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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

MÃE DINAH - Henrique Schnaider

 



MÃE DINAH

Henrique Schnaider

 

Lucia, nome de guerra Mãe Dinah, era especialista na arte das cartas enigmáticas usadas para encher os olhos dos incautos, o Tarô. No qual Lucia era useira e vezeira ao enganar as pessoas, jogando um futuro maravilhoso no coração dos iludidos.

Sua fama foi longe, alcançando até os crédulos no exterior. Ela lia cartas e enganava também ao decifrar as linhas das mãos dos trouxas. Usava uma técnica de ser uma parede que rebate a bola. E assim levava os otários, sem perceber a soltar aquilo que eles queriam ouvir.

Ela começou na arte de ludibriar bem cedo quem a procurasse, aprendendo com a avó cigana, uma vigarista profissional que limpava os bolsos dos desesperados para pôr um pingo de esperança em suas vidas, que naquele momento, estavam procurando um alento de um futuro melhor. Desta maneira as pessoas deixavam os tubos na consulta. Muitas vezes um dinheiro que nem sequer possuíam.

Lucia em pouco tempo aprendeu tudo da arte da malandragem e se tornou uma raposa dentro do galinheiro. Logo colocou sua avó no bolso ao ponto de a velha senhora resolver se aposentar e deixar o negócio lucrativo nas mãos da neta.

Assim Lucia saiu da miséria aos 25 anos e se tornou uma profissional PHD no uso do tarô, uma narrativa por acaso. Já era procurada por pessoas tanto pobres como ricas e para cada uma tinha o preço certo. Fama feita ao ponto de ser muito respeitada por todos que ouviam suas balelas.

Esta centelha da sorte que pousou nos ombros de Lucia, foi muito bem aproveitada no personagem assumido de Mãe Dinah. Especializou-se nas artes divinatórias como o jogo de búzios. Dizia aos que acreditavam nela, que recebia o espírito da mãe Dinah. Ela vinha do além incorporada na Lucia para fazer as consultas.

Nem uma vírgula do que falava, cobrando uma grana preta, era verdade. Ela tinha a qualidade de se fazer acreditar. Era um ser iluminado que estava ali, naquela sala mal iluminada apenas para criar um clima. Praticando o bem e Mãe Dinah só cobrava a consulta, para a Lucia que recebia seu espírito e precisava sobreviver.

Desta maneira todos que procuravam Lucia, achavam que estavam diante de duas pessoas, a Lucia e o espírito recebido de Mãe Dinah.

A vida ia rolando solta e a sacripanta enchendo as burras de dinheiro. Até que um dia ela conheceu o malandro dos malandros. O safado do José que a encheu de amor e carinho. A pobre da Lucia se entregou de corpo e alma ao Don Juan de araque, cheia de paixão

José ganhou tanto a confiança da Lucia, que ela lhe deu os cartões de banco com senha e tudo. Um dia o José se escafedeu, sumiu no mundo, sem lhe dar a mínima satisfação. E a Lucia que embrulhava a todos, caiu na real, se deu conta de que o malandro levou tudo o que ela tinha.

Pobre, Mãe Dinah, que previa um futuro brilhante a todos que a procuravam, não foi capaz de prever o seu próprio futuro, levou um tombo muito grande e agora seu futuro incerto iria demorar muito tempo para se recuperar e voltar à vida cheia de dinheiro e de tudo do bom e do melhor.

 

 

Clark, o capitão - Alberto Landi

 


Clark, o capitão

Alberto Landi

 

A história se passa entre Peniche, uma pequena cidade portuguesa, e as ilhas Berlengas, tendo como protagonista o capitão Clark.

Ele era um homem de meia idade, destemido, forte, valente, audacioso, corajoso, persistente, habilidoso, conhecedor dos oceanos, formado na Escola Náutica Infante D. Henrique, na cidade de Faro.   Tinha uma experiência extensa no mar, enfrentando todas as condições meteorológicas que o oceano poderia apresentar. Tinha conhecimento dos procedimentos de segurança, telecomunicações e sistemas de buscas e salvamento marítimo, pois, estava habituado a navegar com grandes embarcações.

Nos seus períodos de folga, visitava com frequência Peniche, e lá se encontrava com Josué, um amigo e líder nativo das ilhas Berlengas, que lhe fez uma proposta:

— Olá amigo! Você gostaria de conduzir uma pequena embarcação, o Bretagne, das ilhas até o continente, levando 4 turistas, uma carga de peixes para os restaurantes locais, e 2 marinheiros para te ajudar?

O capitão prontamente aceitou e começou a vistoriar as caixas de força, a água potável e o tanque de dejetos.

Ele, considerado um mestre dos mares, foi consultar o clima, temperatura, tábua de maré, ondulação e velocidade do vento. Monitorou os motores, posição do leme e demais aparelhos, cabos e equipamentos de amarração também.

As 4 turistas sentadas à volta da embarcação, apreciavam embevecidas a belíssima paisagem que se descortinava, tirando muitas fotos.

O dia estava limpo, e o mar calmo quando deu início ao pequeno cruzeiro do Capitão Clark.

Já havia duas hora de navegação sem ocorrências. Eram aproximadamente 16 horas, quando, de repente, desabou uma descontrolada, muito forte tempestade. No início uma leve apreensão, mas ela se intensificou.

O mar se encheu de ondas, e a chuva começou a encharcar o barco, pois só havia uma cobertura de plástico.

No comando, dois marinheiros desesperados controlando o barco pelo motor de popa.

