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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

É pra Dong Xuan que eu fui - Hirtis Lazarin

 



É pra Dong Xuan que eu fui

Hirtis Lazarin

                                                 

Finalmente cheguei ao meu destino. 

 

Até onde minha vista conseguia enxergar em meio ao denso nevoeiro, eu era o único passageiro que desceu do trem. Senti o reflexo de uma solidão metálica refletida naquele imenso bloco de vagões quase vazios.

 

Uma placa de madeira meio gasta pelo tempo escrevia, em letras maiúsculas, o nome do vilarejo “Dong Xuan”. Li aquela palavra várias vezes pra me certificar . Sim, era ali que eu queria chegar. 

 

 Subi as escadas.

 

A pequena estação ferroviária, iluminada por uma luz morre-não-morre, parecia deserta. Apenas o  tic-tac cansado de um relógio de parede intercalado ao som pesado dos pés  de um idoso que se arrastava e recolhia o lixo acumulado. 

 

Puxei conversa, mas fui ignorado. Repeti as perguntas e nada. Não sei se o homem era surdo ou indiferente…Tive vontade de gritar bem alto. Pensei melhor e não insisti. Eu não queria ser notado por extravasar minha  falta de paciência.

 

Procurei um sanitário; precisava de água fria pra lavar o rosto sonolento. A porta  estava trancada e não obedeceu aos meus impulsos violentos.

 

 Senti fome e saí andando…Alguns palavrões escaparam da minha garganta.

 

Era um vilarejo com ruas estreitas e pavimentadas com paralelepípedos que cheiravam à maresia enlutada.  Era como se ali próximo, num pedaço de mar, restassem destroços de barcos e afogados; mortos  que a saudade daquele povo ainda cultuava. A maioria das casas, de tão humildes,  pareciam caranguejos se acotovelando. 

 

Caminhei bastante e não vi ninguém, nenhum carro. Só um cachorro magro revirando latas de lixo.  Minha boca estava seca e meus pés doíam dentro de um sapato de couro falsificado. Até minha mochila que trazia apenas um tênis e uma muda de roupa ficou pesada.  Senti frio, me sentei nos degraus de uma igrejinha e fumei dois cigarros.  Quarenta minutos se passaram até que um rapaz sem camisa e de braços fortes apareceu  de  bicicleta, no final da rua. Por sorte, conseguimos nos entender no seu “Inglês-vietanita” e ele  me levou até o único albergue do local. 

 

Entrei com cautela.

 

Finalmente encontrei gente reunida  e senti  o olhar curioso de todos voltado pra mim. Afinal, eu era um estranho naquele ninho. Não me intimidei e me aproximei do balcão do bar.  Queria me familiarizar com o ambiente e não ser rejeitado.

 

Bêbados, acompanhados por um violão, cantavam bem afinados. Um velho sem dentes conversava, animadamente, com uma jovem estrangeira de cabelos loiros que chegavam até a cintura. Um grupo de pescadores exagerava nas histórias de peixes tão grandes que não cabiam na embarcação, peixe que quase engoliu um amigo, peixe que voou de volta pro mar. O mais velho de todos, que tinha fascínio por jacaré-açu, jurou que, nas suas andanças de pescador, encontrara um que sabia assobiar nos modos gregos. Acho que era um torneio pra descobrir o mais mentiroso da turma.

 

Até a cozinheira tentava me impressionar, contando sua história e os horrores que o pirata  Zheng Yi  fizera com seus bisavós e o Padre  Văn Thuận, que se hospedava na igreja, matou-o com um tiro certeiro soprado no coração.

 

Sem que ninguém percebesse, tirei uma caderneta do bolso, mostrei algumas anotações a ela e cochichei: “Leia apenas com os olhos". À medida que lia, ela balançava positivamente a cabeça e eu, ansioso, acompanhava sua leitura. Acho que o inglês é a segunda língua falada naquele país e eu consegui dela todos os detalhes de que precisava. Um punhado de “Dong”  em suas mãos arrancou-lhe o sorriso mais agradecido que eu já vi.

 

Quando um bêbado, que já tinha tomado todas, aproximou-se do balcão, aproveitei pra me afastar e comer uma sopa rala com pão e uma fatia gorda de queijo. Duas taças de “Rượu gạo”, um vinho de arroz, foram suficientes pra me derrubar. 

