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quarta-feira, 1 de setembro de 2021

FEITIÇOS DA LUA - Hirtis Lazarin

 


FEITIÇOS DA LUA

Hirtis Lazarin

 

 Era uma hora da tarde quando Raquel estacionou o carro. Horas seguidas de viagem, muita poeira levantada da estradinha esburacada de terra batida.  Quase ninguém no percurso.

Abriu os vidros embaçados e viu, bem a sua frente, o casarão abandonado.

Desceu tremendo de emoção.  Um sonho concretizado.

Sentou-se num bloco de pedras, despiu-se do casaquinho de lã e desamarrou o tênis que apertava os pés.  O sol de outono preguiçoso e macio observava-a em silêncio.

Respirou fundo várias vezes antes de caminhar ao redor do prédio histórico construído no século XVIII.  Ali funcionou por cento e três anos a Câmara dos Deputados de São Paulo.

Total abandono... Nunca houve um projeto de preservação e restauração. Representa a morte de um pedacinho da nossa cultura, um pedacinho da nossa história.

Uma dor sem fim ver uma estrutura construída com todos os requintes que a arquitetura da época oferecia, abalada por infiltração de raízes grossas e furiosas comprometendo o alicerce.  O reboco caído expondo feridas nas paredes encardidas e maltratadas.  As janelas que sobraram mergulhadas num choro abafado e triste, ao menor balanço do vento.

Na lateral esquerda, restou uma escada de pedras coberta de musgo, ambiente propício às pererecas e grilos, quando a noite cai.  Ela conduz a um alpendre coberto de folhas secas que, provavelmente, se renovam com a mudança de temperatura.  Duas poltronas, que já foram aveludadas, abrigam uma gata que pariu e ali fez seu ninho.

Raquel é jornalista e se alimenta de histórias não contadas da história real.  Ainda criança, ouviu de seu avô-historiador um caso intrigante que envolvia o deputado Dr. Alfonso Lima de Albuquerque, um dos mais atuantes e cultos que atuou ali, nos idos de mil e oitocentos.

Um jovem de ideias nada convencionais e que extrapolava os padrões estabelecidos na época.  Sua criatividade não tinha limites. Era apaixonado pela “LUA” e previa que, num futuro não tão distante, o homem chegaria lá.  Numa época em que o transporte era feito por animais...

A moça empurrou, cuidadosamente, a porta da entrada principal.  Moldada em ferro fundido, nem se mexeu.  Usando as duas mãos, imprimiu mais força e o ranger da ferrugem soou como um lamento impertinente.

Abriu-se diante dela uma sala imensa.  O piso, nem se via, coberto que estava de lixo.  Entrou arrastando os pés, temendo que o assoalho rompesse.  

Fechou os olhos e se pôs a imaginar como seria ali num dia normal de expediente:  quantas vidas, quantas vozes ao mesmo tempo, quantas discussões acaloradas, desentendimentos, risadas escancaradas.  Homens elegantes em ternos alinhados, homens munidos de bengalas, homens de todos os tipos... E  poucas mulheres.

Uma cócega no pé acordou-a. Um rato passou correndo e desapareceu em meio à sujeira.  Raquel gritou, deu uma corridinha, mas não desistiu da sua curiosidade.

A sua frente, estendia-se um corredor sem fim, portas intercaladas, de ambos os lados.  Em cada uma, resquícios do que foram plaquinhas de alumínio.  Tentou juntar o que restou das letras gravadas, provavelmente o nome do último deputado que ocupara aquele espaço.  Impossível! O tempo arruinara a caligrafia.

Raquel entrou em quase todas as salas. Procurava algo importante. Encontrou abandono e solidão.  Até que se deparou com o que mais queria: o gabinete do Dr. Alfonso.  Identificou-o pelos relatos que colhera. Nas paredes, restavam desenhos quase que totalmente apagados de vários modelos de naves espaciais, traçados do percurso à lua e muitos rabiscos de cálculos matemáticos ininteligíveis. Feitos à base de tinta a óleo, o que permitiu a resistência de alguns detalhes.

A sua obsessão pela “LUA” cresceu de um jeito que extrapolou todos os limites de uma mente sã.  Falava sozinho, perambulava pelo vilarejo durante a noite e quase não dormia, desenhava nas paredes do quarto e do gabinete, fazia cartazes e rasgava todos em ímpetos furiosos.  O que começou como façanhas de um homem inteligente, terminou como atos de loucura.

Dr. Alfonso não completou trinta anos e morreu num manicômio.

Raquel tinha, então, todo material necessário para seu furo de reportagem.

Um comentário:

  1. Parabéns Hirtis a sua história é uma verdadeira aula para o leitor . É muito bem elaborada e a gente acompanha com interesse a entrada da Jornalista na casa abandonada.

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