O Tempo que nos Resta
Hirtis Lazarin
Joaquim não se levantou para o café da
manhã como fazia religiosamente todos os dias, às seis horas da manhã. 
— Pai, não precisa levantar tão cedo! Repetia
a filha, Benê, com paciência nenhuma. Ela não entendia que esse hábito foi
incorporado àquele corpo durante trinta anos de trabalho e repetido todos os
dias. Ainda bem que a surdez de Seu Joaquim não o deixava ouvir com clareza
todas as reclamações. 
A tarde era de verão e o sol, de tão
intenso, amoleceu o asfalto da rua. Maria faxinava a casa e o idoso, pra não
atrapalhar a movimentação lá dentro, foi levado ao jardim numa cadeira de
braços desprovida de qualquer vestígio de conforto — uma capa de plástico
cobria a palhinha dura e áspera — e, apesar da alta temperatura, uma manta
xadrez cobria-lhe o joelho. A cabeça caída no peito e um fio de baba escorria
da boca. 
Ali isolado, só lhe restava o lirismo e
a poesia da natureza: o perfume do jasmim, as flores amarelas da giesta e as
folhinhas do chorão faiscando — verde, verde! Ainda bem que a sensibilidade e o
gosto pelo belo e colorido permaneciam imutáveis.
Vontade de viver? Não, não lhe sobrou
nada. A esposa, companheira maravilhosa, já se fora após anos de sofrimento.
Berê, a única filha, sempre sem paciência e irritada, dirigia poucas palavras
ao pai. O neto, um adolescente chato que só sabia reclamar do suco que estava
muito doce; peixe, ele não gostava; tênis novo, roupa nova… Não raramente,
passava a semana inteira sem ver o avô. 
Ler um livro, assistir a um filme, nem
pensar. Após o derrame, os olhos vermelhos e embaçados deformaram as letras, as
imagens…
A dor da solidão é imensurável. É maior
que morder a língua, bater a cabeça na quina da mesa, pedra no rim. Ela chega
impiedosa quando nos conscientizamos de que os pedaços bons da vida foram
ficando pelo caminho. Aparecem em flashes, migalhas de satisfação passageira. A
mesa cheia de gente e comida boa,  aniversários com estouro de bexigas
coloridas e muitos parabéns, o choro da menina inconformada com o presente que
não queria, o pneu furado e as horas perdidas na estrada compensadas pelo banho
de mar.
Sentir o perfume da esposa era, para
Seu Joaquim, um abraço apertado de muito amor, conforto e prazer.  
Raramente, ele se olhava no espelho.
Não se conformava com o estrago que o tempo lhe causou. Outrora, um homem
ousado e cativante. Sempre elegante nos ternos de cores sóbrias e corte
impecável. A coleção de gravatas era de causar inveja.  A cabeleira vasta
e esvoaçante virou meia dúzia de fios brancos. E o mais deprimente era aquela
caspa na sobrancelha grossa e desgrenhada que o fazia sentir-se uma barata
leprosa.
Na sombra das folhas, ele adormece…
De repente, acorda com gritos: 
— Eu recolho a roupa e você,
Maria,  fecha as janelas. Já prendeu o Thor, Ricardinho? 
Rebenta com fúria um temporal. Foi
rápido, mas intenso, com ventos e sequência de trovões.
Aos trancos, Joaquim ergue o rosto, a chuva
escorre na boca torta e o olho vermelho revira em agonia. É uma coisa esquecida
na confusão de recolher a roupa e fechar as janelas.
Joaquim vale menos que as roupas, menos
que o cachorro? 
O quarto do Seu Joaquim está
vazio. 
Um caminhão estacionado à frente da
casa transporta mobílias para doação.
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