A chuva aumentava cada vez mais, ondas gigantescas e aterrorizadoras derrubavam as pessoas, arrastando-as para lá e para cá, assim com seus pertences.

Clark gesticulava em meio a tormenta:

— Por favor, todos para o meio do barco!

Com os olhos pregados no horizonte, tentando enxergar a pequena cidade à sua frente, corria de um lado a outro atento aos acontecimentos, sem perder a postura, pois tinha que transmitir  calma e tranquilidade à tripulação e aos passageiros.

Não se via nada além do mar e das nuvens ao seu redor.

Dizia para si em voz baixa:

— Logo a mim, logo a mim isso tinha que acontecer!

Mas foi pensando que Capitão habilidoso não se faz em mar sereno, não é em terra que se fazem os marinheiros, mas no oceano, encarando a tempestade. Bons marinheiros nunca foram feitos em mar calmo!

Cuidado sempre, mas medo jamais. O medo muda o corpo como um escultor desastrado altera uma pedra perfeita. Nunca ouça o medo. O medo paralisa as pessoas! 

Não se sabe quanto tempo se passou, mas com certeza, devido às circunstâncias, foi uma eternidade então, assim, como começou, a tempestade, ela se foi formando um arco íris no horizonte e tudo se tornou visível.

Chegando ao continente e ao pisar em terra firme, todos agradeceram a Deus e a habilidade, a calma e coragem do capitão, em conduzir a situação, por estarem são e salvos.

Até a carga de peixes foi salva!   

A Vidente - Helio Salema

 

A Vidente

Helio Salema

 

Dona Ceulimar,  cartomante  famosa por seus atendimentos quase diários, muito mais de pessoas de outras cidades e estados, do que de moradores da sua cidade. Nos seus sessenta e alguns anos, se dizia viúva de um coronel.  Morava só, no pequeno bairro, Encontro das Ilusões. Numa modesta, mas confortável casa, cercada de algumas mansões. Tendo durante o dia a companhia da dona Clara, responsável pelos cuidados com a casa, compras e produzir as refeições. Enquanto a patroa ficava na sala de atendimentos quase o dia todo.  Nunca respondia às perguntas indiscretas sobre sua patroa, feitas pelas fofoqueiras de carteirinha.

Algumas pessoas diziam que embora tivesse uma vida modesta, a vidente, como era conhecida, possuía conta bancária entre as mais altas da cidade. Certamente engordadas pelos visitantes que chegavam em carros luxuosos.

Minha vizinha dizia que as cartas, às vezes, revelavam coisas que a própria cliente não gostaria que fossem ditas. Também que era muito difícil conseguir marcar uma consulta, pois a agenda sempre estava completa por vários meses. Tinha conhecimento de pessoas que conseguiram resolver problemas dificílimos com ajuda de Dona Ceulimar. Ela mesma costumava citar alguns acontecimentos ocorridos em sua família.

A clientela era bem diversificada, pessoas idosas, aposentados e profissionais de várias áreas. Também jovens inseguros, quanto a carreira profissional ou problemas sentimentais, eram assíduas frequentadoras daquela casa.

 ...

Numa manhã de inverno rigoroso, quando Dona Clara chegava para abrir o portão da casa, surpreendeu-se com um rapaz assustado, que saía apressado, tentando esconder o rosto.

Não teve dúvidas, era Ricardo, conhecido filho de família simples, que não estudava, nem trabalhava. Mas era bastante famoso pela sua vida de conquistador. Nunca tinha namorado moças da sua geração, preferindo mulheres mais velhas e separadas, geralmente de patrimônio cobiçado. Vestia-se muito bem, frequentava lugares caros, onde era bem recebido pela sua simpatia no trato com todos.

A empregada entrou e logo percebeu algo diferente. O jornal na varanda, a patroa não havia levantado, pois sempre quando chegava, ela já estava toda arrumada tomando seu café, que ela mesma fazia questão de preparar.

Depois de quase uma hora apareceu, cumprimentou a empregada de maneira seca, como se fosse uma estranha. Pegou o jornal e voltou para o quarto.

Recebeu seus clientes na sala de trabalhos como de costume, fez as refeições normalmente.

Mas com semblante preocupado durante todo o dia. Conversou com a empregada apenas o estritamente necessário.

Na hora de ir embora, dona Clara saiu sem despedir da patroa, pois ainda havia clientes aguardando para serem atendidos. O que acontecia frequentemente. Desta vez com uma preocupação. Como será o dia seguinte? E os demais?

Nada de novo. Tudo demonstrava que o dia anterior foi apagado do calendário e também da memória. Experiência de muitos anos e sabendo muito bem, que “Nada melhor do que um dia depois do outro”.  

Assim, os dias transcorrem sem novidades, na casa de refúgio dos necessitados. Exceto na cabeça de dona Clara, que não se conteve e trocou informações com a filha adolescente, Carolina. A menina e as amigas conheciam Ricardo muito bem. Embora não tendo os conhecimentos de Dona Ceulimar, ambas faziam previsões e viam nuvens negras sobre a casa da vidente.

Porém a tempestade caiu no principal clube da cidade, onde Ricardo conversava, animadamente, com uma senhora recém-chegada. Quando Luciana chegou e logo que viu, percebeu onde seu namorado pretendia chegar. Aproximou, deu lhe um longo beijo na boca e olhando para a senhora, ironicamente disse:

— Seja bem-vinda, minha senhora.

A elegante e educada senhora levantou-se e saiu, silenciosamente.

Ricardo e Luciana iniciaram uma grande discussão que chamou a atenção dos presentes. Acusações de todos os tipos, principalmente, de traições.

