários quarteirões, ruas que subiam e desciam. Já ofegante e cansado, encontrei a porta de madeira nada resistente, marcada com o número noventa e nove.  Tateei a maçaneta com cuidado e girei-a com toda força dos meus punhos. A porta se abriu. 

 

Entrei na casa.  Não posso negar que meu coração batia descompassado. A escuridão era quase total e afirmo que eu me sentia poderoso como um animal predador em seu habitat.  Os cômodos eram poucos e pequenos. Cheguei ao único quarto, a porta entreaberta revelou a figura adormecida na cama. Tirei o punhal do bolso e a lâmina   brilhou, refletindo a pouca luz que entrava pela janela sem cortinas.

 

O corpo deitado respirava pausadamente indiferente ao meu sofrimento. Nessa hora, assisti ao filme dos meus últimos três anos de vida amaldiçoada. A necessidade de completar a tarefa se fortaleceu mais e mais.

Aproximei-me da cama. A lâmina do punhal  rasgou o tecido da roupa e penetrou o coração da vítima. O som de uma vida sendo interrompida ecoou pelo quarto, mas logo foi abafado pelo som do vento lá fora. Abandonei o corpo sem vida no quarto que não viu nem ouviu. Saí daquela casa sem olhar para trás, deixando a escuridão e o silêncio guardarem o segredo de meu crime. 

 

Foi o que eu pensei…

 

Vós que me ledes, estais ainda entre os vivos, mas eu, que escrevo, parti há muito para o mundo das sombras. Na verdade, estranhas coisas aconteceram, coisas secretas serão reveladas e muito tempo decorrerá antes que essas notas sejam lidas pelos homens. E quando eles as tiverem lido, uns não acreditarão, outros porão as suas dúvidas e muito poucos entre eles encontrarão fecundas meditações nos caracteres que eu escrevo como se a caneta fosse um estilete de ferro singrando em tabuinhas de madeira.





 

 

 

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