É pra Dong Xuan que eu fui
Hirtis Lazarin
Finalmente
cheguei ao meu destino.
Até onde
minha vista conseguia enxergar em meio ao denso nevoeiro, eu era o único
passageiro que desceu do trem. Senti o reflexo de uma solidão metálica
refletida naquele imenso bloco de vagões quase vazios.
Uma placa de
madeira meio gasta pelo tempo escrevia, em letras maiúsculas, o nome do
vilarejo “Dong Xuan”. Li aquela palavra várias vezes pra me
certificar . Sim, era ali que eu queria chegar.
Subi
as escadas.
A pequena
estação ferroviária, iluminada por uma luz morre-não-morre, parecia deserta.
Apenas o tic-tac cansado de um relógio de parede intercalado ao som
pesado dos pés de um idoso que se arrastava e recolhia o lixo
acumulado.
Puxei
conversa, mas fui ignorado. Repeti as perguntas e nada. Não sei se o homem era
surdo ou indiferente…Tive vontade de gritar bem alto. Pensei melhor e não
insisti. Eu não queria ser notado por extravasar minha falta de
paciência.
Procurei um
sanitário; precisava de água fria pra lavar o rosto sonolento. A porta
estava trancada e não obedeceu aos meus impulsos violentos.
Senti
fome e saí andando…Alguns palavrões escaparam da minha garganta.
Era um
vilarejo com ruas estreitas e pavimentadas com paralelepípedos que cheiravam à
maresia enlutada. Era como se ali próximo, num pedaço de mar, restassem
destroços de barcos e afogados; mortos que a saudade daquele povo ainda
cultuava. A maioria das casas, de tão humildes, pareciam caranguejos se
acotovelando.
Caminhei
bastante e não vi ninguém, nenhum carro. Só um cachorro magro revirando latas
de lixo. Minha boca estava seca e meus pés doíam dentro de um sapato de
couro falsificado. Até minha mochila que trazia apenas um tênis e uma muda de
roupa ficou pesada. Senti frio, me sentei nos degraus de uma igrejinha e
fumei dois cigarros. Quarenta minutos se passaram até que um rapaz sem
camisa e de braços fortes apareceu de bicicleta, no final da rua.
Por sorte, conseguimos nos entender no seu “Inglês-vietanita” e ele me
levou até o único albergue do local.
Entrei com
cautela.
Finalmente
encontrei gente reunida e senti o olhar curioso de todos voltado
pra mim. Afinal, eu era um estranho naquele ninho. Não me intimidei e me
aproximei do balcão do bar. Queria me familiarizar com o ambiente e não
ser rejeitado.
Bêbados,
acompanhados por um violão, cantavam bem afinados. Um velho sem dentes
conversava, animadamente, com uma jovem estrangeira de cabelos loiros que
chegavam até a cintura. Um grupo de pescadores exagerava nas histórias de
peixes tão grandes que não cabiam na embarcação, peixe que quase engoliu um
amigo, peixe que voou de volta pro mar. O mais velho de todos, que tinha
fascínio por jacaré-açu, jurou que, nas suas andanças de pescador, encontrara
um que sabia assobiar nos modos gregos. Acho que era um torneio pra
descobrir o mais mentiroso da turma.
Até a
cozinheira tentava me impressionar, contando sua história e os horrores que o
pirata Zheng Yi fizera com seus bisavós e o Padre Văn Thuận, que se hospedava na
igreja, matou-o com um tiro certeiro soprado no coração.
Sem que ninguém percebesse, tirei uma caderneta do bolso, mostrei
algumas anotações a ela e cochichei: “Leia apenas com os olhos". À medida
que lia, ela balançava positivamente a cabeça e eu, ansioso, acompanhava sua
leitura. Acho que o inglês é a segunda língua falada naquele país e eu consegui
dela todos os detalhes de que precisava. Um punhado de “Dong” em suas mãos
arrancou-lhe o sorriso mais agradecido que eu já vi.
Quando um bêbado, que já tinha tomado todas, aproximou-se do balcão,
aproveitei pra me afastar e comer uma sopa rala com pão e uma fatia gorda
de queijo. Duas taças de “Rượu gạo”, um vinho de arroz, foram suficientes pra me derrubar.
Hora de me recolher.