 

Hora de me recolher.  

 

Me surpreendi com o quarto, era simples e bem cuidado. Os lençóis de tão brancos pareciam azuis, feitos de um tecido tão macio que até me acarinhavam. Eu já tinha esquecido de como era gostoso sentir a delicadeza do carinho.

 

Era meia-noite quando me joguei na cama.  Respirei fundo.  E aliviado. Até aquele momento tudo corria conforme meus planos.  Eu tinha apenas duas horas pra rever meus próximos passos e descansar esse corpo que tinha viajado quinze horas seguidas.

 

Todo esse pesadelo começou há mais de três anos. Quanto dinheiro já gastei com detetives? Não sei.   Só sei que minhas dívidas só cresciam com os empréstimos bancários. Como pagar? Preocupação para o futuro. 

 

Eu não me reconhecia mais. Bebia todos os dias. Olhava-me no espelho e perguntava: “Quem é esse homem desleixado, tão feio?  De onde brotou tanto sofrimento, tanto ódio”? Tinha dias seguidos que a raiva era o único sentimento honesto que me restava. Me afastei de todos. A minha solidão era uma farpa na carne a me consumir.  Eu não sabia o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não sabia como frear minhas lágrimas, não sabia como vencer a dor de um silêncio que nada preenchia, eu não sabia como encontrar saída aos meus pensamentos suicidas.

 

Até que um dia tive um sonho esquisito e acordei um pouco mais lúcido: vi duas saídas: procurar ajuda psiquiatra e tocar a vida pra frente na tentativa de encontrar a paz. Ou viajar para o Vietnã. E, ao final daquele dia, a resposta me apareceu clara e tomei a decisão: “Vou ao Vietnã.

 

Passei dias pesquisando no Google”. Fiz meu roteiro, calculei minhas despesas e cheguei neste fim do mundo chamado “Dong Xuan”.

O relógio me expulsou da cama na hora que combinamos.

Lá fora, a madrugada estava fria e o vento gelado cortava a pele, arrastando folhas secas pela calçada. O silêncio da rua era opressor, como se o mundo estivesse segurando a respiração. A rua escura, iluminada apenas por um lampião tremeluzente, parecia um cenário perfeito. Eu era apenas um vulto que se movia silenciosamente, os passos de um gato, quase inaudíveis. Andei por vários quarteirões, ruas que subiam e desciam. Já ofegante e cansado, encontrei a porta de madeira nada resistente, marcada com o número noventa e nove.  Tateei a maçaneta com cuidado e girei-a com toda força dos meus punhos. A porta se abriu. 

 

Entrei na casa.  Não posso negar que meu coração batia descompassado. A escuridão era quase total e afirmo que eu me sentia poderoso como um animal predador em seu habitat.  Os cômodos eram poucos e pequenos. Cheguei ao único quarto, a porta entreaberta revelou a figura adormecida na cama. Tirei o punhal do bolso e a lâmina   brilhou, refletindo a pouca luz que entrava pela janela sem cortinas.

 

O corpo deitado respirava pausadamente indiferente ao meu sofrimento. Nessa hora, assisti ao filme dos meus últimos três anos de vida amaldiçoada. A necessidade de completar a tarefa se fortaleceu mais e mais.

Aproximei-me da cama. A lâmina do punhal  rasgou o tecido da roupa e penetrou o coração da vítima. O som de uma vida sendo interrompida ecoou pelo quarto, mas logo foi abafado pelo som do vento lá fora. Abandonei o corpo sem vida no quarto que não viu nem ouviu. Saí daquela casa sem olhar para trás, deixando a escuridão e o silêncio guardarem o segredo de meu crime. 

 

Foi o que eu pensei…

 

Vós que me ledes, estais ainda entre os vivos, mas eu, que escrevo, parti há muito para o mundo das sombras. Na verdade, estranhas coisas aconteceram, coisas secretas serão reveladas e muito tempo decorrerá antes que essas notas sejam lidas pelos homens. E quando eles as tiverem lido, uns não acreditarão, outros porão as suas dúvidas e muito poucos entre eles encontrarão fecundas meditações nos caracteres que eu escrevo como se a caneta fosse um estilete de ferro singrando em tabuinhas de madeira.





 

 

 

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