— Você é mulherengo e safado. Traidor sem escrúpulos.

— Então por que você não fala da sua traição? No mês passado quando foi fazer o curso no hotel fazenda! Com um cara que você conheceu no mesmo dia, só depois descobriu que era casado?

— Mentiroso?

— É verdade. Mesmo assim foi procurá-lo.

Ela, chorando e desesperada, saí às pressas. Ricardo continuou esbravejando em voz alta, com palavras impróprias para o local. Imediatamente, percebendo o vexame que causara, e que certamente, não encontraria ninguém que apoiasse sua desastrosa conduta, sai também sem olhar para os lados.  

Luciana vai, diretamente à casa da vidente. Aos gritos e sem se importar com as pessoas presentes.  Ceulimar aparece assustada e fica ainda mais, quando é chamada de charlatona. Luciana aos berros:

— Você contou para o Ricardo, o que eu lhe disse na consulta. Bem que me disseram que vocês são amantes. Que você conta para ele o que as pessoas dizem para você.

Dona Ceulimar começa a passar mal, é socorrida e em seguida levada para o hospital.

A casa fica vazia, de gente, de fé e de esperança. Dona Clara depois de se acalmar resolve fechar a casa, sentar no sofá da sala e aguardar por notícias. Lembrando do dia em que viu Ricardo saindo apressado e de tudo que sua filha lhe contou sobre ele.

Horas depois estacionou um carro em frente. Abre a porta e vê Dona Ceulimar e Ricardo entrando pelo portão. Ao entrar na casa a patroa diz:

— Estou bem. Já é tarde, pode ir, muito obrigado por ter ficado aqui até esta hora.

A empregada pega suas coisas, se despede dos dois, e sai preocupada e pensativa.

No dia seguinte ao entrar se espanta com o que vê. Tudo revirado. Casa vazia. Sobre a mesa uma carta.

“Bom dia minha amiga. Estou me mudando. Como você, há muitos anos, vem cuidando de mim e da minha casa, deixo para você, merecidamente, tudo que aqui está. O aluguel está pago até o fim do mês. Você tem todo esse tempo para esvaziar a casa. Tenha um bom proveito. Que Deus te proteja. Abraços “

Com as pernas bambas se deixa cair no sofá. Lê e relê várias vezes para ter certeza de que tudo aquilo era verdade. Percebeu que tinha cerca de vinte dias para resolver o problema. Verificou a casa toda para ver se estava tudo em ordem. Trancou e foi para casa dar a novidade para a filha.

Com ajuda de parentes e amigos conseguiu levar o que lhe interessava. O restante foi vendido por bom um dinheiro.

Vários anos se passaram até que um dia sua filha foi passar o fim-de-semana numa pequena cidade do interior, para conhecer a família do noivo. Depois de algumas horas na casa, Carolina aceitando o convite da futura cunhada, saiu para conhecer a pequena, bonita e pacata cidade. A praça muito bem cuidada, jardins floridos e muito limpa, logo a surpreendeu. Porém algo lhe prendeu toda a atenção. Sentado num dos bancos um homem, pacientemente, dava a uma senhora numa cadeira de rodas, algo para ela comer. Cada colherada, parecia que ela engolia com dificuldades.

Carolina disse que estava admirada de ver aquele filho cuidando tão bem da mãe. Subitamente, outra surpresa. Ouviu a outra explicar que não era filho. Eles chegaram há pouco tempo. Logo ficamos sabendo que ela não era mãe do Ricardo.

Carolina se assustou. Ao se aproximar, disfarçadamente, reconheceu e não teve dúvidas.

Ali estavam em plena harmonia, pessoas que um dia se prejudicaram.

INEVITÁVEL - Hirtis Lazarin

 





INEVITÁVEL

Hirtis Lazarin

 

A luz na sala grande e bem mobiliada era pouca.   Apenas alguns raios de sol forte se infiltraram num espaço oferecido pelas cortinas mal fechadas.

Ao lado da mesa de jantar e diante de tapeçarias penduradas na parede, uma poltrona solo de veludo cor de vinho. Ali sentada, uma mulher até bonita de se olhar.  Muitos fios brancos misturados no emaranhado crespo dos cabelos castanho-escuros.

Os olhos já foram brilhantes e sagazes.  Hoje, um cinza desbotado carrega-lhe o olhar pensativo e perdido. 

O vestido de mangas compridas num azul opaco não tem qualquer ornamento.  Apenas um cinto com folhas miúdas lavradas em prata.   Nenhuma joia vistosa; só um brinco de pérolas, as mais pequenas que já vi.

Um silêncio que fere a alma é quebrado pelo tique taque monótono do carrilhão de família.  O balançar repetitivo da perna esquerda revela que a mulher está inquieta e muito apreensiva.  Um gato deitado aos seus pés descalços tenta acariciá-la, mas  é repelido.

A campainha toca duas vezes e a criada aparece esbaforida secando as mãos no uniforme branco.  Olha indagativa para a senhora que permanece imóvel.  Apenas o balançar da cabeça autoriza  a abertura da porta.

Dois policiais federais se apresentam e a Dra. Joaquina levanta-se;  ajeita a gola do vestido e calça os sapatos pretos de salto baixo;  Confere as horas e caminha pausadamente em direção aos dois homens.  Não mostra o turbilhão de sentimentos que a corroem.

Sem uma única palavra e sem olhar para trás, acomoda-se no banco traseiro da viatura onde a aguardava outro policial.  O mais forte deles deu partida e tão logo o carro deslanchou, ligou a sirene.  Não era necessário anunciar o espetáculo, mas...

