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quarta-feira, 27 de abril de 2022

O Olhar - Adelaide Dittmers

 


O Olhar

Adelaide Dittmers


Os veleiros pintavam o mar de diversas cores.  A espuma branca das ondas batia com força nos cascos. As velas cuidadosamente dispostas a favor do vento.  O mar vestia-se de um verde claro e transparente, que deixava vislumbrar no seu interior cardumes diversos.

Osvaldo conduzia a embarcação com maestria.  Forte, pele bronzeada, bonito, era admirado pelas mulheres e invejado pelos amigos.  Destacava-se em tudo o que fazia. Publicitário de sucesso colheu vários prêmios na profissão.  Sempre guiado pela razão, ponderava sobre cada passo dado para alcançar seus objetivos.

Com segurança, Oswaldo navegava em direção ao ponto de chegada.  Mais uma vez ganharia a regata.

No barco, outro rapaz o ajudava nas manobras com eficiência e atenção.  Celso, irmão de Osvaldo, era o companheiro no iatismo, esporte que adorava.  Amava o mar, sentir o vento e o balançar do barco, provocado pela dança das ondas. Sério, introvertido, tímido, o oposto do irmão.  Preferia ficar na sombra, ao contrário do irmão, que adorava ser admirado e bajulado.   A diferença entre os dois era marcante.  Um era o sol, o outro, a lua. Um iluminava tudo à sua volta, o outro refletia essa luz.  Um era a razão, o outro a emoção. Tinham visões de vida muito diferentes e, apesar do respeito que Celso tinha pelo irmão, a única coisa, que os aproximava, era a paixão pelo esporte.

Celso formara-se em filosofia o que o levava a observar e questionar a natureza humana, as fraquezas e contradições dos homens.  Seu objetivo, nas regatas de que participava, não era apenas ganhar, mas desfrutar do desafio, enquanto Osvaldo adorava ganhar os louros da vitória e ser admirado pelas conquistas.

O veleiro foi se aproximando rapidamente da linha de chegada e aplausos estouraram, quando a atingiu.  Mais uma vitória! Foram cercados pelas pessoas e Osvaldo sorrindo apertava com um prazer intenso a mão de seus admiradores.  Celso, ao contrário, conseguiu esgueirar-se e foi se afastando.

Mais adiante, uma bela jovem veio ao seu encontro e o abraçou carinhosamente, cumprimentando-o pela vitória.  Ele retribuiu com um sorriso tímido.  Era a namorada do irmão.  Conversavam animadamente, quando Osvaldo chegou, abraçou e beijou Marta.  No entanto, ela desviou o olhar para Celso, que viu nos olhos da moça algo diferente, que o fez estremecer por inteiro. O que significaria aquele olhar? O irmão estava com ela há dois anos, mas ultimamente notava que ela estava mais distante de Osvaldo.  Muitas vezes desviava-se dos carinhos do namorado com um sorriso forçado.  E agora aquele olhar intenso e angustiado, que lhe lançou.

Ele foi se afastando devagar.  De repente, notou que uma raiva súbita lhe subiu pela garganta. Admirava o irmão, mas ao mesmo tempo não apreciava a necessidade de ele aparecer. No âmago de seu ser sufocava o sentimento de saber que ele era egocêntrico e superficial. Marta era algo a ser exibido e não uma pessoa com alma e emoções.

O que estava acontecendo? Por que estava revoltado com isso? Não era de sua conta.  O que aquele olhar tinha arrancado de dentro dele?  Um pensamento faiscou em sua cabeça e iluminou o que não ousara ver: o sentimento que brotara silenciosamente no seu coração. Estava apaixonado pela namorada do irmão. Sacudiu a cabeça, como se quisesse espantar essa descoberta.

Entrou no carro e saiu em disparada.  Aquele olhar, que lhe mostrou que ela nutria algo por ele o estava desestabilizando. 

Tentava entender racionalmente suas emoções, mas era impossível.   Há algum tempo, tentava sufocar o desprezo pelas atitudes do irmão.  A vaidade desmedida, o egocentrismo, a necessidade de vencer sempre e ser incensado por isso. 

Será que o amor que sentia por Marta e que não quisera tomar consciência, o fez enxergar tudo o que sentia pelo irmão?

Não, ele não iria mais se submeter às vontades de Osvaldo.  Iria lutar por Marta, custasse o que custasse.

Chegou à casa e entrou como um furacão, mal cumprimentou os pais, que se entreolharam preocupados.

— Vou tomar um banho!

— Como foi a regata?  Perguntou o pai.

— Vencemos.

E saiu da sala.  O pai virou a cabeça para a mãe, encolhendo os ombros e virando as mãos para cima, sem entender o que estava acontecendo com o filho, sempre tão calmo e controlado.

Celso entrou no quarto e jogou as roupas com força.  Estava cansado do menosprezo de Osvaldo, que se sentia o melhor em tudo e até no esporte não reconhecia a ajuda dele para conquistar as vitórias.

Depois do banho, resolveu sair e dar uma corrida para espairecer.

— Aonde você vai, filho? Perguntou a mãe?

— Vou dar uma volta.

— Você não vai almoçar?

— Não, não estou com fome. E saiu.

O que estaria acontecendo com ele? Pensou a mãe.

Precisava correr para pôr a cabeça em ordem e decidir como iria agir.  Foi a um parque perto de sua casa e correu até cansar.  Sentou-se em um banco à beira do lago, cujas águas calmas davam às pessoas uma sensação de paz e comunhão com a natureza.  Abaixando-se pegou pequenas pedras, que atirou na água, o que assustou os cisnes, que por ali passavam, mas precisava jogar fora o que lhe agitava a alma e agir com a razão e não com a emoção.

