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segunda-feira, 24 de julho de 2017

"Com que roupa eu vou... - "Hirtis Lazarin


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 "Com que roupa eu vou..."
Hirtis Lazarin

          Vovó Helena era a simpatia vestida numa combinação de cores vibrantes e descompromissadas que assustava e espantava até mosquitos.

         Ao lado dela, era só alegria o que sentíamos.  Parece que a ouço dizendo: "não tô nem aí"  ou "deixa a vida me levar".  Características de pessoa segura, que sabe o que quer e só faz o que quer.

          Adoraria tê-la conhecido jovem.  Segundo papai, foi uma mulher que não respeitava as normas do seu tempo.  As jovens eram preparadas pro casamento e maternidade.  As que iam um pouquinho além, tornavam-se professoras.

          Vovó deixava os familiares "de cabelo em pé".  Não tinha medo de nada e desafiava o pai, advogado severo e impertinente.  Tocava violão, reunia sua turminha e saía por aí.  Não tinha hora pra sair nem pra voltar.  Se necessário fosse, pulava janela, improvisava escadas, mas não deixava de fazer o que tinha em mente.

          Assim que terminou o colegial, juntou uma maleta surrada, três mudas de roupa, o violão num saco, mais um dinheirinho que tinha juntado e partiu pra São Paulo.  Seu objetivo era a faculdade de economia.  Numa turma de  trinta rapazes era a única mulher numa classe de futuros economistas.

          Sofreu "bullying", foi desacreditada e motivo de brincadeiras inconvenientes.  Graças ao seu temperamento "lasse faire" tirou de letra e não se abalou.  E ao final do primeiro ano, já se sobressaía pela inteligência e senso de humor.

          Fez carreira acadêmica, casou-se e teve dois filhos, papai e tia Rose.

          Contam-nos que, na idade adulta, sempre foi muito elegante, gostava de acompanhar a moda, desenhava seu figurino e não repetia roupa em festas.  Só participava de eventos quando o convite chegava com antecedência, com tempo suficiente de escolher a roupa adequada.  Aquela mocinha descolada, despreocupada ficou no passado.  Usava com tanta frequência a frase "com que roupa eu vou" que, jocosamente, essa expressão passou a ser seu apelido entre os familiares.  Ela achava graça e completava com o verso de Noel Rosa "pro samba que você me convidou".

          Vovó  já está com setenta e nove anos e sofre do Mal de Alzheimer.  Fala sozinha o dia todo numa língua que ela criou e, em meio à sequência de sons ininteligíveis, de vez em quando, surge  a frase "com que roupa eu vou".

          Ela guarda uma caixinha de madeira fechada a sete chaves.  Ninguém sabe o que ela contém e nem se atreve a querer porque ela fica tão nervosa a ponto de ser necessário o uso de calmante.

          Todo entardecer, ela senta-se na cadeira de balanço da sacada, com novelos de lã e agulhas de tricô, tecendo um pulôver começado no ano passado e que não avançou além dos pontos colocados na agulha.

          Ela se diverte com os galhos da samambaia de metro penduradas no teto.  Ri como uma criança inocente quando o vento mais forte embala-as pra cá pra lá.

          O momento de maior felicidade da vovó é quando o sol parte pro outro lado do planeta, deixando uma cortina alaranjada que se fecha devagarinho.  Conta as estrelas numa sequência que só ela sabe.

          Hoje vovó dormiu na cadeira de balanço e não acordou mais.  Seu rosto sereno de pele rosada feito pêssego maduro esboçava um sorriso leve que nos confortou.  Foi uma mulher que fez tudo o que quis fazer.  Morreu feliz.

          Encontramos no seu colo a tal caixinha de madeira.  Aberta.  Desvendaríamos o segredo da vovó.

          Dentro havia apenas um pedaço de papel e nele estava escrito com letras coloridas: "Com que roupa eu vou
                                         pro samba que hoje acabou"?

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