 A criada ficou parada à porta sem nada entender.  Agachou-se e apanhou o jornal do dia que não fora ainda recolhido.  Sentiu o papel quente queimar suas  mãos.

Na primeira página, as letras da manchete eram tão GRANDES que chamaram-lhe a atenção:  “JUÍZA É JULGADA E CONDENADA POR VENDA DE SENTENÇAS”.

Nunca antes lera um jornal e não entendeu o recado.   Deu de ombros e fechou a porta.

Tinha muito serviço pela frente.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Casa de Banhos - Helio Salema

 



Casa de Banhos

Helio Salema

 

Alguns amigos costumavam se reunir na casa de banhos. Combinavam para assim poderem continuar as conversas iniciadas dias antes. Cada um tinha um assunto preferido, negócios, política, família etc.

Inocêncio gostava de fazer comentários sobre outras famílias que não as dos amigos presentes. Falava como se aquelas não prestassem, não possuíam nenhuma qualidade. Parecia que às vezes ele exagerava ou até colocava defeitos. Aproveitava para exaltar a sua própria família. O que num certo momento um dos presentes cochichou no ouvido de alguém.

“E o porco falando do toucinho”

Granaildo colocava seus múltiplos negócios à frente de qualquer outro assunto. Dizia dos realizados, todos com sucesso, e os que pretendia realizar, obviamente com cem por cento de êxito garantido. Só não comentava sobre prejuízos, que ocorreram no passado, dele e os que ele causou aos outros.

Preventino pouco falava, mas ouvia tudo, atentamente. Um dia, por estar muito compenetrado, chamou atenção de todos, que se calaram e queriam saber o que ele pensava.

Diante do terrível silêncio e depois de muito meditar, resolveu atender aos amigos.

— Perto de onde moro, estão construindo uma enorme casa. Meu irmão ficou sabendo que um dos cômodos estava sendo reservado para a Casa de Banhos da família.

Todos acharam um absurdo. Preventino  completou:

— O mundo está mudando tanto que um dia o homem chegará na lua.

Todos riram e ao saírem alguém disse:

— Você já está lá.

Preventino ficou só.

Por um triz - Helio Salema

 



POR UM TRIZ

Helio Salema

 

Saí de casa caminhando até o supermercado, como faço, quase diariamente,

Além de comprar algumas coisas, nem todas necessárias. Também é o lugar onde encontro amigos. Dar pastos às vistas. Saber das novidades da cidade, das fofocas, ouvir e contar piadas. Fiz tudo isso sem pressa alguma.

Ao chegar na fila do caixa, uma senhora que aparentava pouco mais de vinte anos, bem vestida e bonita, mas em contraste, tinha o semblante fechado, quase hostil.  Mais parecia uma bruxa raivosa, preparando a poção da maldade.

Retirava os objetos do carrinho de maneira muito brusca.  Demonstrava um nervosismo exagerado.  Pegava do carrinho de qualquer maneira, acabava misturando alimentos com produtos de limpeza, uns sobre os outros na esteira, sem o menor cuidado. Como se fossem coisas sem importância alguma.

Um homem chegou bem perto dela, falou alguma coisa. Ela virou-se e respondeu gesticulando muito. Ele saiu e ela voltou a esvaziar o carrinho. Agora, mais apressada. Pouco antes de terminar, começou a discutir com a moça do caixa, que respondeu bem baixinho e calmamente, conseguindo convencê-la. Não sei exatamente o motivo da discussão, mas não devia ser importante, pois logo, pediu desculpas, continuou retirando as coisas do carrinho, apressadamente.

Fiquei pensando na amargura dessa mulher, no azedume que ela espalha por anda passa, e me senti até feliz em não a conhecer. Já a tinha visto fazendo as compras, e ela estava com a filha bem pequena, uns 4 anos. Mas, o fato de pouco se dedicar à criança, chamou minha atenção.

Durante todo este tempo, ela nem sequer se lembrou da criança, que brincava com as cestinhas do supermercado ao chão, muito compenetrada, e distante do caixa.  Arrumava-as de uma maneira, parava, e colocando as mãos na cintura dizendo alguma coisa, que eu não entendia. Gesticulava com as mãos e movimentava a cabeça, depois mudava as posições das cestinhas. Assim ia se repetindo. Como se ali só existisse ela, as cestas e o infinito. Interessante perceber a diferença de estado de espírito entre mãe e filha.

Ao terminar de esvaziar o carrinho, dona nervosilda, só então mostrou-se buscando com os olhos, a filha pequena. Sem perceber que ali estava não apenas uma criança, mas um ser, sem culpa alguma, do que aconteceu horas antes, no mundo louco e desgovernado dos adultos.

De repente a mãe foi até a criança e puxou-a pelos cabelos, depois lhe puxou as orelhas, numa atitude covarde e sem nexo.  Em seguida ela colocou à frente, segurou de modo brusco pelas mãos e saiu apressada atrás do rapaz que levava as compras.

Aquela atitude violenta da mãe buscou dentro de mim o que sempre tento esconder que existe, além de repúdio, a ira. Queria ter defendido a criança, ter pelo menos me mostrado contrário àquilo.

Por um triz não lhe disse um monte de besteiras, e chamei a polícia.

Mas não o fiz para não melindrar a menininha.

Fiquei por alguns minutos meditando naquela mãe tão grosseira e sem amor, Deus dá mesmo a carga certa para alguns carregarem?

Muitas mulheres grávidas pedem a Deus uma criança normal com saúde. Aquela mãe tinha uma filha perfeita, mas não tinha sensibilidade para usufruir daquele momento sublime.

