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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

DANÇA - PEDRO HENRIQUE

 

 


DANÇA

PEDRO HENRIQUE

 

É curioso observar a capacidade da dor de nos guiar ou influenciar nossas ações, como uma espécie de magia que tem um poder grandioso sobre nossos ombros e que rogamos veementemente aos céus para desaparecer. Porém, ela sempre se recusa a dar adeus.

     A dor é assim, é essa coisa que desde cedo está posta em nosso pescoço e, quando puxada, sufoca-nos, levando não só a respiração, mas o estômago, a boca, o afeto…

     Haverá de dar um jeito, porque a corda nunca sai de nossos pescoços; ela pode até afrouxar em certos momentos, mas sempre permanecerá lá. Lembrando-nos dela toda vez que pomos nossas cabeças no travesseiro ou quando nos levantamos dele.

Lembro dela, lembro todo dia, lembro desde quando foi posta em mim. Não ache tu, ó, leitor, que não experimentei o sabor azedo dos sentimentos hostis.

Todavia, lembro da dor da estranha. Ah, coitada. Recordo-me como se fosse ontem do dia em que ele entrou bêbado na sala e lhe revelara não o afago, mas o cair da árvore, o quebrar os ossos, o ir ao poço e ser empurrada ao abismo.

     A estranha teve de se virar, pois, apesar da dor, tinha de alimentar-se e, sem saber como, continuar. Agradecia sempre quando encontrava o pão de cada dia, ainda que viesse já mordido.

     Tinha vezes que achava mais que pão, achava laranja, bife, frango, certa feita achou uma pizza, estava estragada, claro, contudo sua fome não sentia cheiro nem sabor.

     Sendo assim, a estranha comia, comia com repulsa e lamento, mas comia. Quando a comida era ruim demais, pulava no imaginário e visualizava-se em um dos restaurantes mais caros da cidade, provando os pratos mais sofisticados que há e se sentia humana outra vez.

     Tinha vezes que pensava estar provando alcatra, filé, fraldinha, entre outras; então fechava os olhos e podia sentir o cheiro vivo da carne e dizia a si mesma:

— Isso é o que eu mereço.

 Pena que o que tinha de verdade era uma pizza podre. E, quando sua mente, no ato do imaginário, dava-se conta do real, chorava. Chorava porque o que se pode fazer, a não ser chorar? O que podia querer da vida a não ser a lágrima?

Havia noites em que se deitava e a filha decidia verter água pelos olhos e, não sabendo como acalmá-la, cantava. Cantava como fazia desde pequena. Talvez essa fosse a única coisa que tinha de louvável: o canto. E bastava a filha soar o grito no momento de apagar os olhos que ela começava:

 

“Se essa rua

Se essa rua fosse minha;

Eu mandava

Eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas.

Com pedrinhas de brilhantes.

Para o meu

Para o meu amor passar.

 

Nessa rua,

Nessa rua tem um bosque.

Que se chama

Que se chama solidão.

Dentro dele,

Dentro dele mora um anjo.

Que roubou.

Que roubou meu coração.”

 

Quando terminava, dormia a bebê e ela, que ao cantar empreendia-se um pouco de dignidade. E dignidade a vida lhe entregava em esporádicas ocasiões. Uma, por exemplo, ocorreu quando estava à procura de alimento e, antes de achá-lo, encontrou um vestido vermelho sujo e surrado, todavia sedutor.

Colocou-o, fez um rabo de cavalo e passou um pouco de pintura no rosto, não era lá grande coisa, mas dava-lhe luz de uma beleza que nunca tivera e que nunca terá.

     Naquele mesmo dia, com a criança pequena no colo, foi até um botequim que vez ou outra ia para dar um fim na gravura ácida e incômoda de ser o capacho dos homens e da vida.

     Colocou na máquina de música seu forró preferido, pegou a filha nos braços e dançou como se não houvesse amanhã.

Dava aos seus pés o comando de não parar até se esquecer das pizzas podres, das brigas com seu filho, da faca, do soco, dele bêbado em cima dela. Da criança em seu colo com o rosto dele, da gasolina que ele jogava em sua casa com ela dentro, da chama consumindo tudo, dele indo preso e ela para o hospital.

     Só ambicionava dançar, nada mais, nada menos.

     E, quando a música não era o suficiente, bebia; e, quando a bebida não dava conta, fumava; e, quando fumar não lhe saciava, dançava outra vez. Se fosse preciso, passaria a noite ali; só não poderia parar de dançar.

 

 

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