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quarta-feira, 27 de abril de 2022

IMPOTÊNCIA - Leon Vagliengo

 


IMPOTÊNCIA

Leon Vagliengo

 

Ou, como pequenas ofensas podem provocar uma grande tragédia.

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Casado com Mirtes havia quarenta anos, até os sessenta e oito de idade Oswaldo nunca teve problemas de saúde. No máximo um resfriado ou uma gripezinha, poucas vezes, nada mais. Sempre se cuidou muito bem mediante uma alimentação saudável, a prática de esportes e a realização dos exames médicos preventivos de praxe.

Tudo corria com normalidade até que, à noite, começou a ter que interromper o sono para ir ao banheiro urinar. De início não deu muita importância, porque acontecia esporadicamente, uma noite ou outra, apenas uma vez. Mas ao longo de dois anos isso começou a ocorrer com maior frequência, até que todas as noites passou a levantar-se duas, três e até quatro vezes, para atender aos reclamos de sua bexiga.

Na consulta periódica seguinte, o médico urologista avaliou os exames laboratoriais de Oswaldo, fez o toque, considerou os seus setenta anos de idade e sentenciou: sua próstata está normal, mas a hiperplasia benigna avançou bastante e o senhor deverá tomar este remédio de uso contínuo que está na receita, para urinar melhor e evitar o risco de uma infecção urinária. Na sua idade começa a ser perigoso.

Oswaldo voltou da consulta profundamente encucado. Ouvira já, de seus amigos, que esse tipo de remédio causa queda da libido e dificuldades também físicas para o relacionamento amoroso. Chegou a comentar isso com o médico, mas ouviu dele que isso é folclore, conversa mole, o remédio não tem esse efeito.

Nos dias seguintes passou a tomar o remédio, seguindo a recomendação médica, mas o receio não o abandonava. Pensava em Mirtes, sua linda esposa, oito anos mais jovem, sempre muito disposta para ele, provocante e carinhosa, sua musa sensual. Não poderia deixá-la frustrada em seus desejos. E, também, não queria passar pela humilhação de dizer a ela de seus temores e explicar as dificuldades por que passava. Não achava apropriado para um homem admiti-las. 

Se o médico estava certo e não foi o remédio, porém, a preocupação ou a idade começaram a ter o efeito temido. No início, sempre que as intimidades com Mirtes começavam a esquentar, o pensamento “será que eu consigo” aparecia, incomodava, mas era logo dominado pela forte emoção erótica obtida com as preliminares e tudo funcionava bem. Com o tempo, porém, a preocupação de Oswaldo foi aumentando e um dia venceu ao erotismo, apagando o encanto que sustentava o ato, e ele falhou.  Uma vez, alguns dias mais adiante outra, depois novamente, e a autoconfiança acabou desaparecendo.

Mirtes, de início compreensiva, tentou reanimá-lo, dizendo que “isso é normal, acontece de vez em quando até com gente mais jovem”. Evidentemente, esse comentário de nada serviu. A cada insucesso, a frustração e os temores de Oswaldo só aumentaram. Parou de tomar o remédio, mas não adiantou; seu psicológico não reagiu. Mesmo querendo, o receio de novo fiasco fazia com que evitasse ensejos de intimidade com a esposa, e minava a sua vontade de possuí-la, antes tão frequente.

Temeroso, Oswaldo se esquivava desses momentos; com as esquivas, deixou de receber os estímulos sensuais que encontrava em Mirtes, e assim a libido também o estava abandonando. Mirtes percebeu que já não o atraía mais e foi mudando de atitude. De início fora compreensiva e confortadora, depois passou a sentir ciúmes, reclamando que ele não gostava mais dela. Então, sem perceber como isso era torturante para o marido, tornava-se exigente:

— Você tem que conseguir! — Dizia. — Como não consegue? Está tudo igual, concentre-se! Faça um esforço! A não ser que você não queira mesmo — completava irônica, piorando a situação. Uma noite, chegou a perguntar ao marido se ele estava tendo um caso, se tinha uma amante.

Foi-se a sedução.

Os momentos íntimos outrora partilhados por tantos anos entre os dois, com tantas carícias e palavras carinhosas, o clima romântico e a magia que se instalavam nessas oportunidades, desapareceram. Foram substituídos por atitudes quase mecânicas, meros exercícios físicos muitas vezes frustrados, que pouco ou nada tinham a ver com amor.