Talvez, neste caso, a carga certa para carregar, Deus não tenha dado para a mãe, e sim para a criança.


JOÃO LOROTA - Henrique Schnaider

 


JOÃO LOROTA

Henrique Schnaider

 

Na grande praça de touros, idos de 1800 e nada, atual Praça da República. Era um dia com plateia cheia. Bem lá no meio do povão agitado, querendo ver sangue na arena, estava o João Lorota. Levava a fama de grande mentiroso. Devido a isso o apelido.

Ele era totalmente desacreditado, pois só contava histórias do arco da velha. As pessoas queriam ouvir o que ele tinha para contar, apenas para se esborrachar de rir.

O pessoal queria mais é ver o Touro Tan Tan enfiar aqueles chifres afiados no ventre do pobre toureiro. “Puxa, algo injusto”. Até parece que o touro era o herói, e o toureiro o vilão daquela batalha. O povo gritava, pega ele Tan Tan, pega ele Tan Tan. O João na concorrência, tentando arranjar plateia, falava, falava e falava, um papagaio.

Ele nem se interessava pelo que acontecia na arena onde a tourada pegava fogo. O que será que o João falava? Para ele quem ganhasse aquela luta não era nem herói nem vilão, situação sem interesse. O povo torcia e o João distorcia.

O touro Miúra muito bravo.  Foi ficando cada vez mais furioso. Raspava sem parar os cascos no chão cheio de pedriscos que pulavam para todos os lados. Rap, rap, rap. Os olhos eram de puro ódio, vermelho ardente. Verdadeiras centelhas de fogo do diabo.

O que deixava o Tan Tan cada vez mais irado soltando fogo pelas ventas, era o pano vermelho sangue, nas mãos do toureiro balançando para todos os lados, vamp, vamp, vamp. O povo, pega ele Tan Tan e o João aos gritos pedindo para o povo ouvir suas histórias absurdas.

João Lorota olhava para todos ali, esperando, esperando, esperando até alguém se dispor a prestar atenção. Paciente, apesar da gritaria, João um professor, queria dar a sua aula, afirmando com convicção e conhecimento:

– Este homem que tudo consegue, um guerreiro alado, este homem vai longe. Este homem vai chegar à Lua com certeza. Irá até lá numa nave que terá foguetes poderosos para levá-lo e depois trazer de volta.

Estará vestido com uma roupa especial para poder respirar e protegê-lo daquele lugar sem vida da Lua. Com certeza irá nos mostrar do que ela é feita. Voltará nas asas do seu foguete para contar tudo que viu lá e trazendo pedaços do satélite.  Vontade de ferro, vencerá todos os obstáculos.

Este homem estará lá no futuro. Ele ainda vai nascer daqui a muitos anos e muitos anos, filho de um casal de cientistas. Ele será chamado de astronauta. Será capaz de muitas coisas e de muitas coisas será capaz. Nós não poderemos presenciar esta façanha pois ainda vivemos em tempos muito atrasados.

Quem quiser acreditar pode acreditar, pois quem me ouvir verá a verdade. Não duvidem e nem riam de mim. Apenas eu vejo tudo com os olhos do futuro. Não sou um mentiroso, apenas eu tenho um pressentimento, que me deixa enxergar aquilo que vocês desconhecem.

Alguém do lado do João falou com ar de deboche:

– Esta história tem um cheiro de mentira -  e todo mundo riu. Deixando o João Lorota entre um sentimento de constrangimento e ressentimento. Foi embora dali, pois ninguém mais queria ouvir suas histórias.

Mal sabiam todas aquelas pessoas. Nem nós nunca saberemos. Como o João poderia saber, lá naquele passado tão distante, de tanta coisa que, dezenas e dezenas de anos depois, se concretizaria e tornariam verdade a história do João sobre a viagem a lua.  Só podemos dizer que ele era um visionário.

Sempre que ouvirmos alguém prevendo coisas lá no futuro. É bom a gente por um pé atrás antes de duvidar.

FREDDY Alberto Landi

 

FREDDY

Alberto Landi

 

Freddy, é funcionário do Parque Nacional de Redwood, jovem, aos 22 anos. O Parque está situado ao longo da costa norte da Califórnia. Monitora a preservação dos bosques de sequoias e controla a exploração madeireira.

Diariamente ele vai para o Parque. Mas um certo dia, ao passar nas proximidades da orla da mata, surgiu uma harpia, que inesperadamente arrancou o chapéu Panamá da sua cabeça. Foi pousar no galho mais alto de uma enorme e imponente sequoia localizada na ribanceira de um rio, dificultando assim para ele recuperar o chapéu.   

A harpia é considerada a maior águia do mundo pelo seu porte imponente. Ponta de bico afiada. Tendo ao redor do pescoço uma espécie de um colar de penas negras e cabeça adornada com um cocar cinza. Onde surge um conjunto de penas ainda maiores; tem força para levantar um carneiro. Essa, tinha um aspecto matreiro e lúdico. Na base da sequoia havia três galhos que formavam uma espécie de forquilha. Onde foi trançado um espetacular ninho formado por grossos gravetos.  A ave colocou o chapéu virado para cima e bem apoiado nos gravetos.

Toda vez que Freddy ia ao parque. Olhava para o ninho da harpia e constatava que nada poderia fazer, para resgatar o chapéu, tamanhos eram os emaranhados de galhos, e a altura daquela gigantesca árvore das margens dos rios e riachos.

