DANÇA
PEDRO HENRIQUE
É curioso observar a capacidade da dor de nos guiar
ou influenciar nossas ações, como uma espécie de magia que tem um poder
grandioso sobre nossos ombros e que rogamos veementemente aos céus para
desaparecer. Porém, ela sempre se recusa a dar adeus.
A dor é assim,
é essa coisa que desde cedo está posta em nosso pescoço e, quando puxada,
sufoca-nos, levando não só a respiração, mas o estômago, a boca, o afeto…
Haverá de dar
um jeito, porque a corda nunca sai de nossos pescoços; ela pode até afrouxar em
certos momentos, mas sempre permanecerá lá. Lembrando-nos dela toda vez que
pomos nossas cabeças no travesseiro ou quando nos levantamos dele.
Lembro dela, lembro todo dia, lembro desde quando
foi posta em mim. Não ache tu, ó, leitor, que não experimentei o sabor azedo
dos sentimentos hostis.
Todavia, lembro da dor da estranha. Ah, coitada.
Recordo-me como se fosse ontem do dia em que ele entrou bêbado na sala e lhe
revelara não o afago, mas o cair da árvore, o quebrar os ossos, o ir ao poço e
ser empurrada ao abismo.
A estranha
teve de se virar, pois, apesar da dor, tinha de alimentar-se e, sem saber como,
continuar. Agradecia sempre quando encontrava o pão de cada dia, ainda que
viesse já mordido.
Tinha vezes
que achava mais que pão, achava laranja, bife, frango, certa feita achou uma
pizza, estava estragada, claro, contudo sua fome não sentia cheiro nem sabor.
Sendo assim, a
estranha comia, comia com repulsa e lamento, mas comia. Quando a comida era
ruim demais, pulava no imaginário e visualizava-se em um dos restaurantes mais
caros da cidade, provando os pratos mais sofisticados que há e se sentia humana
outra vez.
Tinha vezes que pensava estar provando alcatra, filé, fraldinha, entre outras; então fechava os olhos e podia sentir o cheiro vivo da carne e dizia a si mesma:
— Isso é o que eu mereço.
Pena que o que
tinha de verdade era uma pizza podre. E, quando sua mente, no ato do
imaginário, dava-se conta do real, chorava. Chorava porque o que se pode fazer,
a não ser chorar? O que podia querer da vida a não ser a lágrima?
Havia noites em que se deitava e a filha decidia
verter água pelos olhos e, não sabendo como acalmá-la, cantava. Cantava como
fazia desde pequena. Talvez essa fosse a única coisa que tinha de louvável: o
canto. E bastava a filha soar o grito no momento de apagar os olhos que ela
começava:
“Se essa rua
Se essa rua fosse minha;
Eu mandava
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas.
Com pedrinhas de brilhantes.
Para o meu
Para
o meu amor passar.
Nessa rua,
Nessa rua tem um bosque.
Que se chama
Que se chama solidão.
Dentro dele,
Dentro dele mora um anjo.
Que roubou.
Que
roubou meu coração.”
Quando terminava, dormia a bebê e ela, que ao cantar
empreendia-se um pouco de dignidade. E dignidade a vida lhe entregava em
esporádicas ocasiões. Uma, por exemplo, ocorreu quando estava à procura de
alimento e, antes de achá-lo, encontrou um vestido vermelho sujo e surrado,
todavia sedutor.
Colocou-o, fez um rabo de cavalo e passou um pouco de
pintura no rosto, não era lá grande coisa, mas dava-lhe luz de uma beleza que
nunca tivera e que nunca terá.
Naquele mesmo
dia, com a criança pequena no colo, foi até um botequim que vez ou outra ia
para dar um fim na gravura ácida e incômoda de ser o capacho dos homens e da
vida.
Colocou na
máquina de música seu forró preferido, pegou a filha nos braços e dançou como
se não houvesse amanhã.
Dava aos seus pés o comando de não parar até se
esquecer das pizzas podres, das brigas com seu filho, da faca, do soco, dele
bêbado em cima dela. Da criança em seu colo com o rosto dele, da gasolina que
ele jogava em sua casa com ela dentro, da chama consumindo tudo, dele indo
preso e ela para o hospital.
Só ambicionava
dançar, nada mais, nada menos.
E, quando a
música não era o suficiente, bebia; e, quando a bebida não dava conta, fumava;
e, quando fumar não lhe saciava, dançava outra vez. Se fosse preciso, passaria
a noite ali; só não poderia parar de dançar.
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