        Essa situação foi perdurando, sem indícios de ser superada. Oswaldo já estava muito estressado. Sentia-se incapaz de fazer aquilo que sempre fizera tão bem e com tanto prazer, que era deixar sua esposa sexualmente satisfeita e feliz. Até que um dia os pensamentos lhe fluíram na mente de forma precipitada, maldosa, apavorante: Mirtes está muito enciumada, desconfiada, pode até procurar um outro homem; será que pode? Claro que ela nunca faria isso, sempre foi uma mulher fiel, ela me ama; mas eu não a satisfaço mais, ela pode, sim; não, ela não pode; não faria isso, não teria coragem; eu não aguentaria, isso não pode acontecer...

        Pensamentos assim atabalhoados se repetiam de forma doentia, quase diariamente, aumentando a tensão de Oswaldo, e ele, sem perceber, mudou muito as suas atitudes. Antes sempre alegre, sempre com um sorriso nos lábios, sempre carinhoso e atencioso com todos, tornou-se bipolar: às vezes triste e desanimado, parecia completamente derrotado; outras vezes ficava muito nervoso, dava respostas ríspidas e tornava-se bastante desagradável.

Mirtes não sabia mais como agir. Não conseguia entender o que estava acontecendo com o seu marido, antes tão calmo, tão educado, tão amoroso, tão carinhoso, tão fogoso, tão ardente; agora nervoso, grosseiro, briguento, nem ligando mais para ela.

Precisava fazer alguma coisa, tomar alguma atitude. Teve, então, a ideia de passarem uns dias em algum hotel, num ambiente romântico, para tentar um recomeço. Procurou um belo roteiro, esperou um momento tranquilo e propôs a viagem para Oswaldo. Ele entendeu, gostou da ideia e logo concordou, também com a esperança fantasiosa de que novos ares poderiam ajudá-lo a recuperar-se.

As curtas férias de cinco dias tiveram mesmo bom efeito. O hotel era agradável e acolhedor, a praia era tranquila, a pequena enseada oferecia um mar calmo, ótimo para mergulhos refrescantes seguidos de quentes banhos de sol. Alguns passeios a pé, de mãos dadas, conversas amenas nas boas refeições; especialmente no jantar, que coroava o clima romântico de cada dia. Numa daquelas noites, completamente esquecidos das dificuldades que haviam passado, até o amor teve cenário: total, completo, tórrido, mas sublime, em sua expressão maior para o casal. No sábado, na despedida com um jantar especial, dançaram e celebraram felizes o sucesso daqueles dias maravilhosos de descanso.

O domingo, porém, começou mal, anunciando que seria um dia difícil.

Muito vinho à noite, Mirtes acordou com dor de cabeça, uma forte enxaqueca. Na refeição da manhã, no hotel, derramou café na bermuda branca, a sua preferida, formando-se nela uma grande mancha escura. Estragou a peça, sem dúvida.

Sim, apenas um pequeno e desagradável acidente comum, pode acontecer de vez em quando com qualquer pessoa. Ficou chateada e esperava ouvir palavras carinhosas de consolo de seu marido, mas as férias foram curtas, e Oswaldo, novamente muito nervoso já pensando no retorno, foi inesperadamente grosseiro:

― Você é uma desastrada, mesmo! Sempre fazendo alguma besteira!

Foi aí que tudo recomeçou.

Mirtes sentiu-se magoada, ofendida, indignada, e respondeu à altura:

­— Estúpido!

O clima entre eles ficou tenso, nem terminaram o café da manhã. Voltaram para o apartamento do hotel, arrumaram as malas de cara feia e desceram para encerrar a conta. Colocaram a bagagem no porta-malas do carro e partiram pela estrada em retorno para casa. Mirtes estava mesmo enfurecida. Não se conteve e repetiu:

— Você é mesmo um estúpido!

Para quê foi dizer isso? A discussão se instalou novamente e não parou mais.  Envenenado pelas ofensas mútuas, proferidas com as vozes cada vez mais alteradas, Oswaldo foi acelerando, acelerando, a velocidade aumentou muito, superou os limites de segurança, até que ele perdeu o controle do veículo.

Foi de repente. O carro preto derrapou no asfalto molhado, a alta velocidade o desestabilizou, passou direto pela curva e seguiu descontrolado, em ziguezagues, até que desceu um barranco e bateu numa árvore, lá embaixo, rodas para cima, longe das vistas de quem passasse pela rodovia.

Então...

Mirtes estava sangrando muito, presa nas ferragens. Desnorteada, olhou para o marido sem vida, caído sobre o volante, um grande ferimento na cabeça. Ela não tinha a mínima chance de sair dali sem ajuda. Suas forças se esvaiam muito depressa. Desistiu do celular sem bateria, atinou para o ermo do local. Ninguém sentiria a falta deles a tempo...

Em seus momentos finais, Mirtes sentiu e entendeu como pode ser perversa uma impotência.

 

 

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