Após algum tempo Freddy encontrou seu velho chapéu, amassado amarelado, e ao lado um filhote de harpia abandonado. Caídos aos pés da grande arvore. Levou a pequenina e quase desfalecida ave para casa e a alimentou com pequenos insetos. Colocou-lhe o nome de ARROW.

Com o tempo, Freddy e Arrow criaram um vínculo forte de amizade. Uma   afeição tão grande que não   conseguiam se afastar do outro.

Era até comovente de se ver: homem e ave sempre juntos monitorando o parque!

Freddy com seu velho chapéu Panamá tendo ao seu lado o mais novo e inseparável amigo. Uma amizade de seres tão diferentes, mas um amor tão visível que emocionava as pessoas que visitavam o Parque.

Mas certo dia, Arrow voltou para seu habitat natural, o bosque de sequoias, separando- se de Freddy. Ele entristeceu-se tanto que dava dó de ver. Seu ânimo para o trabalho e para a vida estremeceu.

Passado muito tempo Arrow resolveu visitar o velho amigo, e trouxe no bico 2 filhotes! Tão grande foi o contentamento de Freddy, ao vê-los no quintal de sua casa que logo pensou:

– O bom amigo a casa torna ainda com 2 filhotes, que alegria.

Freddy voltou a sorrir e levava todos ao trabalho. Era uma alegria que contagiava todos os visitantes do parque. Arrow deixou os filhotes para Freddy cuidar pois sabia que ele era o melhor. Mas algumas vezes retornava, para vigiar os pequenos.

Entretanto Freddy sabia que a qualquer momento os filhotes voltariam para seu habitat natural. Foram crescendo como o pai, lindos e fortes, mas o abandonariam para seguir sua natureza.

Mas desta vez ele veria este abandono como um crescimento, e um sentimento de missão cumprida. Exatamente como um pai se sente quando o filho sai de casa para construir seu novo lar...

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

FEITIÇOS DA LUA - Hirtis Lazarin

 


FEITIÇOS DA LUA

Hirtis Lazarin

 

 Era uma hora da tarde quando Raquel estacionou o carro. Horas seguidas de viagem, muita poeira levantada da estradinha esburacada de terra batida.  Quase ninguém no percurso.

Abriu os vidros embaçados e viu, bem a sua frente, o casarão abandonado.

Desceu tremendo de emoção.  Um sonho concretizado.

Sentou-se num bloco de pedras, despiu-se do casaquinho de lã e desamarrou o tênis que apertava os pés.  O sol de outono preguiçoso e macio observava-a em silêncio.

Respirou fundo várias vezes antes de caminhar ao redor do prédio histórico construído no século XVIII.  Ali funcionou por cento e três anos a Câmara dos Deputados de São Paulo.

Total abandono... Nunca houve um projeto de preservação e restauração. Representa a morte de um pedacinho da nossa cultura, um pedacinho da nossa história.

Uma dor sem fim ver uma estrutura construída com todos os requintes que a arquitetura da época oferecia, abalada por infiltração de raízes grossas e furiosas comprometendo o alicerce.  O reboco caído expondo feridas nas paredes encardidas e maltratadas.  As janelas que sobraram mergulhadas num choro abafado e triste, ao menor balanço do vento.

Na lateral esquerda, restou uma escada de pedras coberta de musgo, ambiente propício às pererecas e grilos, quando a noite cai.  Ela conduz a um alpendre coberto de folhas secas que, provavelmente, se renovam com a mudança de temperatura.  Duas poltronas, que já foram aveludadas, abrigam uma gata que pariu e ali fez seu ninho.

Raquel é jornalista e se alimenta de histórias não contadas da história real.  Ainda criança, ouviu de seu avô-historiador um caso intrigante que envolvia o deputado Dr. Alfonso Lima de Albuquerque, um dos mais atuantes e cultos que atuou ali, nos idos de mil e oitocentos.

Um jovem de ideias nada convencionais e que extrapolava os padrões estabelecidos na época.  Sua criatividade não tinha limites. Era apaixonado pela “LUA” e previa que, num futuro não tão distante, o homem chegaria lá.  Numa época em que o transporte era feito por animais...

A moça empurrou, cuidadosamente, a porta da entrada principal.  Moldada em ferro fundido, nem se mexeu.  Usando as duas mãos, imprimiu mais força e o ranger da ferrugem soou como um lamento impertinente.

Abriu-se diante dela uma sala imensa.  O piso, nem se via, coberto que estava de lixo.  Entrou arrastando os pés, temendo que o assoalho rompesse.  

Fechou os olhos e se pôs a imaginar como seria ali num dia normal de expediente:  quantas vidas, quantas vozes ao mesmo tempo, quantas discussões acaloradas, desentendimentos, risadas escancaradas.  Homens elegantes em ternos alinhados, homens munidos de bengalas, homens de todos os tipos... E  poucas mulheres.

Uma cócega no pé acordou-a. Um rato passou correndo e desapareceu em meio à sujeira.  Raquel gritou, deu uma corridinha, mas não desistiu da sua curiosidade.

A sua frente, estendia-se um corredor sem fim, portas intercaladas, de ambos os lados.  Em cada uma, resquícios do que foram plaquinhas de alumínio.  Tentou juntar o que restou das letras gravadas, provavelmente o nome do último deputado que ocupara aquele espaço.  Impossível! O tempo arruinara a caligrafia.