Me
surpreendi com o quarto, era simples e bem cuidado. Os lençóis de tão
brancos pareciam azuis, feitos de um tecido tão macio que até me
acarinhavam. Eu já tinha esquecido de como era gostoso sentir a
delicadeza do carinho.
Era
meia-noite quando me joguei na cama. Respirei fundo. E aliviado.
Até aquele momento tudo corria conforme meus planos. Eu tinha apenas duas
horas pra rever meus próximos passos e descansar esse corpo que tinha
viajado quinze horas seguidas.
Todo esse
pesadelo começou há mais de três anos. Quanto dinheiro já gastei com
detetives? Não sei. Só sei que minhas dívidas só cresciam com os
empréstimos bancários. Como pagar? Preocupação para o futuro.
Eu não
me reconhecia mais. Bebia todos os dias. Olhava-me no espelho e perguntava:
“Quem é esse homem desleixado, tão feio? De onde brotou tanto sofrimento,
tanto ódio”? Tinha dias seguidos que a raiva era o único sentimento honesto que
me restava. Me afastei de todos. A minha solidão era uma farpa na carne a
me consumir. Eu não sabia o que fazer com os dias que ficaram mais
compridos, não sabia como frear minhas lágrimas, não sabia como vencer a dor de
um silêncio que nada preenchia, eu não sabia como encontrar saída aos meus pensamentos
suicidas.
Até que um
dia tive um sonho esquisito e acordei um pouco mais lúcido: vi duas
saídas: procurar ajuda psiquiatra e tocar a vida pra frente na tentativa de
encontrar a paz. Ou viajar para o Vietnã. E, ao final daquele dia, a resposta
me apareceu clara e tomei a decisão: “Vou ao Vietnã.
Passei dias
pesquisando no Google”. Fiz meu roteiro, calculei minhas despesas e cheguei
neste fim do mundo chamado “Dong Xuan”.
O relógio me expulsou da cama na hora
que combinamos.
Lá fora, a
madrugada estava fria e o vento gelado cortava a pele, arrastando folhas secas
pela calçada. O silêncio da rua era opressor, como se o mundo estivesse
segurando a respiração. A rua escura, iluminada apenas por um lampião
tremeluzente, parecia um cenário perfeito. Eu era apenas um vulto que se movia
silenciosamente, os passos de um gato, quase inaudíveis. Andei por vários
quarteirões, ruas que subiam e desciam. Já ofegante e cansado, encontrei a
porta de madeira nada resistente, marcada com o número noventa e nove.
Tateei a maçaneta com cuidado e girei-a com toda força dos meus punhos. A porta
se abriu.
Entrei na
casa. Não posso negar que meu coração batia descompassado. A escuridão
era quase total e afirmo que eu me sentia poderoso como um animal predador
em seu habitat. Os cômodos eram poucos e pequenos. Cheguei ao único
quarto, a porta entreaberta revelou a figura adormecida na cama. Tirei o
punhal do bolso e a lâmina brilhou, refletindo a pouca luz que
entrava pela janela sem cortinas.
O corpo
deitado respirava pausadamente indiferente ao meu sofrimento. Nessa hora,
assisti ao filme dos meus últimos três anos de vida amaldiçoada. A necessidade
de completar a tarefa se fortaleceu mais e mais.
Aproximei-me
da cama. A lâmina do punhal rasgou o tecido da roupa e penetrou o coração
da vítima. O som de uma vida sendo interrompida ecoou pelo quarto, mas logo foi
abafado pelo som do vento lá fora. Abandonei o corpo sem vida no quarto que não
viu nem ouviu. Saí daquela casa sem olhar para trás, deixando a escuridão e o
silêncio guardarem o segredo de meu crime.
Foi o que eu
pensei…
Vós que me
ledes, estais ainda entre os vivos, mas eu, que escrevo, parti há muito para o
mundo das sombras. Na verdade, estranhas coisas aconteceram, coisas secretas
serão reveladas e muito tempo decorrerá antes que essas notas sejam lidas pelos
homens. E quando eles as tiverem lido, uns não acreditarão, outros porão as
suas dúvidas e muito poucos entre eles encontrarão fecundas meditações nos
caracteres que eu escrevo como se a caneta fosse um estilete de ferro singrando
em tabuinhas de madeira.
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