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quarta-feira, 27 de abril de 2022

Impotência - Adelaide Dittmers

 


Impotência

Adelaide Dittmers

  

O automóvel preto entrou em uma curva em alta velocidade.  O veículo derrapou no asfalto molhado, o que o desestabilizou e acelerado ziguezagueou até bater no muro de arrimo.

Mirtis voltou a si atordoada.  Estava presa nas ferragens e desnorteada olhou para o marido atrás do airbag.  Não havia a menor chance de sair dali sem ajuda.  Suas forças esvaiam muito depressa. Examinando o celular sem bateria atinou a vaguidão da rodovia. Ninguém sentiria falta deles...

A memória foi voltando devagar.  Pareciam lampejos, que escapavam de sua cabeça. A discussão acirrada com o marido. O intempestivo modo de ele responder a

ela.

Por que mesmo brigaram?  Perguntou-se e com muito esforço lembrou-se de que fora por algo que a estava irritando.  Ela quis sair mais cedo de uma festa na casa de amigos, que moravam em uma pequena cidade do interior e ele insistiu em ficar mais tempo, esvaziando um copo de cerveja atrás do outro.  Nos últimos tempos estava bebendo muito, mas sempre que lhe perguntava o motivo, recebia respostas evasivas. Além disso, trovões e raios ao longe anunciavam a chegada de um temporal.

Quando por fim saíram e entraram na estrada, pingos grossos arrastados por um forte vento começaram a cair de um céu escuro.  A chuva foi aumentando em intensidade e a visibilidade ficou quase nula.

O medo e a raiva acenderam nela uma revolta incontida, que a fez recriminar João.  Ele, tomado pela bebida, respondia de maneira violenta, e irado, acelerou o carro. A curva fechada apareceu diante deles e tudo aconteceu em um segundo.

Agora iam morrer ali.  Tentou se mexer.  A dor em todo o corpo era insuportável.  Sentiu que ira apagar outra vez, quando ouviu que tentavam abria a porta.  O vidro da janela foi quebrado e a chuva molhou-lhe o rosto.  Diante de si, um homem pedia para terem calma.  Por um celular, pediu socorro.

Olhou para o lado, o marido estava inerte e ela desfaleceu novamente.   

Quando acordou, estava em uma cama.  Atordoada, tentava focar as pessoas e o lugar a sua volta.  Aos poucos as imagens distorcidas foram ficando mais nítidas.  Olhos atentos fixavam-se nela.

— Ela está voltando.  Disse um homem de azul.

— Onde estou?  Perguntou com um fio de voz.

— Em uma UTI.  Você apagou por sete dias, mas está se recuperando.  Respondeu o homem de azul.

— O que aconteceu? Não me lembro de nada! Perguntou assustada.

O médico colocou a mão sobre a dela e disse:

— Aos poucos, sua memória vai voltar.  Você e seu marido sofreram um acidente.

— E onde ele está? Disse com uma voz quase inaudível.

— Depois falamos sobre ele.  Agora descanse.

Ela fechou os olhos, exausta.

Dias se seguiram e ela foi se recuperando lentamente.  Sofreu várias fraturas e foi avisada de que teria de usar uma cadeira de rodas por uns tempos. A memória foi voltando e uma manhã ela tornou a perguntar do marido.  Soube então que não tinha resistido aos ferimentos e morrera.

Mirtis ficou sem reação ao ouvir a notícia pela irmã que a acompanhava. Era como se o trauma e as dores por que estava passando, tivessem sugado quaisquer emoções de sua alma.

Fechou os olhos como se quisesse fugir da realidade que a rodeava.

Semanas depois, foi para a casa da irmã, que iria cuidar dela.  Certa tarde soube que João estava enfrentando uma grave crise financeira, quando se deu o acidente e ela compreendeu o motivo do seu abusivo uso do álcool.

Agora dependia dos outros tanto física como financeiramente e sentindo-se impotente diante dessa situação, desejou ter morrido naquela fatídica curva da estrada.

 

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