Pegou o celular e seu dedo parou sem apertar o botão.  Apertou os lábios. Faria ou não faria aquela ligação.  Sim, tinha que ligar para ela. E pressionou o botão. 

A voz de Marta soou nos seus ouvidos.

— Celso? Tudo bem?

— Não, Marta! Não estou bem e nem sei como começar.

— O que aconteceu?

Ele estremeceu.  Será que estava certo e o que vira no olhar dela realmente significava alguma coisa? Ficou calado, paralisado pelo medo.

— Celso? Você está aí?

— Desculpe Marta! Estou nervoso.

— Por quê?

Como uma enxurrada, as palavras saíram de sua boca como se estivesse vomitando toda a sua emoção.

— Posso estar sendo um idiota, mas quando você olhou para mim hoje de manhã, li nos seus olhos algo que me atingiu como um raio e me tirou do prumo.  Vi tristeza e desconcerto, mas também vi paixão.

Parou para respirar.

— Desculpe se confundi tudo.  Afinal, você é a namorada do meu irmão.

O silêncio da jovem o deixou mais ansioso. “O que eu fiz”, pensou.

De repente, ela disse devagar, pesando cada palavra.

— Seu irmão saiu daqui há pouco.  Tivemos mais uma discussão. Não aguento mais sua indiferença e muitas vezes ser posta de lado. Suspirou fundo e prosseguiu:  O que você viu no meu olhar é sim amor. Me apaixonei pela sua simplicidade, seu modo de ver as coisas, a sua delicadeza em tratar as pessoas.  E não estou sabendo como lidar com isso.

Uma mistura de sentimentos contraditórios o assaltou: alegria e remorso, era amado e traidor. Era como se estivesse sendo arrastado por uma forte correnteza de emoções.

— Também não estou sabendo o que fazer, mas ao mesmo tempo, não temos culpa.  Aconteceu!

E com essas palavras, procurou justificar a si mesmo sua conduta.

— Venha até aqui.  Precisamos conversar pessoalmente e com calma.  Disse ela.

Foi uma longa conversa em que resolveram contar a Osvaldo o que estava acontecendo.

Na manhã seguinte, Celso foi ao apartamento do irmão, que se surpreendeu com a visita dele tão cedo. Com um tom muito sério ele disse que precisavam conversar.

A surpresa estampou-se no rosto de Osvaldo.  Sentaram-se um de frente para o outro.  A tensão pairava no ar.

— Desembucha!

— Me apaixonei!

— E isso é tão grave assim? Osvaldo disse com um ar zombeteiro.

— É.  Pela Marta e sou correspondido.  Aconteceu!

Osvaldo levantou-se.  A expressão transtornada.
— Você tem coragem de vir aqui me dizer isso! Meu próprio irmão me apunhalar pelas costas!

Celso empalideceu:

— Tudo foi muito de repente! Nem sei como explicar.

— Isso não tem explicação. E foi para cima do irmão, desferindo-lhe um bofetão no rosto. 

Celso ergueu os braços para se defender do irmão, que descontrolado, continuava a açoitá-lo. Dona Júlia, a empregada de alguns anos, entrou na sala assustada com os gritos e os sons das pancadas de Osvaldo.

— Parem com isso!  E tentava separá-los.

— Por favor, Dona Júlia, saia daqui.

— Não saio. Não sei o que está acontecendo, mas você tem que se acalmar.

Como se tivesse recebido um balde de água fria, ele abaixou os braços e jogou-se na poltrona. Os olhos destilavam ódio.

— Sempre te apoiei nas tuas inseguranças e o que recebo de volta...

— Soube que vocês não estão se entendendo mais.  Celso respondeu, tentando se recuperar das agressões.

— Verdade! Nosso relacionamento está se esgarçando.  Ando cansado das exigências dela.  Quer atenção o tempo todo.  Não sou homem para isso. Posso ter as mulheres que quiser. Mas terminar a relação pela traição de meu irmão. 

— Nós nos apaixonamos sim, mas só descobrimos isso ontem e vim dizer a você.

— Você não entende nada mesmo! Eu é que tinha que terminar primeiro e não ela vir amanhã e dizer que tudo está acabado, depois de você confessar a sua traição.

Celso sacudiu a cabeça ao compreender a reação do irmão.  Ele não estava sentido pela perda da namorada.  Estava furioso por ter sofrido uma derrota. Um esgar de asco contraiu as feições de Celso. Que tipo de homem era ele?

Controlou-se para não dizer tudo o que estava sentindo e saiu porta afora.

Entrou no carro e tentou se acalmar.  Encarar pela primeira vez a personalidade do irmão o surpreendeu. A admiração e o orgulho que tinha por ele foram por água abaixo. De repente, porém, um pensamento surgiu imperioso.  E ele, o que sentia pelo irmão, será que não era inveja? O fato de se sentir em segundo plano, bem no âmago do seu ser, não o tinha incomodado? Quando decidiu lutar por Marta, não sabia o que ela significava para o irmão e assim mesmo foi em frente, mesmo sabendo que poderia causar sofrimento a ele.  Será que poderia se considerar melhor do que ele?

Subitamente se sentiu apaziguado.  Osvaldo tinha defeitos, mas ele também não era santo.  Não iria mais ser o reflexo do irmão, mas seriam dois homens com defeitos e qualidades, que se respeitariam.  O orgulho de Oswaldo faria com que transformasse a traição a seu favor.  Vítima, mas livre de um relacionamento, que já não funcionava mais.

Deu partida no carro e acelerou em direção do apartamento da amada.

 

Um comentário:

  1. Muito boa história, muito bem contada: sequencia adequada, boa dinâmica, boas caracterizações. Gostei. Parabéns, Adelaide.

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