Raquel entrou em quase todas as salas. Procurava algo importante. Encontrou abandono e solidão.  Até que se deparou com o que mais queria: o gabinete do Dr. Alfonso.  Identificou-o pelos relatos que colhera. Nas paredes, restavam desenhos quase que totalmente apagados de vários modelos de naves espaciais, traçados do percurso à lua e muitos rabiscos de cálculos matemáticos ininteligíveis. Feitos à base de tinta a óleo, o que permitiu a resistência de alguns detalhes.

A sua obsessão pela “LUA” cresceu de um jeito que extrapolou todos os limites de uma mente sã.  Falava sozinho, perambulava pelo vilarejo durante a noite e quase não dormia, desenhava nas paredes do quarto e do gabinete, fazia cartazes e rasgava todos em ímpetos furiosos.  O que começou como façanhas de um homem inteligente, terminou como atos de loucura.

Dr. Alfonso não completou trinta anos e morreu num manicômio.

Raquel tinha, então, todo material necessário para seu furo de reportagem.

ANÍSIO, O SURFISTA - Leon Vagliengo

 


ANÍSIO, O SURFISTA

Leon Vagliengo

 

Um continho curtinho, minúsculo, figurado.

 

        O verde profundo e salgado do mar era um convidativo aceno de paz, mesmo com as vagas enormes, que corriam até explodir em grandes ondas, que corriam com doce rugido até ficarem pequenas, que corriam, ainda, até se reduzirem à espuma. O céu de um doce azul, as nuvens bem esparsas, branquinhas e macias, o sol quente e amarelado. Componentes de um lindo dia de calor, cujo excesso era atenuado pela brisa fresca e perfumada.

        Quanta beleza, cenário perfeito!

        Anísio pegou a prancha, prendeu o slash no tornozelo e quando entrou na água fria caminhou devagar, apressou, correu enquanto ainda estava no raso e depois seguiu remando até onde ficam os surfistas na espera das boas ondas. Nem se diga que ele sentia uma grande alegria. Pura imaginação! Aquilo iria dar um trabalho...!

        Mais do que um esporte, a prática do surfe, para ele, é um ritual de harmonia, momento de estar consigo mesmo, esquecido de tudo, dos problemas corriqueiros da rotina diária. Delicia-se com o embalo da vaga ao equilibrar-se na prancha, em que sobe com seus próprios braços; sente-se único, poderoso, dominador, ao andar sobre as águas como Jesus; empolga-se com o forte estalar daquela massa de água quando se transforma em onda e o transporta numa curta viagem que o leva à plena sensação de felicidade. O salgado do mar é doce.

        E tudo se repete milhões de vezes, novamente, novamente e novamente, o doce rugir do mar em seus ouvidos, os passeios sobre a prancha até o mergulho, e tudo outra vez e outra vez e outra vez.  Momentos de encantamento, nada mais existe para Anísio.

        Aqui não existem conflitos.

        Apenas o prazer de sentir-se integrado à natureza, participar de sua beleza, acompanhar os movimentos do mar. A vida, os dias precisam ser bem aproveitados.

        Aqui não existe desfecho.

Tudo se repete indefinidamente. Vai embora feliz Anísio, mas volta sempre. É apenas um coadjuvante, o personagem principal é mesmo a Natureza.


A escalada - Adelaide Dittmers

 




A escalada

Adelaide Dittmers

 

A mulher andava de um lado par o outro da sala, esmagando com passos impiedosos o assoalho, que rugia ao seu pisar.

Pensamentos latejavam, sacudiam, explodiam e ecoavam em seu coração.  O nervosismo azedava-lhe os sentidos. Sentia que estava morrendo dezenas de vezes.  O mundo estava desabando sobre ela.  O papel que há pouco recebera provocou um terremoto em seu corpo inteiro. Ondas de desespero a invadiam e a faziam ofegar pelo ar que lhe faltava.

Como iria enfrentar isso?  Sempre fora muito corajosa e enfrentara vários desafios, mas este, que estava se apresentando agora era muito diferente e não dependia só dela.

Começou, então, a relembrar como tudo acontecera naquele dia de escalada na altiva montanha.  As trilhas, que recortavam o verde intenso, vibrante e iluminado.  O rio esverdeado e caudaloso, que se feria nas ásperas e impiedosas pedras, que o pontilhavam e faziam a água explodir em espumas alvas e transparentes.  O dia frio de inverno iluminado por um sol aconchegante e morno e pelo azul profundo de um céu sem nuvens.

O grupo de alpinistas, que tentava submeter a orgulhosa montanha à sua ousada escalada, fincava com dificuldade os ganchos nas rochas expostas da encosta íngreme.

Aquele esporte sempre a atraíra.  Adorava desafios, que a deixassem vulnerável e a vitória da conquista a inebriava.  Era considerada exímia nesse alpinista.

 A gigante, que se erguia a sua frente tinha uma dificuldade maior do que muitas outras.  Suas escarpas eram lisas e traiçoeiras.

Pela sua grande experiência, era a condutora daquele grupo de jovens, ávido de se arriscar na aventura de conquistar a inóspita montanha, que estava lutando para se entregar a eles.

O planejamento da escalada fora feito minuciosamente.  Temperatura, possibilidades de ventos fortes, medição de tempo da subida, eventualidade de chuva, tudo verificado.

 O único risco era um jovem inexperiente, que insistira em ir com eles.  A teimosia e os argumentos dele foram mais fortes do que a cautela e previdência dela, porque no fundo adorava a audácia daqueles que praticavam o esporte, em enfrentar perigos.  Tinha consciência, no entanto, de que a inexperiência era uma ferrenha rival da eficiência.

Tranquilamente as grandes dificuldades estavam sendo vencidas com muito cuidado.  A adrenalina corria desenfreada pelas veias de todos.

A alguns metros do pico, a parede rochosa tornou-se vertical.  O verde da vegetação ficara muitos metros abaixo.  Era o grande desafio.  Todos se prepararam para vencê-lo.  O novato, entretanto, ao se deparar com a dificuldade à sua frente e ao se conscientizar da altura em que estavam, desesperou-se e morrendo de medo, começou a tentar subir mais depressa para alcançar o topo em menos tempo e livrar-se do pavor que sentia. 

Na sua imaginação ela viu o rapaz tentar, desesperadamente, fincar o gancho numa das saliências da rocha com mãos trêmulas e úmidas pelo suor. Com certeza, mal conseguia segurar o gancho, que lhe escapou das mãos, deixando-o pendurado, o que quase arrastou os outros com ele.

Nesse momento da lembrança daquele dia, a mulher jogou-se no sofá.  As mãos crispadas cobriram as faces.  A ordem, que gritou ao rapaz, soou em seus ouvidos.

— Balance a corda e tente se prender novamente.

O jovem, porém, estava fora de si. O medo abocanhara-o todo. As mãos soltaram-se da corda e ele caiu no vazio.  Gritos de horror ecoaram pelo vale.

O grupo apressou-se em chegar ao topo da montanha.  Mais abaixo o alpinista jazia em um platô verde da encosta.  O silêncio cobriu a indiferente paisagem com um manto negro.

Desde aquele dia, o remorso corroía a alma dela.  Sentia-se culpada.  Fora irresponsável.  E agora tinha acabado de receber uma notificação de que os pais do infeliz rapaz a estavam protestando.

Ela tinha conhecimento de que a legislação não cobria esses tipos de acidentes e que houve outro famoso processo, que não dera em nada, mas mesmo assim estava morrendo de medo de ser julgada. Tinha um nome a zelar.  O alpinismo era a sua vida.  Dentro dela, o remorso travava uma luta feroz com a angústia de pagar pelo seu erro.

Sempre quis estimular nos jovens o esporte, que amava, mas devia ter dito um sonoro e resoluto não ao novato.

De repente, imaginou que pegou um forte gancho dentro dela e o fincou na coragem pétrea, que sempre tivera e que a fazia alcançar os perigosos cumes das montanhas.

Levantou-se do sofá.   O rosto sério expressava a decisão tomada.  Pegou o celular e ligou para seu advogado.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O CAÇADOR - Henrique Schnaider

 



O CAÇADOR 

Henrique Schnaider

 

João Cajuru era um caçador dos bons. Vivia sempre no meio da mata, tiro certeiro. Era integrado ao meio em que vivia, uma árvore no meio de tantas outras. Era o rei da floresta, tinha a vantagem não se fixar e de se movimentar. Olhos de lince, estratégico, usava seus instintos de olho vivo e faro fino.

Sua pele vibrava aos poucos e ia aumentando cada vez mais com a intensidade do momento em que acertava um tiro no animal que caia ferido mortalmente.

O João caçava coelhos, ficava à espreita com respiração presa para não assustar o orelhudo. Para os javalis, o enfrentamento era cara a cara com aquelas presas enormes prontas para fincar nele. Chegava o mais próximo possível e o tiro perfeito no coração do bicho que batia cada vez menos até parar. Com os catetos era a mesma coisa.

Os cervos eram um capítulo à parte, pois o porte destes animais era de médio para grande. Eles são muito ariscos e o tiro tinha que ser dado de longa distância para não espantar a presa. Era a carne nobre que João comia saboreando vagarosamente. Da pele João cerzia uma roupa que servia nele perfeitamente.

Para cada um dos animais ele tinha a armadilha certa. As vezes conseguia matar uma onça parda para sua alegria, animal perigoso bravo, agressivo pronto pegar um inimigo ou para matar a fome.

João morava numa caverna bem escondida, mas à noite, enquanto descansava, ficava alerta com todos os sentidos. Ouvidos atentos, instinto pronto. Aguardando os primeiros raios do sol de outono com uma luz pálida e macia.

Saindo na manhã acolhedora para vagar sem rumo. João ia preparando a visão para enxergar uma presa. Uma águia lá do alto, no céu azul, espreitando com olhos de visão infravermelha. Tudo que conseguiria num ataque mortal a sua caça.

Naquela noite finalmente o encontro esperado, João coração acelerado atingiu o auge de seus sonhos de caçador. Prendeu a respiração e foi fazendo o coração bater mais compassado. Uma estátua imóvel. Ficou cara a cara com a onça pintada. O duelo foi rápido, um tiro bem na fronte do animal. Que tombou ferido mortalmente. Aquela pele seria um troféu, arduamente esperado e finalmente atingido.

João estava orgulhoso de seu feito, se achava o grande caçador, o melhor. Não havia outro do seu nível. Exultava tremendamente ao lado da sua oponente morta.

Até que um dia, chegaram as máquinas e os piores inimigos do valente caçador João Cajuru. As serras elétricas agiram em toda sua potência, árvores caiam às pencas, transformando-se em troncos mortos e prontos para serem levados para as serrarias.

O desmatamento não perdoou nada e a floresta foi respirando cada vez menos, até o fim do seu verde. Áreas enormes descampadas, nada impedia a sanha mortal dos inimigos da floresta.

Foi de doer na alma do pobre caçador João Cajuru, que viu a sua vida destruída e sem futuro. Se transformou num morto vivo. Estava nu, despido da sua amada floresta.

 

O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

  O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA Pedro Henrique        Curioso é pensar na vida e em toda sua construção e forma: medo, terror, desejo, afet...